Gastei seis preciosos minutos da minha vida lendo o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão, publicado no Estadão. Quando cheguei ao fim, me perguntei: será que o vice-presidente, da sua sala com ar-condicionado nos palácios de Brasília, sabe o nome de algumas das crianças brutalmente assassinadas pela polícia militar recentemente? Lembro de várias.
O artigo de Mourão tem problemas em tantos níveis que vou precisar me ater em apenas alguns deles. Rebater ponto a ponto daria uma série na Netflix.
Mourão critica os protestos contra o governo Bolsonaro e a legitimidade de considerá-los em defesa da democracia ou antirracistas. Diz o vice-presidente: “não me dirijo a eles [manifestantes], sempre perdidos de armas na mão, os que em verdade devem ser conduzidos debaixo de vara às barras da lei”.
Quando li essa frase, eu perdi um pouco o rumo, confesso. E perdi porque lembrei que a polícia da corte – da qual derivam nossas forças de segurança – foi criada para capturar “negros fujões”, debelar rebeliões e garantir a propriedade. Gente era propriedade também. E eram capturados com a vara na mão de seus algozes. A mesma vara que agora apela Mourão sob o bradar da lei. Uma lei que serve a quem?
Quando Mourão questiona “Aonde querem chegar (os manifestantes)? A incendiar as ruas do País, como em 2013? A ensanguentá-las, como aconteceu em outros países?”, lembrei do chão ensanguentado da Estrada do Camboatá, no Rio, onde em 7 de abril de 2019, dois blindados do Exército – o mesmo Exército que formou Mourão – dispararam tiros contra uma família. No chão, ficaram 70 marcas de tiros. No banco onde Evaldo Rosa estava sentado, foram 11 tiros.
As ruas já estão cheias de sangue, como o filho de Evaldo, hoje com nove anos, sabe. Ele tem o direito de reagir ao assassinato do pai, o arrimo daquela família, se quiser. Ao ignorar as raízes das manifestações, Mourão tenta criminalizar um movimento de reação à criminalidade. E se o filho de Evaldo levantasse a mão contra esse estado assassino, junto da dele estaria a minha – e a de muitos outros.
Será que Mourão sabe que a perícia mentiu sobre esse fuzilamento? Sabe que, apesar da determinação da justiça, a família de Evaldo recebeu apenas parte da indenização que lhe é devida?
O vice-presidente tem ciência que aquela operação feita pelo Exército teve a legalidade questionada pelo Ministério Público Militar? Para promotoras, a operação parecia “avançar em ações de Garantia de Lei e da Ordem”, o que exigiria autorização do presidente – o mesmo do qual Mourão é vice, mas que, claro, não foi responsabilizado. No fim, o caso foi arquivado pela Procuradoria-Geral da Justiça Militar.
O filho de Evaldo tem o direito de estar com raiva, muita raiva. E ele não é o único. São muitos Evaldos aqui no andar de baixo da pirâmide, onde a injustiça e a violência do estado são norma, não exceção.
Mourão afirma que os protestos “podem servir para muita coisa, mas jamais para defender a democracia”. Será que ele acha que a democracia chegou para Evaldo? Ou para Agatha, que hoje teria a mesma idade do filho de Evaldo, se não tivesse sido morta por um policial militar no Complexo do Alemão?
Eu fui nos protestos pela morte de Agatha. Eu não sei se o vice-presidente já ouviu choro de mãe. É das coisas mais doloridas que já ouvi. Se a mãe de Agatha acendesse uma tocha, eu seguraria junto.
Sabe qual era a cor deles? Evaldo era negro. Agatha também.
Mourão critica as comparações entre as manifestações antirrascistas daqui e dos EUA e afirma que nossa formação social “não nos legou o ódio racial nem o gosto pela autocracia”. Não? Ele, então, cita a frase de Thomas Jefferson “toda diferença de opinião não é uma diferença de princípios” para defender seu ponto. Uma escolha reveladora citar um escravocrata que era o dono de mais de 600 pessoas. Ao negar a existência do racismo no Brasil, o vice-presidente mostra que a aspa do escravocrata não se aplica nesse caso.
O que dizer de uma polícia que mata duas vezes mais pretos do que brancos? De cada 13 mortos pela polícia no Rio de Janeiro em 2018, só dois eram brancos. Até policiais negros morrem mais que policiais brancos!
Em 10 anos, a polícia do Rio matou quase o dobro de todas as polícias dos EUA. O vice-presidente tem razão quando diz que o Brasil tem problemas, “não precisa importá-los”. Esses problemas já foram importados para os EUA e para o Brasil com o mercado escravocrata. Só que aqui é ainda mais grave. O nosso racismo estrutural, que leva diversos especialistas a classificar o que acontece por aqui como um verdadeiro genocídio da população negra, não se compara à situação de lugar nenhum no mundo.
O que Mourão finge não saber é que nossa luta para nos mantermos vivos é global. Hoje ela acontece em Minneapolis, em Paris, em Nova York, em San Juan, no Rio, em São Paulo. Quando diz que “é forçar demais a mão associar mais um episódio de violência e racismo nos Estados Unidos à realidade brasileira”, o vice-presidente demonstra que não quis entender nada. E essa negação da realidade é exatamente a razão pela qual milhões estão nas ruas hoje.
Os corpos negros aqui e em qualquer lugar não estão dispostos a aceitar a morte cotidiana. Não fomos às ruas domingo pelo que aconteceu só com George Floyd, fomos à rua por João Pedro, Agatha, Evaldo, Eduardo e muitos, muitos outros. Mourão não quis ouvir os gritos de “I can’t breathe” ou a voz de João Pedro, apavorado em meio a operação antes de ser morto dentro de casa. Mas o fato de ele ter escrito esse artigo mostra que Mourão não pode nos ignorar quando estamos juntos, em massa.
Mourão conclui dizendo que “sessentões e setentões nas redações e em gabinetes da República resolveram voltar aos seus anos dourados de agitação estudantil”. Eu ri, confesso. Ri porque essa cria da ditadura devia ter escrito esse texto de frente para o espelho.
Um pijama cairia tão bem.
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