Depois que o STF decidiu colocar freios no projeto bolsonarista de destruição da democracia, o golpismo do Planalto, que já vinha numa escalada, chegou ao degrau mais alto. Na manhã da última terça-feira, 16 de junho, o ministro Alexandre de Moraes determinou o cumprimento de 26 mandados de busca e apreensão e a quebra de sigilo bancário de 10 deputados e um senador bolsonaristas. À noite, Bolsonaro escreveu nas redes sociais um comunicado cifrado, repleto de mentiras delirantes, mas que deixa claro que a opção do golpe de estado está sobre a sua mesa.
No texto, cria-se um cenário em que o conservadorismo, representado pelo bolsonarismo, está sendo brutalmente perseguido pelas forças do sistema, que foi dominado por muitos anos por governos socialistas. Inconformada com um inédito Executivo incorruptível, a velha política estaria perseguindo esses valorosos homens de bem da nação. A democracia estaria sendo destruída por essas forças de oposição, e o governo não irá mais aceitar essa situação.
Esse retalho de mentiras serviu para a fabricação de uma narrativa para justificar a ruptura democrática. As ameaças estão cada vez mais frequentes. O recado é claro: o Planalto considera que governar por vias democráticas é algo impraticável e não hesitará em resolver esse problema à sua maneira.
E não é apenas o STF que está atrapalhando o projeto autoritário do bolsonarismo. Além de trocentos pedidos de impeachment protocolados na Câmara contra o presidente, estão no encalço do bolsonarismo o MPF, o MP-RJ, o TSE e o TCU. A democracia começa a dar alguns espasmos de reação.
Mas Bolsonaro teria força para sustentar um golpe de estado? Aparentemente, não. Como bem lembrou o jornalista Reinaldo Azevedo, o que Bolsonaro fará no dia seguinte ao golpe? Irá prender os governadores e prefeitos oposicionistas? Mandará um cabo e um soldado para o STF? Fechará o Congresso?
Difícil imaginar que tudo isso se mantenha de pé. Isso isolaria ainda mais o Brasil do resto do mundo e não há certeza nem se teria o apoio de Trump, que tem feito questão de se distanciar de Bolsonaro desde o início da pandemia. E as elites? Estão dispostas a encampar essa aventura que irá inevitavelmente aprofundar ainda mais a crise econômica? Independemente do pano que elas têm passado até agora, não me parece que estejam dispostas a perder mais dinheiro.
Apesar do histórico golpista, é difícil imaginar que esse bando de trapalhões que nos governa tenha capacidade para sustentar um golpe dessa magnitude. Será preciso bem mais que tanques e mamadeiras de piroca para segurar a reação da sociedade civil, cuja maioria é contra o bolsonarismo. A sociedade brasileira em 2020 é muito mais complexa que a de 1964. Um golpe hoje requer uma engenharia muito mais sofisticada, e sofisticação não combina com bolsonarismo.
Mesmo que não haja, aparentemente, condições materiais para sustentar um golpe, não significa que o bolsonarismo não irá tentá-lo. Embora seja incompetente, essa turma é impetuosa e aprendeu a fazer política sob a ótica do golpismo. Até os militares, que até pouco tempo atrás eram considerados a ala mais pragmática do governo (em contraste com a ala olavista), parecem ter encarnado de vez a narrativa bolsonarista. Praticamente todas as recentes declarações de seus líderes têm caráter golpista.
Sabe-se também que Bolsonaro tem grande apoio entre os militares de baixa patente das Forças Armadas – resta saber o tamanho disso. Outra adesão preocupante vem dos policiais militares. Nas últimas manifestações de rua ficou claro que as polícias militares de todo o Brasil tratam bolsonaristas de maneira especial. As ilegalidades das manifestações golpistas são ignoradas, enquanto as antifascistas foram duramente reprimidas.
