No início do governo de Jair Bolsonaro, alguns analistas identificavam os militares como possível eixo de estabilidade. Pensava-se que, em oposição à ala ideológica comandada por Olavo de Carvalho, os militares, cientes do seu papel constitucional, manteriam os arroubos autoritários e a agenda radical sob controle republicano. Hoje, no entanto, vemos que alguns militares são, em especial do Exército Brasileiro, parte das forças que mantém de pé a gestão Bolsonaro, além terem também se tornado uma fonte de desestabilização democrática.
A visão otimista sobre os militares estava baseada em uma leitura na qual as Forças Armadas haviam “aprendido a lição” após os anos de vivência democrática, e que não se aventurariam em qualquer tentativa de quebra do Estado Democrático de Direito. Essa visão não era tão otimista a ponto de esperar que a caserna fizesse uma mea culpa sobre os anos de chumbo. Afinal de contas, os atos de insubordinação e discordância de tentativas de apresentar a face oculta da história, como frente à Comissão Nacional da Verdade, já mostravam que não chegariam a tanto. Todavia, esperava-se que a cúpula militar, que jamais morreu de amores por Bolsonaro, fosse o freio de uma previsível jamanta desgovernada no Planalto.
Essa expectativa, por si só, já não era positiva para a democracia. Não era porque já concedia ao autoproclamado poder moderador que os militares historicamente têm sobre a condução política doméstica no país. Quando os guardiões armados entram para a política, diminui-se a previsibilidade, e a opção pelo uso da força passa a ser uma alternativa mais próxima do que outras encontradas pelo diálogo democrático. É a dominação pelo medo, o que fragiliza os controles democráticos constitucionais.
No entanto, frente à possível caótica e ideologizada política bolsonarista raiz, ter militares como balizadores do presidente parecia um mal menor. E, no começo, foi assim. Eles foram forças importantes no desmanche de uma agenda política desastrosa, como a operação abafa feita para demover a família Bolsonaro de tentar qualquer intervenção militar na Venezuela ou no congelamento da tentativa inicial de mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém. O vice-presidente Hamilton Mourão chegou a ser chamado de “o adulto na sala”.
Mas a queda de braço trouxe rapidamente a tônica que esse controle seria uma ilusão, simbolizada por uma grande debandada de militares “moderados” após fritura pública feita pela ala ideológica durante o segundo semestre de 2019. Talvez as saídas que mais representaram essa virada sejam as dos prestigiados generais Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, e de Maynard Marques de Santa Rosa, da Secretaria de Assuntos Estratégicos, a SAE. O desengajamento dos moderados, no entanto, não precipitou o fim do aparelhamento militar do Executivo, como era de se esperar se a hipótese inicial da tutela fosse verdadeira. Muito pelo contrário.
Como se vê hoje no acéfalo Ministério da Saúde, não para de crescer o número de militares da reserva e da ativa em cargos políticos sob a égide do governo federal. E, quanto mais cresce a militarização da política, maiores parecem ser seus laços com o bolsonarismo ideológico, de caráter tanto autoritário quanto negacionista. Logo, de possíveis garantidores de um pragmatismo técnico do governo, militares se tornaram fiadores do que há de pior na agenda obscurantista bolsonarista. A própria tentativa de mudança da embaixada em Jerusalém, outrora demovida por militares, agora volta à cena, com a missão de ser conduzida por um general como embaixador.
Na defesa da agenda autoritária, temos na carta-ameaça ao STF do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional seu elemento mais grave. General da reserva e muito respeitado nas Forças Armadas, Augusto Heleno alertou que, caso o Supremo Tribunal Federal recolhesse o celular do presidente, poderiam haver “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”. Segundo ele, tal pedido seria “evidente tentativa de comprometer a harmonia de poderes”, ignorando que ele próprio, com sua ameaça à instância máxima do poder Judiciário, desequilibra a harmonia de poderes intervindo em uma prerrogativa constitucional do STF de investigar o presidente da República sobre possíveis crimes de responsabilidade ou comuns.
“É general de pijama, não apita nada nas Forças da ativa”, dirão alguns desavisados que ignoram a premissa fundamental da lógica militar: o respeito à hierarquia. Tanto que, quase que imediatamente, a carta de Heleno foi endossada pelo ministro da Defesa, Fernando Azevedo, outro general da reserva. Ainda que se possa questionar a utilidade da apreensão do celular do presidente da República – e ainda que se possa também questionar a possível desarmonia dos poderes com o pedido –, o alerta contra as “consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional” soa muito mais uma ameaça contra a ordem democrática, com o apoio ou anuência das Forças Armadas, do que qualquer outra coisa.
Chama também a atenção a nota emitida por oficiais da reserva da turma de Heleno, em sua formação na Academia Militar das Agulhas Negras, a Aman, de tom mais forte e disruptivo, o que foi também seguido por outras turmas e associações de militares da reserva, sempre reproduzidas pelo twitter de Heleno. Ecoando a visão binária bolsonarista, separando pessoas entre boas e más, atacam enfaticamente o STF e seus ministros, e culminam chamando de guerra civil as “consequências imprevisíveis” apontadas por Heleno.
Com o apoio notório a milícias, com o incentivo ao armamento da população “de bem” e, agora, com o apoio dos militares (por ora, majoritariamente da reserva), uma guerra civil, de caráter irregular e complexo, é, sim, uma possibilidade real. O que os signatários não parecem compreender é que seriam eles alguns dos responsáveis por sua deflagração, ao forçarem, pela via das armas, sua visão do que é certo ou errado (ou, em suas visões, bom ou mau) para a condução do país. Resta evidente agora o porquê de os militares não serem atores políticos em uma democracia consolidada.
