Para Barjud, que defende o uso da cloroquina, é preciso "saber o momento de ser super detalhista com a ciência, super exigente com a ciência e o momento em que a gente tem que ser um médico da beira do leito".

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Coronavírus: ‘milagre da cloroquina’ importado de Madri e promovido por médica do Piauí não funciona nem na Espanha

Protocolo divulgado pela médica piauiense Marina Bucar Barjud é contestado pela ciência, mas ajuda a promover a faculdade da família.

Para Barjud, que defende o uso da cloroquina, é preciso "saber o momento de ser super detalhista com a ciência, super exigente com a ciência e o momento em que a gente tem que ser um médico da beira do leito".

A crise do coronavírus

Parte 126


Era o dia 14 de maio quando Damares, ministra da Família, Mulher e Direitos Humanos, chegou a Floriano, no interior do Piauí, para conferir o que ela mesma chamou de “milagre da cloroquina”. Baseada não em ciência, mas em mensagens de WhatsApp e lives nas redes sociais, ela acreditou que a UTI do hospital regional Tibério Nunes havia sido esvaziada porque os pacientes teriam tomado a medicação e se curado da covid-19.

O diretor do hospital, Justino Moreira, negou a informação. “A gente até usa, em nível de atenção básica, numa fase precoce aqui no município. Porém, isso não tem dado resultados”, disse o médico em entrevista à imprensa, dois dias após a visita de Damares. Mas já era tarde para explicações. “Estou levando esse protocolo para o Brasil inteiro”, prometeu a ministra em um vídeo gravado dentro do avião que a levava do Piauí para Brasília.

O tal protocolo que tanto animou Damares – e tem como base a prescrição de hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina para pacientes com sintomas leves da covid-19 – vem sendo defendido há pouco mais de um mês pela médica Marina Bucar Barjud, uma piauiense que vive em Madri. Foi a experiência de aproximadamente dois meses adquirida durante o enfrentamento da pandemia na Espanha, diz ela, que a motivou a tentar difundir o tratamento no Brasil, começando por Floriano, onde vive parte da família Bucar.

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Não demorou muito para que o canal no YouTube e o perfil da médica no Instagram, criados em abril, conquistassem milhares de seguidores. Sem se basear em evidências científicas, Barjud vem se dedicando a gravar lives, dar palestras online para médicos e falar em todas as entrevistas possíveis sobre os maravilhosos resultados do uso precoce do protocolo em pacientes com o novo coronavírus atendidos no hospital HM Puerta de Sur, onde ela trabalha, na capital espanhola. O Puerta de Sur é um hospital universitário e faz parte um consórcio com outras instituições do país que estuda a eficácia da hidroxicloroquina no tratamento de mulheres grávidas.

Ela só esquece de dizer que o “sucesso” da medicação não é unânime nem no país em que começou. O protocolo não é aceito pelo Ministério da Saúde na Espanha, que segue entre os países mais afetados pelo coronavírus. Em 27 de maio, a Espanha tinha 236.769 pessoas com a doença e 27.118 mortes registradas em decorrência do novo coronavírus.

Pior: com base em evidências científicas, a Agência Espanhola de Medicamentos e Produtos Sanitários alertou os profissionais de saúde do país para os riscos da cloroquina e da hidroxicloroquina, que podem causar distúrbios neuropsiquiátricos, incluindo sintomas agudos de psicose, suicídio ou tentativas de suicídio. Também há risco de problemas cardíacos, em especial no uso de doses altas da droga e quando o produto é “administrado com outros medicamentos que também compartilham esse possível risco, como a azitromicina” – exatamente a combinação que Barjud defende.

Na Bahia, por exemplo, o médico, Gilmar Calazans Lima, de 55 anos, começou a tomar por conta própria a combinação hidroxicloroquina e azitromicina para tratar a covid-19 em casa. Por quatro dias ele teve uma leve melhora, mas, no último, sofreu um mal estar súbito e morreu. Em Manaus, um estudo preliminar chegou a ser interrompido depois que 11 pacientes morreram após serem submetidos ao tratamento com cloroquina.

Nesta segunda, a própria Organização Mundial de Saúde, a OMS, suspendeu os testes com hidroxicloroquina nas pesquisas que estava realizando em cerca de 400 hospitais pelo mundo. A decisão foi tomada depois do estudo publicado na revista The Lancet com 96 mil pacientes sobre os riscos do remédio, entre eles o aumento de mortes por problemas cardíacos. Na França e na Itália o uso da hidroxicloriquina no tratamento da covid-19 foi proibido. Não que o Ministério da Saúde tenha dado atenção à OMS ou qualquer desses estudos. Após a notícia, o órgão manteve o protocolo com a indicação para que os médicos usem hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves da covid-19.

