Os olhos do patrão inspecionavam o trabalho de meia dúzia de operários debaixo do sol da manhã em Cachoeira do Arari, na Ilha do Marajó, norte do Pará. Novembro já se encaminhava para o final, e Paulo Cesar Justo Quartiero sabia que precisava andar rápido: quando as chuvas chegassem, em dezembro, qualquer obra se inviabilizaria durante meses. Por isso, ele vigiava de perto o time que erguia duas colunas de proporções incomuns para uma porteira de fazenda.
“Não é um pórtico”, me explicou o produtor de arroz, em 2018. “É um patíbulo para enforcar todos os ambientalistas que venham encher o saco. Agora, com Bolsonaro presidente, vai ser assim”, disparou, embalado pela então recente vitória do capitão reformado à presidência da República.
Nove meses depois, enquanto a Amazônia ardia, comovendo o mundo, Quartiero saudava o governo: “Começou muito mal mas agora tá se firmando”. Ele estava numa feira agrícola no Rio Grande do Sul e, ao atender ao pedido da fotógrafa incumbida de fazer seu retrato para esta reportagem, apoiou o pé em um trator e explicou-se: “então vou fazer pose de matador de índio”.
Ambientalistas, indígenas e quilombolas são adversários históricos do arrozeiro e pecuarista, cujas terras no Pará são quase do tamanho da área urbana de Natal, no Rio Grande do Norte. Em 2017, quando assumiu a cadeira de governador de Roraima por uma semana, Quartiero atraiu atenções ao exonerar o então titular da Secretaria do Índio, favorável às demarcações de terras no estado. “Se fosse em situação de guerra, ele teria de ser fuzilado, na realidade. Mas, como temos democracia, ele foi demitido”, declarou.
Há quase 50 anos, o gaúcho Paulo Cesar Quartiero vem antecipando o Brasil de Bolsonaro. É pioneiro da ideologia que declarou o fim do politicamente correto e prega a submissão de ambientalistas, indígenas e quilombolas à lógica da agropecuária, uma cartilha que o presidente está colocando em prática na Amazônia brasileira.
Embora a votação de Bolsonaro em 2018 tenha surpreendido a elite intelectual nas capitais, a trajetória de Quartiero já indicava adesão, nos grotões, a um projeto político no qual plantar arroz na floresta é mais importante do que preservar árvores. Concorrendo a cargos públicos desde 2004, turbinou as candidaturas com atitudes violentas contra quem se apresentasse como inimigo na batalha pela Raposa Serra do Sol, fossem autoridades ou populações tradicionais, muitas vezes virando réu por essas ações. A estratégia surtiu efeito, e Quartiero perdeu apenas uma eleição entre as quatro disputadas: foi prefeito em uma cidade no norte de Roraima, vice-governador e também deputado federal – o segundo mais votado no estado em 2010. Foi no Congresso Nacional que conheceu Bolsonaro e passou a ser seu defensor. “Na verdade, acho que ele copiou as minhas ideias”, resume.
Como Bolsonaro, Quartiero considera exagerada a legislação ambiental que lhe impôs, entre multas (em 2008 e 2009) e embargos, uma dívida que ultrapassa R$ 56 milhões por desmatamento e atividade produtiva sem licença. Alinhado ao presidente, que apelidou o sistema de “indústria de multas”, ele decidiu não pagar.
Pelo que conta, nem será preciso apelar ao núcleo de conciliação e anulação de multas do Ibama, criado pelo presidente da República. Ele diz ter estado duas vezes com o ministro Ricardo Salles para pedir a anulação das infrações “ideológicas” que recebeu ao ser expulso da terra indígena Raposa Serra do Sol, onde plantou arroz por décadas: “Ele é muito preparado. Tentei explicar (a situação) a ele, que disse: nem precisa, foi injusto o que fizeram com vocês. Pediu que a gente leve uma maneira de justificar (a anulação das multas), que daria seguimento”.
Não há registro das reuniões na agenda de Salles, e o ministério não respondeu os pedidos de esclarecimento da reportagem, mas não seria um caso isolado. Em setembro de 2019, um grupo de garimpeiros se reuniu com o ministro para pedir a punição de fiscais sem que houvesse registro público do encontro.
