A ameaça de que militares iriam atirar contra manifestantes em Minneapolis feita por Donald Trump, divulgada em um tuíte, levou o Twitter a restringir o acesso à mensagem do presidente, declarando que a mesma violava a política da rede social contra a “glorificação da violência“.
No tuíte, publicado pouco antes da 1h da manhã no horário da costa leste dos EUA, Trump primeiro escreveu que “MARGINAIS estão desonrando a memória de George Floyd”, o negro morto em Minneapolis na segunda-feira por um policial que se ajoelhou em sua garganta e o impediu de respirar, episódio que provocou protestos e revolta. O presidente ameaçou mandar soldados abrirem fogo, a menos que as autoridades locais de Minneapolis controlassem a situação, acrescentando que “quando os saques começam, os tiros começam”.
O tuíte foi coberto por uma mensagem de alerta, dizendo que os comentários do presidente violavam as regras da plataforma, mas não haviam sido removidos porque sua leitura poderia “ser de interesse do público”.
Ao clicar na tela, os leitores conseguiam ler a postagem que incitava a violência, mas com a mensagem de alerta acima dela.
Conforme a observação do Twitter em sua justificativa sobre o motivo da inclusão do “aviso de interesse público” no tuíte, a última frase foi ainda pior para os americanos mais velhos, capazes de lembrar onde a ouviram pela primeira vez. As palavras foram proferidas em 1967, quando Walter Headley, oficial racista que era chefe de polícia de Miami, disse a repórteres que seus policiais abririam fogo em caso de saques nos bairros predominantemente negros da cidade.
De acordo com o noticiário do dia 28 de dezembro de 1967, Headley anunciou que estava declarando guerra contra os “jovens marginais de 15 a 21 anos que se aproveitam da campanha pelos direitos civis”, e acrescentou que “não nos importaremos em ser acusados de brutalidade policial”. Segundo ele, o objetivo da repressão à comunidade negra de Miami seria desencadear “uma epidemia de lei e ordem”.
Headley repetiu a ameaça no ano seguinte, quando os protestos no bairro de Liberty City se transformaram em tumultos durante a Convenção Nacional Republicana daquele verão em Miami, que nomeou Richard Nixon para a presidência.
Durante a sua campanha em 1968, George Wallace, candidato à presidência favorável à segregação, também usou a expressão sobre tiros como respostas a saques, conforme lembra a NPR.
Os protestos em Miami naquele verão foram motivados, em parte, pela revolta contra a política de Headley de “parar e revistar” cidadãos negros, e sua preferência pelo uso de “espingardas e cães” no policiamento de comunidades que lutavam por direitos civis.
Como lembrou o jornalista Jonathan Myerson Katz, os protestos se tornaram violentos quando um homem branco passou de carro com um adesivo “Wallace para Presidente” por uma manifestação de negros na noite de 7 de agosto de 1968. A polícia abriu fogo com gás lacrimogêneo e balas . Três pessoas foram mortas pela polícia e um repórter negro do The Washington Post, Hollie West, foi preso em Liberty City por policiais que ignoraram suas credenciais de imprensa.
É improvável que a referência de Trump a Headley e Wallace tenha sido acidental. Em 2016, Trump disse a um repórter do New York Times que seu próprio discurso de posse foi inspirado no proferido por Nixon em 1968. “Acho que Nixon entendeu que, quando o mundo está desmoronando, as pessoas querem um líder forte, cuja prioridade seja primeiro proteger os Estados Unidos” disse Trump. “Os anos 60 foram ruins, muito ruins. E está muito ruim agora. Os americanos sentem que estão novamente em meio ao caos.”
“Este tuíte viola nossas políticas em relação à glorificação da violência com base no contexto histórico da última frase, sua conexão com a violência e o risco de inspirar ações semelhantes hoje”, disse a empresa em uma sequência de postagens explicando sua decisão. “Agimos com o objetivo de impedir que outros se inspirassem a cometer atos violentos, mas mantivemos a publicação no Twitter porque é importante que o público ainda possa vê-la, devido à sua relevância para assuntos de importância pública em andamento.”
De acordo com a política do Twitter sobre postagens passíveis de remoção da plataforma, mas que são exceções pelo seu interesse público, a empresa acrescentou que “o engajamento com o tuíte será limitado. As pessoas poderão retuitar com o comentário, mas não poderão curtir, responder ou retuitar.”
Em uma entrevista coletiva na sexta-feira, o prefeito de Minneapolis, Jacob Frey, foi convidado a responder ao tuíte do presidente, e a uma postagem anterior que o chamava de “muito fraco”.
Frey balançou a cabeça, sem acreditar quando as postagens foram lidas para ele.
Mayor Frey responds to the President’s tweets: Weakness is refusing to take responsibility for your own actions. Weakness is pointing your finger at somebody else during a time of crisis. Donald Trump knows nothing about the strength of Minneapolis. We are strong as hell.. pic.twitter.com/BtMyjrA6on
— Acyn (@Acyn) May 29, 2020
“Bem, deixe-me dizer isso”, respondeu Frey. “Fraqueza é se recusar a assumir a responsabilidade por suas próprias ações. Fraqueza é apontar o dedo para outra pessoa durante um período de crise. Donald Trump não sabe nada sobre a força de Minneapolis. Nós somos muito fortes. Este é um período difícil? Sim. Mas pode ter certeza de que vamos superar isso.”
