Ao esquadrinhar a rotina dos 51 vereadores da Câmara Municipal do Rio, policiais e promotores envolvidos na investigação do assassinato de Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes, identificaram uma espécie de “bancada da milícia” atuando no legislativo da cidade. É o que revelam os apensos sigilosos anexados ao inquérito da Delegacia de Homicídios aos quais o Intercept teve acesso.
Os investigadores descrevem as ligações entre quatro vereadores e milicianos que atuam em seus respectivos redutos eleitorais. Trata-se de Ítalo Ciba, do Avante; Jair Barbosa Tavares, o Zico Bacana, do Podemos (ambos ex-policiais militares); Chiquinho Brazão, do Avante, eleito deputado federal em 2018; e Marcello Siciliano, do PP.
As informações foram descobertas a partir das quebras dos sigilos dos dados de comunicação dos quatro e do ex-vereador Cristiano Girão Matias, além de outros 18 suspeitos de envolvimento com grupos paramilitares. Girão perdeu o mandato em 2011 após ter sido preso em decorrência da CPI das Milícias. Em março de 2018, mês em que Marielle morreu, voltou a circular pela Câmara Municipal, como revelamos no Intercept.
A CPI, encerrada em 2008, indiciou mais de 260 pessoas por ligação com milícias, entre elas outros seis vereadores e um deputado estadual. Dez anos depois, a milícia parece ter retomado a sua influência no legislativo municipal.
Segundo as investigações, o vereador Siciliano mantinha contato frequente com pessoas ligadas diretamente ao policial militar Ronnie Lessa. Preso preventivamente desde março de 2019, ele é acusado pelo Ministério Público do Rio de ser o executor de Marielle e Anderson e apontado como chefe de uma milícia na zona oeste do Rio.
Nas agendas telefônicas de Siciliano estavam os números da academia de ginástica da qual o ex-PM era sócio, juntamente com a esposa, em Rio das Pedras, favela na zona oeste do Rio dominada pelos paramilitares. O vereador tinha ainda os telefones de um sobrinho de Lessa, que também é PM, de Élcio de Queiroz, apontado pelo MPRJ como motorista do Cobalt usado para vigiar os movimentos da vereadora na noite do assassinato, e do sargento do Corpo de Bombeiros Maxwell Simões Corrêa, o Suel.
O bombeiro foi preso no último dia 10 de junho por suspeita de envolvimento na morte de Marielle; o sobrinho de Lessa teve o celular apreendido na mesma operação.
Em audiência em outubro, gravada na penitenciária federal de Porto Velho, em Rondônia, Lessa justificou assim o contato com o vereador: “O Siciliano é um cara que chegava na mesa de todo o mundo e abraçava todo o mundo, bebia do copo dos outros. É político, né. Mas nada além. Nunca soube o nome da esposa dele, não sei o terceiro nome dele. É Marcello Siciliano e só”. Já Suel e Élcio disseram em depoimentos prestados à Delegacia de Homicídios que conheceram o político durante a campanha eleitoral para vereador em 2016, mas argumentaram não ter “vínculos de amizade” com ele.
Em uma das ligações grampeadas pelos investigadores em novembro de 2018, uma pessoa identificada como Renata questiona Siciliano a respeito de uma vaga para um vizinho. Ele pergunta de que vaga ela está falando e a interlocutora responde: “Milici… Hmm, pera aí que ele me mandou uma mensagem […]”. “Ah, tá, você está procurando emprego, né. Me manda um WhatsApp”, responde o vereador.
Na relação de telefones na agenda de Siciliano apareciam também os contatos dos ex-PMs e milicianos Orlando Oliveira de Araújo, o Orlando Curicica, e Rodrigo Jorge Ferreira, o Ferreirinha, além de diversos telefones de lideranças comunitárias de áreas sob influência dos paramilitares. Segundo os investigadores, isso revela a influência do político nessas localidades.
Foi Ferreirinha quem, em depoimento de maio de 2018, acusou o vereador de ter tramado com Curicica o assassinato da vereadora do Psol. A versão acabou desmentida em uma investigação paralela feita pela Polícia Federal por determinação da então procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Em setembro de 2019, ela denunciou Ferreirinha e outras quatro pessoas por falso testemunho e obstrução da investigação do caso Marielle.
Entre os acusados, está o conselheiro afastado do TCE, o Tribunal de Contas do Estado, Domingos Brazão, apontado por Dodge como mentor do plano de execução da vereadora e da tentativa de atrapalhar as investigações, como mostrou o UOL.