Uma milícia na Raposa Serra do Sol
As afinidades com o novo governo são muitas, mas talvez a mais relevante seja aquela que insinua a revisão da demarcação da terra indígena Raposa Serra do Sol, com o controverso propósito de integração dos povos originários à sociedade. Quartiero foi porta-voz dos insurgentes contra a criação da reserva em uma área contínua de 1,7 milhão hectares nos anos 2000. Mobilizou uma milícia para combater os indígenas que reivindicavam a posse definitiva da área, outorgada pelo ex-presidente Lula em 2005 e confirmada longos quatro anos depois pelo Supremo Tribunal Federal. A seu lado, marcharam também indígenas, que ele teria organizado sob a Sociedade de Defesa dos Índios Unidos do Norte de Roraima, que se aliou a Bolsonaro e em 2020 voltou ao noticiário depois que seus membros foram presos em uma operação da Polícia Federal contra o garimpo ilegal dentro da reserva.
Quartiero chegou a ser detido na época e ainda hoje responde a vários processos por crimes como sequestro e cárcere privado, formação de quadrilha e constrangimento ilegal. “Foi a fase feliz da minha vida, eu só sinto não ter levado ao extremo”, me disse sobre as recordações, em alguma medida lamentando que o então Comandante Militar da Amazônia – o general Augusto Heleno, hoje ministro do Gabinete de Segurança Institucional do presidente da República – não tenha cumprido uma promessa de enviar tropas para se somar à resistência dos produtores rurais. “Se ele tivesse feito aquilo, ele possivelmente seria preso. Mas como (Hugo) Chávez, sairia da prisão presidente. Em vez de termos Bolsonaro, há tempos teríamos Heleno presidente”.
Na versão de Quartiero, ele teria ouvido a promessa em encontro na sede do Comando Militar da Amazônia, chefiado por Heleno entre 2007 e 2009. Embalado pelo uísque, o general teria questionado se os fazendeiros de Roraima iriam resistir à demarcação da Raposa Serra do Sol. “Ele perguntou três vezes para nós isso, se a gente ia lutar. [Eu pensava] Mas lutar como, piscando? Somos meia dúzia e ainda sem recurso. Pois ele três vezes perguntou e três vezes respondeu: lutem que eu boto uma força de pacificação lá”.
“Nós mudaríamos tudo, ia ser o maior movimento de tropas desde 1964. Todas aquelas invasões de índios, do MST, seriam contidas ali. Ali com pouco recurso se ganhava a guerra, e terminava com todo o movimento”, acredita.
Heleno nega. Por meio de nota, o atual ministro disse que a reunião nunca aconteceu. No auge do debate sobre a Raposa Serra do Sol, no entanto, o general criou um embaraço ao governo do então presidente Lula quando qualificou sua política indigenista de “caótica” e “lamentável”. Coincidindo com essa visão, o Exército brasileiro se recusou a participar das ações de desocupação da Raposa após a decisão do STF – o trabalho acabou sendo feito pela Polícia Federal.
Hoje, Quartiero planta arroz sem licença no santuário ecológico na Ilha do Marajó, norte do Pará, para onde foi após ser desalojado de Roraima. A atual fazenda do rizicultor é apontada pelo Ministério Público como produto de área grilada – no ano passado, a justiça determinou o cancelamento do título das terras, mas o processo ainda corre na segunda instância. Foco de conflitos com quilombolas e pescadores tradicionais, sua lavoura é tão grande que está estrangulando a cidade de Cachoeira do Arari, que não tem mais para onde crescer.
Ao se dirigir a mim quando cheguei à sua porta, querendo ouvi-lo sobre as acusações, ele atalhou: “Já sei que tu vai dizer que eu sou grileiro, assassino, desmatador, poluidor… A gente já tem tanto adjetivo, que um a mais, um a menos, tudo bem”, deu de ombros antes de convidar para entrar e, depois de uma entrevista de duas horas, também almoçar, no galpão da peonada. O cardápio: arroz, feijão, costela bovina, salada e Pepsi. “Depois que a Coca-Cola colocou o Pabllo Vittar nas latinhas, eu proibi aqui”, me contou.
A aventura de Quartiero rumo ao norte começou quando o pai morreu e o deixou órfão aos 17 anos. Ao lado do irmão, um ano mais velho, arrendou uma terra em Passo Fundo, no norte do Rio Grande do Sul, e tentou cultivar trigo, milho e soja. “Mas não deu muito certo, e nós ficamos sem terra. E aí eu tive a brilhante ideia de achar que o lugar mais fácil de conseguir terra, (porque era) mais inexplorado, era a tal de Roraima”, me contou.
