A mistura de papel higiênico molhado com creme dental tornou-se um dos pratos típicos das penitenciárias cearenses, me contou por telefone Rodrigo*, que saiu recentemente da cadeia. “É uma forma de enganar a fome”, diz. A mesma coisa me disse Silvana*, irmã de outro detento que ainda está preso. A comida entregue nas penitenciárias, segundo os dois, frequentemente chega azeda e o frango, principal proteína servida na quentinha, está sempre cru.
Relato parecido foi feito por uma presa que estava grávida. “Cansei de botar a colher no frango e escorrer sangue e eu comi assim mesmo, porque só tinha aquilo”, contou aos pesquisadores de um dossiê entregue em maio por familiares de detentos à Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do estado. Presa no começo da gravidez com 76 kg, ela chegou ao final da gestação 6 kg mais magra.
Rodrigo, o irmão de Silvana e a grávida passaram por presídios diferentes, mas com algo em comum: recebem alimentação da empresária Idalina Sampaio Muniz Gomes de Mattos. Ela conquistou quase metade dos contratos de refeições para presídios do Ceará nos últimos 12 anos, se tornando a principal fornecedora do governo cearense no ramo.
O problema, no entanto, não se limita à comida ruim. Mattos vem recebendo há anos por contratos duplicados e por quentinhas que não precisa entregar.
Hoje, a empresa de Mattos, a ISM Gomes de Mattos, atende 14 penitenciárias do estado. Tem sido um bom negócio. Um exemplo é o contrato 085/2019, assinado sem licitação em dezembro e encerrado no fim de junho. Por R$ 28,5 milhões, o governo comprou quatro refeições diárias por seis meses para cerca de 13 mil detentos e, aproximadamente, 1 mil servidores de oito unidades prisionais do estado. No entanto, em abril, segundo dados da Secretaria de Administração Penitenciária, havia menos de 9 mil presos nas unidades prisionais que constavam no convênio.
É uma diferença de 16 mil refeições diárias. Mas Mattos segue recebendo pelo valor total do contrato – ou seja, pelas quentinhas para 14 mil pessoas. Duas prisões para as quais Mattos forneceria comida neste contrato e que seriam inauguradas em janeiro, a Unidade Provisória Regional e uma prisão de segurança máxima, inclusive, seguem em construção.
Mattos também lucra com refeições duplicadas para os mesmos presídios. Entre 2013 e 2014, as três Casas de Privação Provisória de Liberdade, de Itaitinga, na região metropolitana de Fortaleza, constavam ao mesmo tempo em dois contratos de fornecimento de quentinhas. Um deles foi assinado em 2008 e prorrogado até 2014; o outro foi assinado em 2013 e prorrogado até 2019. Ambos considerando aproximadamente o mesmo número de presos.
Esse contrato de 2013 chama atenção também pela quantidade de vezes em que foi reajustado. Apenas entre março de 2015 e março de 2016, foram cinco reajustes, o que é proibido pelo próprio acordo, que prevê mudanças no valor apenas nos momentos de renovação do convênio. Além disso, o contrato também limita a renovação em cinco anos, mas ele de fato foi renovado por seis, de 2013 a 2019. A renovação de contratos automaticamante por tanto tempo acaba sendo também um jeitinho de driblar a concorrência. “A empresa oferece um valor baixo e ganha a licitação para um ano, já sabendo que esse preço será reajustado várias vezes”, alerta o diretor-executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino.
Em junho, a empresa de Mattos ganhou mais uma licitação, que lhe garantiu o seu maior contrato até agora. Ela fornecerá comida por um ano para até quase 19 mil dos cerca de 23 mil presos no estado e 2 mil servidores por cerca de R$ 100 milhões.
Penitenciárias fechadas, lucro garantido
Assim que tomou posse para o segundo mandato, uma das principais medidas do petista Camilo Santana, reeleito governador em 2018, foi a nomeação do policial civil Luís Mauro Albuquerque como secretário de Administração Penitenciária. Antes de chegar ao Ceará, ele liderou uma força-tarefa no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, após um massacre que deixou 27 mortos em uma disputa de facções.