Segundo o Correio Braziliense, governadores de vários estados estão preocupados com as informações de que, se os soldados da PM tiverem de escolher entre eles e Bolsonaro, ficarão com Bolsonaro. Ou seja, temos uma massa de policiais militares disposta a cometer o crime de insubordinação para apoiar a aventura golpista do presidente. O Palácio do Planalto tem mantido contatos diários com as lideranças das PMs de todo o país. Ainda segundo o Correio Braziliense, muitos desses contatos são feitos pelo “Gabinete do Ódio”, que “identificou entre os PMs uma das bases mais fiéis ao presidente”.
Há grande potencial para que o que aconteceu no Ceará, quando policiais amotinados atiraram para matar um senador da República, possa acontecer em vários estados do país caso Bolsonaro os convoque para sustentar o golpe de estado. É importante lembrar que policial que se recusa a cumprir ordens do seu governador passa automaticamente a ser um miliciano.
Logo após o comunicado golpista do presidente, Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República, recomendou a sua leitura e escreveu de forma enigmática, como de costume:
Tá na hora!
— Filipe G. Martins (@filgmartin) June 17, 2020
Imediatamente, a militância e os perfis fakes mais famosos do bolsonarismo passaram a comemorar. Nas respostas ao tweet, fica claro que eles entenderam a mensagem cifrada: “tá na hora” da intervenção militar. Imediatamente começaram a subir a tag #PrisaoDoAlexandreDeMoraes para aparecer nos assuntos mais comentados do dia.
No dia seguinte, Bolsonaro daria mais pistas do que se trata o “tá na hora!” de Martins. Em conversa com apoiadores, afirmou que algo como a quebra de sigilo de parlamentares nunca havia acontecido na história da democracia. Disse também que “eles (STF) estão abusando” e que “está chegando a hora de tudo ser colocado no seu devido lugar. Está chegando a hora de nós acertarmos o Brasil no rumo da prosperidade e todos, sem exceção, entender (sic) que democracia não é o que eu quero, ou o que você quer, ou que é um poder quer. Está chegando a hora. Fiquem tranquilos”.
Na manhã seguinte à ameaça, o cerco ao bolsonarismo apertou mais um pouco. Fabrício Queiroz, o amigo de 30 anos do presidente e suspeito de comandar o esquema de desvio de verbas no gabinete do seu filho, foi preso pela polícia. Ele ficou escondido durante um ano numa casa do advogado da família Bolsonaro. Queiroz, que também manteve negociações financeiras mal explicadas com a primeira-dama, é um dos elos da família Bolsonaro com o Escritório do Crime, a milícia suspeita de matar Marielle.
Aliás, é importante lembrar que Adriano Magalhães de Nóbrega, o chefe dessa milícia – que também é amigo de longa data de Queiroz – estava escondido na casa de um vereador bolsonarista quando foi preso. Portanto, dois aliados do presidente, comprovadamente ligados ao crime organizado, se esconderam da polícia em imóveis de gente ligada à família Bolsonaro. É nesse nível de banditismo que chegamos: amigos da família do presidente suspeitos de crimes graves se escondem em casas de aliados e advogados do presidente. A prisão de Queiroz será usada para incrementar a narrativa delirante de perseguição.
O golpismo, que já estava ouriçado, chegou a um ponto de não retorno. Não dar o golpe agora, depois de tanta ameaça, seria frustrante para os bolsonaristas mais fanáticos. Chegamos a um impasse que torna uma tentativa de golpe possível: o presidente é incapaz de governar pelas vias democráticas, e a oposição não tem força suficiente para derrubá-lo. Com o apoio de homens armados dispostos a trair a Constituição e defender as loucuras do presidente, não é mais possível encarar essas ameaças como mero blefe. Acuado pelas instituições, porém fortemente armado, o bolsonarismo está decidido a aniquilar de vez a democracia. Como afirmou recentemente o filho do presidente, parece que a ruptura não é mais uma questão de “se”, mas de “quando”. Resta saber se os bolsonaristas terão peito para cumprir essa ameaça. Se levarmos em conta a vergonhosa fuga de Weintraub para os EUA, arquitetada com a ajuda do presidente, não falta apenas competência para aplicar um golpe de Estado. Falta também coragem.
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