Foi em 1976 que ele trocou o Rio Grande do Sul pela Amazônia. Agrônomo de 24 anos recém-formado, era amigo do então presidente da Associação de Crédito e Assistência Rural de Roraima.
“O presidente era um gaúcho, lá de Passo Fundo. Ele convidou, e a gente foi lá dar uma olhada. Ele mandou passagem… Aí fui prá lá e trabalhei quatro meses na assistência”, me contou o produtor de rosto redondo, sardas evidenciadas pelo sol do norte, os olhos de um azul profundo e reflexivo – a aparência típica dos “colonos” do interior do Rio Grande do Sul.
Quando Paulo Cesar Quartiero desembarcou em Roraima, o olhar do Brasil sobre a Amazônia estava guiado pelo lema “integrar para não entregar”, posto em marcha pelo governo militar. A região era equivocadamente divulgada como um local inóspito e desabitado, e o discurso de que estava a perigo, suscetível aos interesses geopolíticos internacionais, era assimilado num país que ainda convivia com censura da imprensa. Hoje esse discurso voltou, invocado pelo presidente Bolsonaro e pelos militares ao seu redor.
“A gente alertava para a ingerência externa na Amazônia, com um projeto de ocupação. Esse projeto não é nem socialista, é um projeto de um governo mundial, com o fim do estado soberano, bom para as grandes corporações porque tira a competitividade do pequeno. É o uso da questão ambiental, o indigenismo, os direitos humanos para impor esse projeto de ingerência externa. Antes, era relativizado; agora, escancarou”, me disse Quartiero, prestes a entrar no avião rumo a Belém, na última vez em que nos encontramos.
Incêndios, explosões e tiros
No início, PC, como Quartiero ficou conhecido na região amazônica, aproveitou seu diploma de engenheiro agrônomo e trabalhou como servidor público extensionista, prestando consultoria a produtores locais. “Mas não tinha mentalidade para ser funcionário”, recorda.
Foi buscando um pedaço de chão próprio para produzir que descobriu o “lavrado de Roraima” – expressão utilizada naquela parte do Brasil e que define uma paisagem que só ocorre lá, na fronteira com a Guiana e a Venezuela, coincidindo quase exatamente com o perímetro da Raposa Serra do Sol. É uma parte da Amazônia que foge ao senso comum, revelando um ecossistema parecido com o cerrado, de arbustos baixos e retorcidos espalhados por um solo vermelho de onde se erguem imensos cupinzais. Nada a ver com a floresta densa habitualmente associada ao bioma.
O produtor logo percebeu que a ampla área aberta, plana e com pouca mata era favorável à agricultura de grande extensão, enquanto a água abundante do largo e sinuoso rio Surumu permitia imaginar um sistema de irrigação que se mantivesse ativo mesmo nos seis meses de seca da região. O arroz era o candidato natural, embora Quartiero nunca tivesse cultivado esse grão. “Em área pioneira é mais fácil porque ele não exige muita tecnologia e é uma cultura altamente rústica”, explicou.
No meio da selva ou na aridez do lavrado, as condições de quem se aventurava naquelas bandas eram muito precárias. Em 2014, quando visitei a região para escrever uma reportagem sobre os 10 anos da homologação da reserva Raposa Serra do Sol, era preciso muita paciência, um motorista experiente e uma caminhonete 4×4 para vencer cerca de 50 quilômetros tortuosos entre Uiramutã e Maturuca – as duas aldeias chave no processo de demarcação. Meio século antes, quando os habitantes da região faziam tudo caminhando, mesmo quem tinha um automóvel era atormentado pelas longas distâncias, o calor e a fome, cujo único antídoto disponível a um não indígena era carne seca com farinha, do café da manhã ao jantar.
Por essas e outras, a ditadura ofereceu todo o tipo de empurrão aos “desbravadores” dos grotões brasileiros. O incentivo ao desmatamento era moeda de troca para o governo, que outorgava títulos de posse a quem destruísse a floresta para produzir. “O fazendeiro chegava e dizia: daqui até aquele rio lá é meu. E situava [a fazenda na área], não tinha ninguém”, me explicou Quartiero, em sua lógica particular.
Quando saiu da cadeia, PC foi recebido com uma carreata pela população de Pacaraima.
Na verdade, desde 1917 já havia reconhecimento do poder público sobre a presença indígena na região. Naquele ano, o governo do Amazonas, então responsável pelo território de Roraima, editou a Lei Estadual nº 941/17, destinando as terras compreendidas entre os rios Surumu e Cotingo aos povos Macuxi e Jaricuna.
