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O currículo de Raimunda Alves dos Reis é sucinto: comanda um quiosque de lanches em uma região industrial de Brasília e, nas horas vagas, engrossa protestos contra o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e outros inimigos do bolsonarismo. Provavelmente por causa disso, ela ganhou em maio de 2019 um cargo no Ministério dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Como assistente técnica da chefia de gabinete da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres, cargo que ocupa por nomeação política, sem concurso público, Reis recebe um salário de R$ 2.701,46 mensais.
A função exige uma jornada de 40 horas de trabalho semanais. Mas ao menos parte do horário de trabalho de Reis é gasta em manifestações de extrema direita. E ela não tem pudor de mostrar isso nas redes sociais.
Na tarde de 9 de junho passado, uma terça-feira, a cadeira dela no gabinete ficou vazia. Reis trocou o escritório por um protesto contra a cassação da chapa Bolsonaro-Mourão em frente ao Tribunal Superior Eleitoral – e postou vídeos e fotos no Facebook.
Em um deles, ela diz que o ato é para “defender o Brasil do comunismo”. Em outro, filma a si mesma na manifestação. Uma das faixas que aparecem nos vídeos dela, com os dizeres “TSE, o presidente fica”, também foi registrada por fotógrafos que estiveram lá naquele dia, como mostra esta matéria. A sessão começou às 19h, segundo o TSE, mas manifestantes estavam no local desde a tarde, de acordo com o portal Metropoles. Reis também estava por lá nesse horário. Naquela terça-feira, o sol se pôs às 17h46 – ou seja, antes do fim do expediente no serviço público. Em um dos vídeos postados por Reis, o sol ainda brilhava.
Em 11 de junho de 2019, um mês após ganhar o cargo público, Reis saiu do trabalho durante a tarde de terça-feira para participar da Marcha Nacional pela Vida, organizada por grupos antiaborto, e fez uma transmissão ao vivo do ato pelo Facebook. Uma matéria do G1 publicada no mesmo dia mostra manifestantes com as mesmas roupas e faixas da filmagem de Reis. No dia seguinte, a servidora aproveitou para postar fotos. Numa delas, segura um cartaz com a montagem de um bebê crucificado. A luta contra o aborto mesmo em casos de estupro ou de risco à vida da mãe é uma das principais bandeiras de Damares.
Em 2 de agosto passado, Reis novamente abandonou seu posto no ministério, à tarde, para fazer um ato contra a OAB, a Ordem dos Advogados do Brasil. Era uma reação às críticas do presidente da organização, Felipe Santa Cruz, contra provocações de Bolsonaro – dias antes, o presidente de extrema direita dissera que poderia contar como o pai de Santa Cruz sumiu na ditadura. Fernando Santa Cruz de Oliveira desapareceu em fevereiro de 1974 após ter sido preso por agentes do regime militar no Rio de Janeiro. O atestado de óbito informa que ele foi morto pelo estado brasileiro.
Em um vídeo postado naquela sexta-feira, Reis afirma que OAB significaria “Ordem dos Advogados Bolivarianos” e que o Supremo Tribunal Federal “comete injustiças” em vez de preservar a justiça. Ela emendou o ato com uma manifestação, em frente ao STF, em apoio à nomeação do chefe da operação Lava Jato no Paraná, Deltan Dallagnol, para a Procuradoria-Geral da República. Na transmissão ao vivo, aproveitou para convocar as pessoas para um ato “contra esse STF”.
Esculhambação total
O cargo de Reis parece ter sido um presente pelo seu envolvimento nos protestos. Ela é uma das dirigentes do Movimento Rua Brasil, que costuma ocupar a Esplanada dos Ministérios com camisetas e bandeiras do Brasil em apoio ao presidente e a pautas antidemocráticas, como o fechamento do STF e do Congresso.
A comissionada de Damares é dona do quiosque de lanches Dominó, localizado no Setor de Indústria e Abastecimento de Brasília, e que é ponto de encontro de bolsonaristas.
Em 2018, o então candidato ao governo do Distrito Federal pelo PSL, Paulo Chagas, mais um militar da reserva que usou a patente dos tempos da caserna no nome de urna, escreveu em sua página no Facebook que o quiosque “é um ponto de referência para os cidadãos de Brasília que estão comprometidos com o fortalecimento da democracia e a renovação de nossa política”. Naquele ano, Reis se candidatou ao cargo de deputada distrital pelo PRP, mas teve 679 votos e não se elegeu.
Reis também é, aparentemente, próxima de Damares. A ministra aparece em várias fotos com Reis, antes e depois de ela virar comissionada no ministério. Em um vídeo postado no Instagram de Reis no período eleitoral, Damares elogia a amiga e diz que a incentivou a se tornar candidata. “Está na hora de a gente renovar a política em todas as esferas. E, no Distrito Federal, nós temos um nome: Ray”, propagandeou Damares, chamando Reis pelo apelido. “O Brasil deve muito à Ray. Eu devo muito à Ray”.
Reis não é a única funcionária paga com dinheiro público que participa de atos a favor do chefe no horário de trabalho. Angela Telma Alves Berger, funcionária de carreira da Escola Nacional de Administração Pública, a Enap, vinculada ao Ministério da Economia, também faz isso.
No último dia 5, ela postou no Facebook um vídeo gravado na tarde anterior, uma quinta-feira, em que aparece exaltada na Praça dos Três Poderes, junto com outros manifestantes, gritando para os “comunistas irem embora”. Sua página também é recheada de postagens com conteúdo mentiroso a favor de Bolsonaro e contra o STF, o Congresso e os partidos de oposição, quase todas feitas em dias úteis e durante o expediente. Ela recebe R$ 7.286,65 mensais.
Foi Berger quem agrediu a jornalista Clarissa Oliveira, da TV Band, com uma bandeirada em um ato em 17 de maio, em frente ao Palácio do Planalto, que teve a presença de Bolsonaro. Vídeos mostram que a servidora intencionalmente acertou a cabeça da repórter com o mastro de uma bandeira do Brasil. Depois, ela tentou dizer ter havido “um acidente”, porque “se descuidou”. Oliveira registrou boletim de ocorrência, dizendo que, antes da agressão física, Berger já xingava os jornalistas que faziam a cobertura do protesto.
Outro manifestante que era pago com dinheiro público para ir a protestos é Renan da Silva Sena, que agrediu enfermeiras durante um ato de valorização de profissionais da saúde e foi preso após disparar fogos de artifício contra o prédio do STF no sábado, 13 de junho. Segundo a Folha de S.Paulo, ele não comparecia ao trabalho desde março, alegando estar doente – o que não o impediu de ir a protestos. Ele era funcionário terceirizado do ministério de Damares, mas foi desligado devido às ações violentas.
Os salários de Reis e Berger, que juntas tiram quase R$ 10 mil por mês dos cofres públicos, deveriam pagar sua prestação de serviços ao cidadão – assim como o de Sena, cuja remuneração exata não é disponibilizada por ele ter sido terceirizado. Não deveria ser necessário dizer, portanto, que a verba não pode ser usada para bancar manifestantes que atuam apenas para enaltecer o governo que os paga.
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