Logo que assumiu o cargo, o novo secretário deu início a uma reestruturação no sistema penitenciário cearense. A ideia, em tese, era diminuir o poder das facções e a quantidade de presos no interior. A maior parte dos 23 mil detentos do estado (82%) foi centralizada em unidades prisionais na região metropolitana de Fortaleza. Em maio de 2019, após concluído o processo de reestruturação, 98 cadeias do estado deixaram de existir.
Mais uma vez, a empresa de Mattos foi uma das principais beneficiadas.
Em um dos contratos da sua empresa com o estado, por exemplo, a previsão era fornecer alimentos para 850 detentos de cinco cadeias públicas além da Casa de Albergado de Sobral. Das seis unidades que constavam no contrato, porém, restou apenas – a Unidade Prisional de Sobral, que, em abril, tinha 105 detentas.
Procurei a Secretaria de Administração Penitenciária, que me disse que o valor desse contrato foi “reduzido em 45,55%”. Porém não há qualquer informação no aditivo do contrato assinado em sua renovação, em 2019, sobre quanto a empresária Mattos está realmente ganhando ao fornecer comida para um número oito vezes menor de detentos.
Pelos dados do Portal da Transparência do estado, é possível ver que o valor do convênio foi sendo modificado ao longo dos últimos quatro anos. Assinado em dezembro de 2016 por R$ 7,1 milhões, agora ele custa o dobro, R$ 14,4 milhões. Dessa quantia, R$ 10,4 milhões já foram pagos pelo governo.
A Secretaria de Administração Penitenciária se justifica dizendo que a quantidade de detentos é “imprevisível”. Os contratos de alimentação, segundo o governo, são pagos de acordo com o consumo, através de um sistema próprio de controle. Mas isso não condiz com a análise dos convênios, que tiveram o valor integral depositado ou já têm a dívida reconhecida pelo governo, para ser paga a qualquer momento.
Além de manter o contrato que já tinha para servir comida nas cadeias do interior – mesmo que a maioria delas não exista mais –, a empresária também ganhou dois novos convênios sem licitação, em maio e em dezembro de 2019, para fornecer refeições nas agora superlotadas penitenciárias da região metropolitana.
Também foi na gestão de Santana que os contratos desse tipo para a alimentação de detentos no sistema prisional do estado se tornaram regra. Entre os 27 contratos que analisei entre 2008 e 2019, apenas oito foram assinados sem concorrência. Todos firmados durante os governos do petista, sob o argumento de que se tratavam de convênios emergências.
Na licitação de R$ 100 milhões que transfere para Mattos a alimentação de 82% dos presos do estado, aparece um outro nome recorrente nesses contratos: o empresário César Wagner Madeira Coelho de Alencar. Ele irá receber R$ 6,5 milhões para fornecer alimento por um ano a cerca de mil presos nas cadeias públicas de Crato e de Juazeiro, na região do Cariri.
Oito dos dez convênios vigentes este ano com a Secretaria de Administração Penitenciária do estado estão no nome de Alencar ou Mattos.
A dupla também está entre os principais doadores da campanha do governador. Nas últimas eleições, Mattos doou R$ 70 mil à campanha de Camilo, e Alencar, R$ 100 mil, segundo prestação de contas do candidato. A assinatura de contratos sem licitação com doadores de campanha levanta suspeitas de que há troca de favores. Sobre isso, a Secretaria de Administração Penitenciária diz que recorre à modalidade de dispensa de licitação apenas em casos emergenciais e que emite “cartas-convites para empresas do segmento” enviarem propostas.
Para Galdino, “um sinal amarelo se acende” quando o governo assina contrato sem licitação com doadores de campanha. “Isso não é proibido pela lei, mas a administração pública requer planejamento. A dispensa de licitação só deve ocorrer em situações excepcionais. Não é o caso de alimentação nos presídios. O governo sabe que precisa garantir constantemente”, diz.