Foi justamente na margem leste do Surumu que Quartiero instalou sua monocultura. Na terra sem lei em que ele imaginava estar se instalando, só precisou se preocupar em comprovar suas posses quando a Funai preparava a entrega do primeiro relatório conclusivo sobre a reserva Raposa Serra do Sol, em 1993. O processo de demarcação já corria desde 1977, motivo pelo qual, em 2001, à jornalista Eliane Brum, “com total desassombro, ele declarou estar consciente de que plantava arroz em terra indígena, mas que a terra tinha sido tão barata que poderia correr o risco de perdê-la”.
Um recibo que o arrozeiro anexou a sua defesa anos depois – nunca aceito legalmente – registra que Quartiero desembolsou 50 milhões de cruzeiros por 6 mil hectares na Fazenda Depósito, o equivalente à área do município de Barueri, na grande São Paulo. O documento traz a data de 11 de maio de 1992, pouco mais de R$ 130 mil em valores de hoje, preço de uma casa na capital Boa Vista. PC jamais declarou à Justiça Eleitoral as terras na Raposa, mas, em 2008, no auge do conflito e quando tentava voltar à prefeitura de Pacaraima, informou possuir 4.614 cabeças de gado (no valor de R$ 2 milhões), 22 tratores, 12 colheitadeiras e 12 semeadeiras (R$ 7,7 milhões) entre outros veículos e animais. E nenhum metro quadrado de chão.
A lógica de Quartiero não era incomum naquele pedaço de Brasil esquecido. “A mentalidade era que não existiam índios, porque eles usavam relógio, calça, sapatos, vestiam camisa – e índio deveria ser aquele que anda pelado no mato. Então, pronto, como não tinha índio, não tinha direito nenhum”, resumiu em 2014 o padre Giácomo Mena, que chegou no Brasil, vindo da Itália, em 1969, e passou décadas trabalhando na Raposa Serra do Sol.
Lula decidiu comprar de vez a briga dos indígenas em abril de 2005, quando assinou o decreto que dava posse definitiva da terra aos povos da floresta. Foi uma grande derrota para Quartiero, mas ele estava disposto a lutar.
Além de entrar com recursos na justiça, o produtor desencadeou táticas de guerrilha para impedir o avanço de forças federais sobre o território. Em março de 2008, quando tudo já indicava que o Supremo Tribunal Federal decidiria pela demarcação da reserva, a Polícia Federal desembarcou na área e encontrou pontes queimadas e pregos distribuídos pelas vias de acesso para furar pneus. Um repórter do Estadão que o entrevistou ouviu do arrozeiro que ele havia contratado um grupo de ex-PMs para servirem como seguranças. “Vieram em dois ônibus”, contou ao jornal. “Nas duas entradas da fazenda ele também armou barricadas com sacos de pedra e areia e arame farpado. Numa das entradas pôs uma plaina – implemento usado para preparar a terra dos arrozais – para impedir a entrada de carros”, escreveu Roldão Arruda. A matéria diz que ele chegou inclusive a “minar parte do terreno”.
Nenhuma das multas de R$ 56 milhões jamais foi paga.
Meses depois, a Polícia Federal encontrou na fazenda de Quartiero um depósito com 149 tubos de PVC de material explosivo, sete bombas de fabricação caseira, além de outros aparelhos que poderiam ser utilizados como armas. PC ficou detido durante nove dias e, quando saiu da cadeia, foi recebido com uma carreata pela população de Pacaraima.
Ver o circo pegar fogo não era apenas uma expressão vazia na ideologia de Quartiero. Entre as dezenas de processos que o têm como réu na Justiça Federal de Roraima, cinco estão relacionados ao artigo 250 do Código Penal: “Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem”.
Um sumário, compilado pelo Ministério Público Federal, registra que, em novembro de 2004, o arrozeiro e outras sete pessoas, “mediante violência e grave ameaça, destruíram e incendiaram várias casas das comunidades indígenas Jauaria, Brilho do Sol, Homologação e dos retiros Insikiran e Tai-Tai”, na Raposa Serra do Sol. O arrozeiro também foi acusado de mandar abrir fogo contra indígenas Macuxi de uma aldeia próxima à área da fazenda – dez deles ficaram feridos – e de invadir uma missão religiosa que dava suporte à demarcação e sequestrar três missionários.