Mais tarde naquele dia, depois que Derek Chauvin, o policial flagrado em vídeo matando Floyd, foi preso acusado de assassinato em terceiro grau e homicídio culposo, o prefeito tuitou dizendo que as ações eram “um primeiro passo fundamental”.
The man who killed George Floyd has been charged with murder. This an essential first step on a much longer road toward justice and healing our city.
— Mayor Jacob Frey (@MayorFrey) May 29, 2020
Durante a entrevista coletiva na Casa Branca, a expectativa era que Trump falasse sobre o assassinato de Floyd e sua provocação ao prefeito, mas o presidente se limitou a aumentar as tensões com a China, alterando os termos do relacionamento dos Estados Unidos com Hong Kong e anunciando seu rompimento com a Organização Mundial da Saúde, antes de sair sem responder qualquer pergunta.
The President escapes his own press conference to evade questions on Minneapolis pic.twitter.com/e7jKzlvlTL
— Acyn (@Acyn) May 29, 2020
No entanto, sua equipe tentou durante algum tempo driblar a restrição do Twitter, usando a conta da Casa Branca para reproduzir a retórica inflamada do presidente. A postagem da Casa Branca logo foi marcada como restrita, com a mesma mensagem de alerta.
A revolta contra a retórica de Trump se alastrou durante a sexta-feira. A prefeita de Chicago, Lori Lightfoot classificou o comentário de Trump como “profundamente perigoso”.
Lori Lightfoot not holding back on Trump! pic.twitter.com/rNOVT8D42N
— ✶Ⓜ️a𝕣𝕔𝕦𝕤 ▶️ ✶ (@_MarcusD3_) May 29, 2020
“Seu objetivo é polarizar, desestabilizar os governos locais e inflamar o ímpeto racista”, acrescentou. “E não podemos, em absoluto, deixá-lo prevalecer. E vou explicar o que realmente quero dizer a Donald Trump. São duas palavras, começa com ‘F…‘ e termina com ‘-se‘. Não vou ficar calada enquanto esse homem tenta, de forma cínica, usar esse momento de grande dor para seu ganho político “.
A decisão do Twitter de impor um limite para Trump veio poucas horas depois que o presidente emitiu uma ordem executiva ameaçando facilitar que usuários processem a empresa por seu suposto viés político. A ordem foi uma clara retaliação contra o Twitter pela rede ter acrescentado uma mensagem de verificação de fatos a um tuíte no qual Trump fez alegações falsas acerca dos planos para facilitar a votação dos eleitores da Califórnia por correio durante a pandemia.
Jameel Jaffer, diretor executivo do Instituto Knight Primeira Emenda da Universidade de Columbia, disse à Adweek que a própria ordem executiva violava a Primeira Emenda porque se tratava de um ato de retaliação do governo. “A ordem nasceu inconstitucional porque foi emitida como retaliação à verificação dos fatos das postagens do presidente Trump pelo Twitter”, disse Jaffer.
“A Primeira Emenda protege o direito do Twitter de responder ao discurso do presidente, inclusive anexando avisos aos tuítes que incentivam a violência”, disse Jaffer em comunicado enviado ao The Intercept. “Fundamentalmente, essa disputa é sobre se o Twitter tem o direito de discordar, criticar e responder ao presidente. Obviamente, a resposta é sim. É notável e assustador que o presidente e seus conselheiros pareçam acreditar no contrário”.
A colega de Jaffer, Katie Fallow, advogada sênior do Instituto Primeira Emenda, observou que um trecho do texto da ordem executiva, que parecia ter sido acrescentado sem muita revisão, “torna a retaliação ainda mais clara”.
Exhibit one million in 1st Amendment claim of government retaliation. https://t.co/tYq8cfFhXS
— Katie Fallow (@KatieFallow) May 28, 2020
“O Twitter agora decide colocar uma mensagem de alerta em certos tuítes de maneira seletiva, refletindo claramente seu viés político”, diz a ordem executiva. “Como foi relatado, o Twitter parece nunca ter colocado essa mensagem no tuíte de outro político.”
O que é estranho, como observa Fallow, é que a ordem faz referência a “outro político” sem dizer que o primeiro político com o qual a ordem se preocupa é o próprio Trump, embora isso seja bastante claro pelo contexto. Outra pista não tão sutil é que a ordem faz um ataque gratuito ao fato de a empresa não ter rotulado as postagens do deputado Adam Schiff, que liderou o processo de impeachment de Trump, no qual o deputado supostamente “enganou seus seguidores ao tratar da ‘farsa da conspiração com os russos’, refutada há muito tempo, e o Twitter não marcou esses tuítes”.
Tradução: Antenor Savoldi Jr.
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