Conversei com Mattos por telefone. Ela negou qualquer tipo de benefício. Já Alencar não respondeu aos meus contatos até a publicação desta reportagem.
O perigoso tempero pronto
O governo compra quatro refeições diárias aos presos. No café da manhã, em cinco dias por semana, o contrato prevê a entrega de dois pães com margarina. Nos dias restantes, é permitido servir 10 biscoitos de água e sal a cada preso. O almoço e o jantar têm que ter carne bovina e frango alternados igualmente com carne suína em ao menos em uma refeição da semana. São obrigatórios, também, dois tipos de complementos: macarrão ou farofa e salada crua, salada de legumes, batata ou macaxeira, como é chamada a mandioca no nordeste. Na ceia, é necessário ter dois pães franceses acompanhados de suco ou café e leite.
Mattos diz que nunca recebeu nenhuma reclamação sobre as quentinhas que fornece. Mas os relatos dos presos que ajudaram na construção do dossiê entregue a parlamentares do Ceará e as histórias que ouvi de Rodrigo, Silvana e de familiares de presos levantam dúvidas sobre a quantidade e a qualidade dos alimentos que a sua empresa oferece.
Maria Oliveira, cujo companheiro está preso desde 2017, me contou que ele perdeu 20 kg desde o ano passado. Ele está na Unidade Prisional Professor José Sobreira de Amorim, na região metropolitana de Fortaleza, onde a empresa de Mattos também entrega comida. Segundo Oliveira, seu marido tem sofrido muito com infecção estomacal devido à comida estragada.
Fernanda*, a mãe de um rapaz preso na Penitenciária Francisco Hélio Viana de Araújo, também na região metropolitana, me disse por telefone que o secretário Albuquerque proibiu os familiares de levarem até tempero pronto aos presos, o que, segundo ela, ajudava a dar um pouco de sabor à comida. Mortadela e o almoço na visita semanal também não podem mais entrar nas penitenciárias desde que a administração do secretário proibiu a entrada de qualquer tipo de alimento nas unidades, no começo de 2019. “Ele tirou a coisa mais sagrada para nossos filhos, que era a comida de casa, que tinha sabor, zelo e afeto. Esse problema da alimentação não está sendo questionado por parte dos órgãos de fiscalização”, reclama.
Para a Secretaria de Administração Penitenciária, no entanto, as novas regras geraram “resultados benéficos para a saúde da população carcerária” além de terem reduzido “a zero, apreensões de armas, celulares e drogas que poderiam entrar no sistema através dos alimentos”.
No início de março, pelo menos 30 detentos do Centro de Execução Penal e Integração Social Vasco Damasceno Weyne, o Cepis, apresentaram sintomas de anemia e lesões na pele e 11 foram internados com falta das vitaminas C e D. As suspeitas dos profissionais de saúde é de que os detentos tenham adoecido por deficiência nutricional. A empresária Mattos forneceu alimentação para o Cepis até fevereiro.
Ações como a transferências dos presos para a capital, ordenadas por Albuquerque, a proibição de entrada de alimentos trazidos pelos visitantes e o endurecimento das regras de disciplina dentro dos presídios deram origem a uma das maiores crises na segurança pública do Ceará. No começo de 2019, foram mais de 20 dias de ataques coordenados pelas facções que atuam no estado – Comando Vermelho, PCC e Guardiões do Estado, o GDE.
Mas os protestos dos presos e dos seus familiares não sensibilizaram o secretário, que mantém as ordens até hoje, mesmo depois de ser denunciado em um relatório de 2019 do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, por violar direitos básicos dos detentos. O “tratamento cruel, desumano e degradante” imposto pela ausência de uma alimentação digna, disseram os peritos, funciona como mais um método de tortura nas penitenciárias do Ceará.
As quentinhas inexistentes de Mattos engrossam esse caldo.
*Os nomes foram trocados para preservar as pessoas entrevistadas.
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