A presença de Quartiero ao longo de três décadas na região transformou a paisagem local. Em 2008 e 2009, fiscais do Ibama compararam o que viram sobrevoando as fazendas Depósito e Providência, que juntas tinham mais de 9 mil hectares, com imagens históricas de satélites que monitoram a Amazônia. A primeira constatação foi que a área plantada excedia em quase três vezes o tamanho informado às autoridades. Ocupando cada canto do terreno, o arroz havia suplantado a mata que protegia as margens do rio Surumu de erosões e contaminação – por lei, essa vegetação é intocável. Além da monocultura, algumas partes da beira do rio estavam tomadas por currais, pocilgas, armazéns e até uma pista de pouso.
Os técnicos se surpreenderam ao perceber que o cereal brotava também em locais onde antigamente estavam leitos de lagoas e rios que estavam sumindo do mapa. “As antigas lagoas naturais inseridas na fazenda foram substituídas por culturas de arroz, onde toda e qualquer presença de vegetação lindeira foi suprimida”, escreveram os fiscais. Eles também apontaram a alta probabilidade de contaminação de solos e rios por agrotóxicos, além de notarem sinais de queimadas nos campos.
Quartiero era reincidente nos crimes ambientais, e o resultado da fiscalização foram multas que, somadas, chegaram a R$ 56 milhões. Uma década depois, nenhuma foi paga, apesar de parte da dívida já estar sendo cobrada judicialmente.
A segunda migração
Em 27 de agosto de 2008, a advogada Joênia Batista de Carvalho, uma indígena wapichana, falou à tribuna do Supremo Tribunal Federal e argumentou que a demarcação da Raposa Serra do Sol deveria ser feita de forma contínua, de ponta a ponta, contrariando a tese dos ruralistas, de uma reserva em ilhas, intercaladas com suas áreas produtivas. Foi um momento histórico porque nunca antes um indígena havia feito uma sustentação oral na mais alta corte do país. E a fala surtiu efeito. Quase um ano depois, na tarde de 19 de março de 2009, o Supremo decidiu em favor dos povos originais na mais importante vitória jurídica dos indígenas brasileiros. A defesa fez Joênia famosa: em 2018, ela foi a primeira mulher indígena a se eleger deputada federal no Brasil, pela Rede.
Para a reintegração de posse, os oficiais de justiça e policiais federais chegaram na fazenda de Quartiero num feriado, o 1º de maio, Dia do Trabalhador. Sentado na porta de casa e rodeado por pelo menos 25 agentes, o arrozeiro recusava-se a entregar os milhares de hectares que cultivava na Raposa Serra do Sol. Ninguém se atrevia a dar voz de prisão, ainda que a ordem de despejo estivesse sobre a mesa desde a manhã. A prudência era a orientação do Supremo Tribunal Federal, que já conhecia a bomba relógio armada por trás daquela aparente calma e tinha decidido que não entraria novamente na guerra que mobilizou os ânimos entre Roraima e Brasília nos meses anteriores. Ele resistiu à retirada por sete horas. Mas acabou entregando as terras.
Ainda hoje, o arrozeiro parece reviver a fúria da derrota ao ser questionado sobre ter se instalado em área indígena. “Essa perguntinha é completamente idiota, né? [Roraima] Tinha 48 mil habitantes, segundo o IBGE. Vamos supor que 4.800 fossem índios. Vem falar que é terra indígena? Roraima não tinha nada, tudo que foi construído foi depois disso. Inclusive os índios, quem ia para lá era aventureiro”, insiste. Na verdade, em 1977, 60 comunidades já estavam na área, contabilizando cerca de 10 mil indígenas, o que representaria um terço da população, segundo o IBGE.
Depois de rodar algum tempo atrás de outras áreas para levar sua lavoura – prospectou negócios até na Guiana –, Quartiero se transferiu para o Marajó em 2010. Na ilha, que chegou a ser candidata à reserva da biosfera, um título internacional de proteção concedido pela Unesco, ele se instalou na porção leste, cujas condições ambientais são muito semelhantes às da Raposa Serra do Sol. Enquanto o oeste é coberto pela floresta amazônica, a parte mais próxima do oceano abriga os chamados campos naturais, de vegetação rasa com matas de açaí e outras palmeiras no horizonte.
