A infrutífera saga de um cientista para testar uma técnica que promete agilizar a triagem de pacientes com suspeita de infecção pela covid-19.

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Como burocracia e má-vontade barraram uma pesquisa promissora sobre coronavírus no Brasil

A infrutífera saga de um cientista para testar uma técnica que promete agilizar a triagem de pacientes com suspeita de infecção pela covid-19.

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A crise do coronavírus

Parte 136


Quando terminou de desenvolver um sistema de alta tecnologia e baixo custo que pode aprimorar o atendimento a doentes de covid-19, o cientista de dados Felipe Soares vibrou ante a expectativa de testá-lo e contribuir com o combate à pandemia do novo coronavírus.

O sistema é parte da pesquisa dos dois doutorados que Soares cursa simultaneamente na Universidade de Sheffield, Inglaterra, e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS. No Reino Unido, a técnica já foi colocada a prova pelo Coronavirus Clinical Characterisation Consortium, um consórcio de pesquisadores em busca de respostas sobre a covid-19.

Um artigo preliminar sobre a pesquisa, publicado pelo brasileiro e seus colegas na revista eletrônica MedRxiv, foi pinçado como “hot topic of the day“, algo como a novidade importante do dia, pelo CDC dos Estados Unidos. Não é pouca coisa. O CDC é o Centro de Prevenção e Controle de Doenças, um dos principais braços do Departamento da Saúde americano. Mas nada disso foi capaz de superar a burocracia e o má-vontade brasileiras.

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A técnica idealizada por Soares usa inteligência artificial para, a partir de dados de exames de sangue comuns e que ficam prontos em pouco tempo, determinar as chances de uma pessoa ter ou não covid-19 antes mesmo de realizar os testes específicos para a doença. Foi concebido para auxiliar na triagem de pacientes que chegam com sintomas em pronto-socorros.

O algoritmo desenvolvido pelo cientista filtra as informações do hemograma em busca de indicadores de pouca probabilidade de contaminação. Ou seja, é um pré-diagnóstico por exclusão. “Se você mapeia rapidamente quem tem menos chances de estar com o coronavírus, pode alocar esses pacientes em ambiente descontaminado e seguro e, ao mesmo tempo, passar os casos mais prováveis para a frente da fila”, ele me explicou.

Primeiro obstáculo à pesquisa foi o hospital Albert Einsten. Em seguida, vieram UFRGS, Ministério Público e governo federal.

As tentativas de emplacar testes da tecnologia no Brasil começaram em março. À época, o Hospital Israelita Albert Einstein lançou um desafio online para estimular o uso de dados no combate ao coronavírus. Para isso, ofereceu os resultados de cerca de 600 exames de sangue laboratoriais sem informações que revelassem a identidade dos pacientes. Além disso, esses dados passaram por um tratamento que, na prática, impossibilita que o sistema de Soares funcione plenamente quando adicionadas as informações de outros centros médicos.

Para ampliar a pesquisa, o cientista precisava dos dados do Einstein num formato diferente e, além disso, de uma base maior. E aí começou a enfrentar resistência. Ele explicou isso ao hospital, mas passou a não receber respostas. Em nota, o Einstein me disse estar avaliando requisitos que permitam “a colaboração entre múltiplas instituições, atendendo a todos os requisitos éticos e de respeito ao sigilo de dados de pacientes”. O hospital informou ainda que irá convocar organizações e pesquisadores interessados, mas não fixou data para fazer isso.

O pesquisador resolveu, então, buscar a ajuda do pró-reitor de Pesquisa da UFRGS, Rafael Roesler. Dele, porém, ouviu que a entrega das informações era uma prerrogativa do Einstein, e o pró-reitor ofereceu como alternativa o setor de pesquisa do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

“Os dados iam [alimentar uma pesquisa que pode] beneficiar muitas pessoas, então acreditei que eles pudessem fazer o pedido [ao hospital paulistano]”, disse Soares. Não funcionou. Inconformado, ele procurou o Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul. Os promotores, porém, remeteram o pedido aos pares do Ministério Público Federal. Lá, o caso foi arquivado em 20 de maio. Na justificativa, o MPF devolveu a bola a quem já se livrara dela, argumentando que a UFRGS poderia ir à justiça para pedir os dados ao Einstein. Em nota, a universidade me disse entender que não cabe a ela fazer isso.

“Fica a critério da entidade [o Einstein] fornecer ou não esses dados anonimizados. Ela não tem obrigação de dar”, explicou o advogado e economista Renato Opice Blum, especialista em direito digital e proteção de dados. “Por que um juiz faria o Einstein neste momento [de pandemia] parar tudo para produzir dados para um teste que pode ou não dar certo?”, afirmou o infectologista e cientista Ricardo Diaz, referência em pesquisa no Brasil. Ele se disse entusiasmado com a técnica proposta por Soares.

Ministério da Saúde e Gabinete de Segurança Institucional ignoraram contatos do cientista.

Enquanto isso, o doutorando buscou um novo caminho. Fez contato com Rosângela Sobieszczanski, chefe da Vigilância em Saúde da Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul, e com Eduardo Silva, coordenador estadual das pesquisas sobre covid-19, e com o Hospital de Clínicas de Porto Alegre. A única resposta que obteve foi do HC – a proposta está em análise pelo comitê de ética. Procurada, a secretaria não se manifestou até o fechamento deste texto.

Soares ainda recorreu ao governo federal – e amargou nova decepção. Um servidor do alto escalão do Ministério da Saúde e um coronel do Gabinete de Segurança Institucional receberam e-mails e telefonemas do pesquisador. Apesar de já haver notícias sobre os “resultados promissores” da técnica proposta por Soares (como noticiaram os portais News Medical Life Sciences e Sanar med), o governo brasileiro não deu resposta alguma.

Procurei Ministério da Saúde e Gabinete de Segurança Institucional para entender os porquês do pouco caso. Da pasta chefiada pelo interino Eduardo Pazuello recebi a mesma resposta que deram a Soares – nenhuma. Já do GSI, de Augusto Heleno, ouvi que o assunto não era “tema afeto” a ele.

“Aparentemente, não há interesse dos órgãos públicos brasileiros. Parece que o Brasil não quer mesmo fazer parte do futuro da pesquisa em coronavírus”, desabafou Soares.

Enquanto isso, na Europa, o pesquisador encontrou apoio. A rede privada de hospitais espanhola HM Hospitales entregou 3 mil resultados de exames de sangue anonimizados. Enquanto espera algum retorno no Brasil, Soares prossegue com a pesquisa na Inglaterra. O artigo final sobre ela está em fase de revisão no Plos One, periódico especializado em ciência e saúde.

Já no Brasil, a pandemia do novo coronavírus segue seu caminho quase sem ser perturbada por uma ação coordenada das autoridades. A covid-19 já matou mais de 50 mil pessoas e contaminou mais de 1 milhão de pessoas, segundo os dados oficiais. Há provável subnotificação de mortes e uma óbvia falta de testes – estimativas veem 15 prováveis casos não identificados para cada um diagnosticado.

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