Militares de patentes altas da reserva não são apenas respeitados, são, em muitos casos, líderes que inspiram e mobilizam a ativa – em especial quando, abandonada a farda, abraçam a agenda política. Esse é o caso também de outros dois generais simbólicos da pauta autoritária do Exército brasileiro: Hamilton Mourão e Eduardo Villas Boas.
O primeiro se promoveu politicamente com atos de insubordinação a dois presidentes, Dilma Rousseff e Michel Temer, e chegou à vice-presidência. Mesmo que, frente aos arroubos de Bolsonaro, Mourão se apresente como um militar “paz e amor”, jamais demonstrou forte apreço pela democracia, sendo ele próprio um exemplo aos fardados que a insubordinação política no Brasil compensa. Enquanto o mundo assistia atônito à reunião ministerial para tratar do coronavírus, mas que, além de pouco tratar do tema, foi um festival de grosserias, autoritarismo e conspiracionismo, Mourão engrossa o discurso do chefe com ataques à imprensa, negacionismo sobre o avanço do desmatamento da Amazônia e apelo a um discurso de moderação. Moderação esta que eles próprios parecem não exercer.
Já o segundo, Villas Boas, é igualmente um general da reserva com alto prestígio nas Forças Armadas. Seu estado de saúde, acometido por uma grave e comovente doença degenerativa, não lhe afastou da política. É bastante ativo no Twitter, onde ele fez também ameaças ao STF, enquanto era comandante do Exército, às vésperas de julgamentos de casos que envolviam o ex-presidente Lula. Junta-se, assim, a Heleno, também bastante ativo na rede – e, não raramente, em posts nada republicanos, como os que chama Ciro Gomes de “lixo humano” e “débil mental”.
Se havia prestígio acumulado nos anos da Nova República pelas Forças Armadas, esse prestígio se esvaiu quando optaram pela política do coturno.
Outro general de prestígio, que foi para a reserva para assumir a Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos também aderiu à agenda de esgarçamento das instituições ao também promover o enfrentamento ao STF, rebatendo o alerta antifascista do ministro decano Celso de Mello, inclusive acusando-o de ser antipatriota. A defesa do presidente, aliás, segue a linha do que o próprio solicitou na reunião ministerial de 22 de abril. Está posta a lealdade à figura e à agenda política dos Bolsonaro.
No aspecto negacionista, o aparelhamento do Ministério da Saúde é sintomático. Enquanto a Organização Mundial da Saúde interrompe pesquisas sobre a cloroquina para o tratamento da covid-19 devido à conclusão, por diversos cientistas, que ela aumenta os riscos de morte, o general da ativa Eduardo Pazuello, ministro interino, sustenta a posição de Bolsonaro de estímulo do uso da medicação. Esses militares, que ocuparam rapidamente os cargos técnicos no Ministério da Saúde, preferem mudar os protocolos de tratamento da covid-19 do que reconhecer que participaram de uma política pública desenfreada do presidente, a produção em larga escala da medicação pelas Forças Armadas. A militarização da saúde é, portanto, outro sintoma grave do desequilíbrio das relações civis-militares no Brasil.
Igualmente preocupante é a decisão do Centro de Comunicação Social do Exército Brasileiro, de longe a força mais engajada na sustentação da agenda obscurantista de Bolsonaro, de proibir o uso das expressões “isolamento social” e “distanciamento social” em suas comunicações oficiais. Isso evidencia um descompasso entre a declaração do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, que disse, no final de março, que o combate ao coronavírus seria o maior desafio da atual geração, e as novas orientações negacionistas puxadas pelo presidente.
Venho alertando que a participação de militares em cargos políticos de maneira sustentada e coordenada, em especial os militares da ativa, é um erro, pois desequilibra o eixo de sustentação democrático das relações civis-militares. Acertam, pois, tanto o professor Joaquim Falcão quanto o ex-ministro bolsonarista, general Santos Cruz, ao darem voz a um mesmo tema: não cabe ao militar, em especial da ativa, participar da política. E, quando o aparelhamento de militares da reserva se torna generalizado, isto se torna igualmente um problema de equilíbrio democrático, como também concordou o professor Jorge Zaverucha. Em especial quando tantas manifestações de militares da reserva ecoam ameaças institucionais e intervenção armada na política.
Por fim, comum em declarações de muitos militares do governo, insiste-se em negar qualquer possibilidade de golpe por parte das Forças Armadas, desmerecendo quem alerta para tal como “esquerda radical”, pelas palavras em tuíte recente do ministro Heleno. Acontece que quem dá golpe é quem quer tirar um governante e se estabelecer no poder, e, hoje, as Forças Armadas, em especial o Exército Brasileiro, são o bastião de governabilidade de Bolsonaro.
Vale lembrar que o próprio vice-presidente já aventou um autogolpe, conduzido por militares da ativa, em caso de “anarquia” (sic). Considerando o acirramento das tensões do governo com as instituições, não se pode desconsiderar que ele seja proposital, buscando criar um caos social e justificar, assim, o uso das Forças Armadas para o projeto autoritário de poder do presidente e de sua família. Se havia prestígio acumulado nos anos da Nova República pelas Forças Armadas, esse prestígio se esvaiu quando optaram pela política do coturno.
É o momento de valorizar as vozes dissonantes que, sim, existem dentro das Forças da ativa e da reserva – com destaque para os pronunciamentos recentes de Santos Cruz. Resta-nos saber se essas vozes conseguirão apoio suficiente para evitar o autogolpe já em gestação, prenunciado por Mourão e abertamente defendido pela família Bolsonaro, e com fortes ecos entre militares.
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