Foi sobre esses campos que Quartiero plantou seus 4 mil hectares de arroz (0,1% da área da ilha) – e onde, em abril de 2014, o Ibama flagrou a destruição de 132 hectares de vegetação nativa. Os moradores da região relataram ao Ministério Público Federal que animais tinham tomado o núcleo urbano depois que a mata esparsa foi suprimida: “Tem tamanduá invadindo a cidade devido aos refúgios de floresta que foram eliminados. Tem surucucu dentro do mercado”. A área desmatada era mais ou menos do tamanho do Parque do Ibirapuera, em São Paulo, de 158 hectares.
O arrozeiro diz que suas derrubadas não configuram desmate porque não estão em áreas de floresta, mas, sim, de campo, o que o desobrigaria de qualquer preservação.
Embora a proteção legal a esses ecossistemas abertos da Amazônia não seja tão rigorosa (na floresta, é obrigatório preservar 80% da vegetação nativa em áreas produtivas), eles também estão sob um regime especial de preservação e não é possível deitar um arbusto sequer sem autorização dos órgãos ambientais.
Ajudinha amiga
Tudo o que vai contra a obsessão produtiva de PC Quartiero recebe algum contra-veneno do arrozeiro, não raro um argumento que distorce a realidade. Se o acusam de “latifundiário explorador”, diz que quem explora são as populações tradicionais, que ele desaloja com suas lavouras. “É um bando de malandro que não quer trabalhar e quer viver à custa dos outros. O cara que não quer trabalhar, ou vai ser quilombola, ou vai ser índio, ou vai ser pescador tradicional, ou vai não-sei-o-que-lá. Ele vai achar uma maneira de golpear a sociedade, se tornando vítima, e vai pedir uma compensação pelo fato de ter se tornado vítima. Vai querer que a sociedade indenize. Mas ele não é vítima, ele não tem aptidão, não tem vontade, não tem nada. Mas isso é assim”, ataca, emulando argumentos de Bolsonaro na campanha de 2018.
Mas quando o beneficiado pelo estado é ele próprio, o discurso muda. O produtor recebeu empréstimos de bancos públicos e incentivos fiscais enquanto plantava arroz na Raposa Serra do Sol. Hoje, jura não ter “financiamento por uma arruela no Brasil inteiro”. Os fatos o contradizem e mostram que, se não tem contratos formais de apoio, o auxílio do poder público vem sendo fundamental para sua aventura no Marajó.
Em 2010, Quartiero se elegeu deputado federal pelo DEM de Roraima e se tornou um dos integrantes da tropa de choque da bancada ruralista na Câmara. Parte do seu apoio político vinha do mandato como presidente do sindicato dos arrozeiros de Roraima. Chegou ao Marajó respaldado por um projeto de construção de um polo arrozeiro na ilha, posteriormente assumido pelo governo do estado.
“Existe uma política muito grande de influência no Congresso Nacional, não dá para saber se são os arrozeiros que propõem esse tipo de coisa [o polo] ou se é o governo do Estado [que os convida a se instalarem]. Ou ainda se são as duas coisas ao mesmo tempo”, diz o procurador da República Felipe Palha, que está de olho em Quartiero, no Pará.
A licença foi emitida sem que Quartiero comprovasse a legitimidade da terra.
A adesão do governo do estado se evidencia na conduta diante das irregularidades do empreendimento. Mesmo apresentando problemas desde 2012, a fazenda de Quartiero segue operando normalmente, e o Arroz Acostumado, sua marca, está disponível em toda a rede de varejo do Pará. O produtor usa quase metade da fazenda para arroz e o restante para criar gado, mas, desde 2017, ele não possui licença para nenhuma das atividades.
O licenciamento original das Fazendas Reunidas Espírito Santo, feito em nome do filho Renato, foi aprovado durante a gestão estadual do PT, de Ana Júlia Carepa, entre 2007 e 2010. O processo foi incomum, porque descumpriu uma norma nacional que determina a realização de Estudo de Impacto Ambiental para áreas produtivas superiores a 1 mil hectares. Ignorando a regra, o governo do Pará aceitou que Quartiero se submetesse a um procedimento simplificado, pelo qual obteve a licença em menos de três meses. A autorização produtiva veio assinada pelo então secretário de Meio Ambiente, Aníbal Picanço, que a governadora precisou demitir em novembro de 2010, depois que ele foi flagrado pela Polícia Federal em um esquema de venda de licenças ambientais para madeireiras. Picanço, que era procurador federal concursado, foi expulso do serviço público em março de 2017 em razão das acusações.