Apesar disso, a campanha da médica em prol da cloroquina no Brasil segue a todo vapor e convencendo outras pessoas além de Damares. No dia 13 de maio, o Ministério Público Federal do Piauí entrou com uma ação na justiça para obrigar a União, o estado e o município de Teresina a adotarem o “Protocolo covid-19”, como foi batizada a orientação de uso indiscriminado de hidroxicloroquina da médica na fase inicial da doença. A justificativa foram as inexistentes evidências “de êxito […] capitaneadas pela médica piauiense Marina Bucar Barjud”.

No dia 20, uma semana depois da visita de Damares a Floriano, o Ministério da Saúde divulgou um protocolo indicando o uso da cloroquina nos pacientes com covid-19 desde os primeiros sintomas. Essa, aliás, foi a divergência que levou o agora ex-ministro da saúde Nelson Teich a pedir demissão pouco antes de completar um mês no cargo.

De acordo com o Ministério da Saúde, o médico é quem vai decidir sobre a prescrição do remédio, mas o paciente terá que aceitar o tratamento e assinar um Termo de Ciência e Consentimento por meio do qual se diz ciente de que “não existe garantia de resultados positivos para a covid-19 e que o medicamento proposto pode inclusive apresentar efeitos colaterais”.

O próprio Conselho Federal de Medicina, cuja decisão de liberar o remédio serviu de respaldo para a política desastrosa de Bolsonaro, tem uma série de ressalvas. A principal delas: “não há evidências sólidas de que essas drogas tenham efeito confirmado na prevenção e tratamento dessa doença”. 

A visibilidade nacional que Barjud conquistou também está ajudando a promover a faculdade particular da família em Floriano. Mesmo morando em Madri, a médica coordena o núcleo de pesquisa e extensão da instituição. Na página inicial da faculdade, dois textos em destaque evidenciam o orgulho em tê-la na casa. “Seu estudo, dedicação, coragem e reconhecimento do seu trabalho pela comunidade médica e pela sociedade, reafirma e eleva a responsabilidade social e o compromisso que a FAESF tem junto a comunidade, de sempre oferecer o conhecimento, a pesquisa e a extensão”, diz um deles.

Pesquisa, no entanto, não tem sido uma bandeira defendida pela médica. Em uma de suas lives, Barjud defende que é preciso “saber o momento de ser super detalhista com a ciência, super exigente com a ciência e o momento em que a gente tem que ser um médico da beira do leito”.

 

Vários pesquisadores testaram os efeitos da hidroxicloroquina e descobriram que o medicamento não é eficaz para tratar pacientes com a covid-19, incluindo aqueles com sintomas leves. Quatro estudos foram publicados em revistas renomadas como a The New England Journal of Medicine, JAMA e The BMJ apenas em maio.

Dois deles, realizados em Nova York com mais de mil pacientes cada, observaram que a hidroxicloroquina não resultou em uma menor ou maior taxa de intubação ou morte dos pacientes. Também não houve resultado na redução da taxa de mortalidade, mesmo quando associado à azitromicina. Um terceiro estudo mostrou que o remédio não alterou a sobrevivência, o desmame do oxigênio ou a alta do hospital. Nem mesmo os pacientes com menos sintomas responderam melhor à medicação. Outro estudo controlado, cujos grupos de pacientes foram escolhidos aleatoriamente, mostrou que aqueles tratados com hidroxicloroquina tiveram mais efeitos adversos do que os que não foram tratados com o medicamento.

No dia 18 de maio, a Associação de Medicina Intensiva Brasileira, a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia publicaram diretrizes para o tratamento farmacológico de pacientes com a covid-19 e sugeriram não utilizar hidroxicloroquina ou cloroquina e nem a combinação desses medicamentos com azitromicina, devido ao “nível de evidência baixo”.

Tentei contato com Barjud no dia 20 por e-mail e pelo seu Instagram profissional, que é atualizado com frequência com os anúncios de eventos de que ela participa. Também mandei mensagem pelo WhatsApp no dia 21, mas ela respondeu, através do irmão, que se apresentou como responsável por marcar suas entrevistas, que não iria falar. Em uma das suas postagens, a média reforça que não instituiu o protocolo que divulga e que ele se baseia na “troca constante de informações entre os diversos hospitais de Madrid e dos colegas italianos”. O mundo científico, acrescenta a médica, mudou com a covid-19 e, por isso, “não podíamos esperar evidência maior”.

Barjud não publicou nenhum artigo sobre os resultados positivos da associação de hidroxicloroquina e azitromicina no tratamento precoce de pacientes. Por enquanto, o que se verifica é que o protocolo importado de Madri não faz milagre, mas enche os olhos de quem prefere deixar a ciência de lado quando convém.

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