Como tem direito a foro especial, o conselheiro afastado do TCE não foi indiciado no inquérito da Delegacia de Homicídios e do Ministério Público e figura apenas como testemunha. Entretanto, a investigação quebrou o sigilo de dados de comunicação de seu irmão, o então vereador Chiquinho Brazão, eleito deputado federal em outubro de 2018.
Antes que ele ocupasse a cadeira na Câmara Federal que o afastou das mãos dos investigadores fluminenses, a força-tarefa reuniu evidências da relação de Chiquinho Brazão com milicianos que atuam nos bairros Gardênia Azul, Curicica, Rio das Pedras e outras áreas de Jacarepaguá, também na zona oeste do Rio. Nesses locais, além da cobrança de “taxas de segurança” de comerciantes e mototaxistas, são comuns os casos de milicianos participando de grilagens de terras.
A grilagem seria o foco de desavenças entre os milicianos que atuam nas áreas de influência de Chiquinho Brazão e Marcello Siciliano, de acordo com o inquérito. Os dois vereadores disputam o mesmo reduto eleitoral e foram em 2018, respectivamente, presidente e a vice-presidente da Comissão de Assuntos Urbanos da Câmara. A comissão tem entre suas atribuições definir as regras para o uso de áreas públicas, do cadastro territorial e a realização de obras e de serviços nas áreas municipais.
A disputa pelo lucrativo mercado imobiliário ilegal nas favelas também é uma das linhas de investigação para tentar esclarecer a motivação por trás da execução de Marielle. Uma das hipóteses levantada pelos investigadores é a de que um projeto de lei apresentado pela vereadora para regulamentar a ocupação do solo em favelas, que recebeu o número 642/2017, motivou sua execução. Se aprovada, a lei criaria obstáculos à grilagem de terras e às construções irregulares de prédios – atividades que se tornaram importante fonte de renda dos milicianos que agem em comunidades da zona oeste do Rio.
Em depoimentos à polícia, Brazão e Siciliano negaram envolvimento na execução de Marielle e disputa por territórios. Chiquinho Brazão saiu do alcance dos investigadores fluminenses assim que tomou posse como deputado federal, mas seu nome e o do irmão foram mencionados como os de possíveis mandantes do assassinato da vereadora e seu motorista em depoimento de Orlando da Curicica à PGR. Depois disso, Raquel Dodge solicitou a federalização do caso. O pedido foi negado pelo STJ no fim de maio.
Procuramos os promotores do Rio responsáveis pela investigação da execução de Marielle e Anderson para que comentassem as informações do inquérito, mas eles se negaram a dar entrevista, alegando que o caso está sob segredo de justiça.
Ex-PMs suspeitos
Além de Siciliano e Chiquinho Brazão, o inquérito vê fortes ligações com milicianos de outros dois vereadores cariocas: o ex-cabo da PM Jair Barbosa Tavares, o Zico Bacana, e o tenente reformado da PM Ítalo Pereira Campos, o Ítalo Ciba.
Zico foi relacionado à milícia pela primeira vez no relatório da CPI das Milícias, em 2008. Na época, ele foi apontado como chefe do grupo paramilitar que atua nos bairros de Guadalupe e Ricardo de Albuquerque, na zona oeste. Oito anos depois, em 2016, se elegeu vereador pela primeira vez. Na mesma eleição Marielle Franco chegou à Câmara. Antes, ela ajudara na apuração do relatório da CPI quando trabalhava como assessora parlamentar do então deputado estadual Marcelo Freixo.
O vereador nomeou como assessor parlamentar Marcos José Tavares Muniz, o Juca, identificado pelos investigadores como seu sucessor no comando da milícia. Em depoimento, Zico negou as acusações e afirmou não ter nenhum assessor envolvido com os paramilitares. Segundo os documentos a que tivemos acesso, Juca comanda a área de Guadalupe, sendo consultado tanto por criminosos quanto por moradores para a realização de atividades na área.
Já Ítalo Ciba tem em sua agenda telefônica uma série de contatos de PMs e ex-PMs envolvidos em grupos milicianos de Jacarepaguá e de Seropédica, município da região metropolitana do Rio. Segundo o relato dos investigadores nos documentos, fica clara a relação dele com esses grupos. Antes de entrar para a política, Ciba foi companheiro de guarnição do ex-capitão Adriano da Nóbrega e chegou a ser preso juntamente com o ex-caveira, acusados de terem executado um guardador de carros.
Questionados sobre as informações citadas pelos investigadores, Siciliano, Brazão, Zico e Ciba não responderam até a publicação desta reportagem.
Resta saber – além de quem mandou matar Marielle – quantos vereadores seriam indiciados por ligações com paramilitares caso a CPI das Milícias fosse realizada hoje.
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