Numa jogada bastante ilustrativa sobre o funcionamento da proteção ambiental brasileira, a licença foi emitida sem que Quartiero jamais apresentasse os documentos que comprovavam a legitimidade da posse da terra e se as áreas de preservação obrigatórias estavam lá, como manda a lei.
Sucessor de Ana Júlia, o tucano Simão Jatene não se importou com as advertências dos técnicos da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade, a Semas, que flagraram em diferentes ocasiões a aplicação e armazenamento irregular de agrotóxicos, atividade pecuária sem licença e captação de água do rio Arari quando a outorga expedida já havia vencido, sem renovação.
Ao contrário, Jatene fez ainda mais por Quartiero.
Depois de 270 anos de existência, foi somente quando o ruralista desembarcou em Cachoeira do Arari que a cidade recebeu eletricidade e aposentou os geradores movidos a óleo diesel que forneciam luz aos 23 mil habitantes do município. Também passou a ser possível chegar ao município no barco expresso, partindo de Belém (são 2h30 de viagem), ou ainda deslizando sobre o asfalto da PA-154, entre Salvaterra e Cachoeira, um antigo sonho da comunidade que se tornou realidade em 2017 – e que atravessa a propriedade do arrozeiro.
‘A Amazônia começou a comer arroz porque nós começamos a produzir’.
“Mas é importante complementar, porque você vai dizer que somos latifundiários subsidiados, aquela história, né?”, protesta, antes de defender-se: “O que nós contamos do governo foi com esse asfalto que saiu e com a rede elétrica, mas era para atender todo o Marajó, não foi específico para nós”.
Talvez tenham sido esses benefícios que levaram a prefeitura de Cachoeira do Arari a manifestar entusiasmo desde a primeira hora pelo projeto do arrozeiro, inclusive emitindo uma declaração de reconhecimento de posse das terras que Quartiero usou para defender-se da acusação de grilagem, feita pelo Ministério Público. Mas o documento não foi aceito pelas autoridades: não tinha valor legal.
Apesar das reiteradas manifestações de apreço, engana-se quem acha que Quartiero está satisfeito com a atuação do poder público. “Estamos gerando imposto, pagando na medida das possibilidades, e o auxílio do governo é a Semas que vem aqui multar a gente, encher o saco. Perturbar. Essa é a ajuda o governo”, queixa-se.
A lavoura se mostrou um negócio altamente rentável para Quartiero. Ainda hoje, quase todo o arroz produzido no país vem do sul. Em uma região onde a logística é, para dizer o mínimo, desafiadora, o ruralista percebeu que abastecer o mercado amazônico com arroz produzido localmente poderia ser lucrativo. “Quando a gente chegou lá, o povo mal comia arroz. A Amazônia começou a comer arroz porque nós começamos a produzir”, exagera.
Com a produção, Quartiero enriqueceu: em 2004, quando se candidatou a prefeito pela primeira vez, não cadastrou nenhum bem em sua declaração à Justiça Eleitoral. Em 2010, registrou uma fortuna de R$ 8 milhões, dos quais R$ 7,9 milhões eram “dinheiro em espécie”. Na última informação que prestou, antes das eleições de 2014, na qual sagrou-se vice-governador de Roraima, suas posses haviam diminuído, mas ainda assim, somavam R$ 3,3 milhões.
O caminho da grilagem no Pará
A artilharia verbal e o pavio curto são características marcantes de Paulo Cesar Quartiero. “Aqui, nós vamos patrolar esses filhos de uma égua”, anuncia, com rosto sereno e voz baixa e desenhando um meio sorriso no rosto.
Mas, no plano prático, há derrotas. As matrículas das Fazendas Reunidas Espírito Santo foram anuladas pela justiça estadual, que acatou a tese do Ministério Público de que as terras, na verdade, pertencem ao governo brasileiro e foram objeto de grilagem.
Além de enfrentar a anulação das matrículas, que pode ensejar um pedido de devolução da área ao poder público, em um processo que corre no âmbito cível, Quartiero e o filho, Renato, respondem a uma acusação criminal de estelionato – o popular artigo 171 do Código Penal brasileiro – e podem acabar presos e ter de pagar mais uma multa. Segundo o promotor de Justiça André Cavalcanti, responsável por essa ação, a dupla agiu em conluio para, “ardilosamente”, “dar aparência de legalidade a uma transação” irregular envolvendo as terras da Ilha do Marajó.
O ruralista contra-ataca, recorrendo a um expediente que se popularizou depois de Bolsonaro: “Esse negócio é fake news né, pelo amor de Deus, é um troço ridículo! Se a gente tivesse num país mais ou menos sério, era questão de botar na cadeia quem fez essa denúncia”.
Existe uma brincadeira jocosa que revela o drama agrário no Pará. Quando alguém diz que tem uma fazenda no estado, é costume perguntar “em qual andar” ela fica, uma referência à situação da grilagem por aquelas bandas, um crime tão descontrolado que, no interior, os cartórios possuem registros de terras privadas com áreas que superam até três vezes a superfície territorial do município em que se localizam – e alguns deles são maiores que vários países.
A família tentou comprovar a propriedade com documentos diversos. Nenhum colou.
É um problema crônico, que começou em 1891, quando o estado baixou uma resolução criando um instrumento jurídico estapafúrdio chamado “título de posse”, que legalizava a propriedade no nome de quem apenas a utilizava, sem ser seu verdadeiro dono. Qualquer intendência municipal (as prefeituras da época) poderia emitir os títulos a quem bem entendesse. O regime durou pouco, até 1909, mas foi suficiente para que fossem expedidos algo entre 50 e 60 mil títulos de posse – a maioria ilegítimos, quase todos com limites de terras imprecisos, mas que, mesmo assim, ainda hoje são utilizados irregularmente.
“Infelizmente a maior parte dos processos de grilagem acontece porque o interessado leva um documento de posse a um registro de imóveis e o cartorário infelizmente registra. Essa é a lógica, gerar um título sem validade jurídica, mas que é uma ofensa ao patrimônio público no final das contas. Assim, se cria o caos fundiário no estado do Pará”, lamenta a promotora Eliane Moreira, que conduz o processo cível contra o ruralista, que pede a devolução das terras ao estado ou União.
Quartiero seguiu o roteiro conhecido pelo MP à risca: a compra das Fazenda Reunidas Espírito Santo, de 12.500 hectares, foi formalizada por meio de um contrato registrado em cartório, mas seu nome nunca constou da matrícula do imóvel – que é como se fosse a carteira de identidade da terra, onde devem estar todos os passos (e donos) que ela teve. A família tentou comprovar a propriedade com documentos diversos. Nenhum colou: além daquele título de posse emitido pela prefeitura, os Quartiero utilizam o Cadastro Ambiental Rural, contratos assinados entre pai e filho e até uma matrícula fria, o que acabou levando o processo para a seara criminal.
Uma das razões que levantou suspeitas de falsificação de documentos é que a matrícula, entre outros problemas, não traz a inscrição de bloqueio que todos os imóveis rurais do Pará acima de 2.500 hectares sofreram em 2006. Foi uma medida determinada pelo Tribunal de Justiça para tentar frear a grilagem no estado. Se ela estivesse bloqueada, não poderia ter sido vendida para a família em 2010.
Além disso, o Ministério Público não encontrou documentos que apontassem a data em que os pedaços de chão que compõem as Fazendas Reunidas Espírito Santo deixaram de ser públicos, passo essencial no direito agrário brasileiro. “O estado tem que autorizar de alguma maneira o uso daquela terra. O que não se admite mais dentro da lógica de combate a grilagem, hoje, é que seja o particular que diga onde e o que é dele”, explica a promotora Eliane Moreira.
Cidade sitiada
Ao contrário das vizinhas Salvaterra e Soure, badaladas por seus balneários de água doce que têm um visual de praia de mar – uma peculiaridade da Baía do Marajó, onde o rio Tocantins encontra o Oceano Atlântico – Cachoeira do Arari não recebe turistas. Seu pequeno núcleo urbano foi erguido em uma curva do rio Arari, bem longe do litoral, no interior da ilha.
Apesar do relativo isolamento, a cidade cresce: na última década, a população aumentou 16%, passando de 20 para 23 mil habitantes (o Brasil cresceu pouco menos de 10%). Pensando nisso, os administradores municipais reservaram áreas para sua expansão, mas, em 2010, uma cerca apareceu, separando a cidade já construída daquela parte com que contavam os moradores para garantir seu futuro. Atrás da cerca começava a germinar arroz.
Hoje, o centro de Cachoeira do Arari, onde vive a maioria da população, está espremido entre o rio que dá nome à cidade e a fazenda de Quartiero. As terras do ruralista engoliram até o cemitério municipal, que virou uma ilha de túmulos no meio do arrozal. Até mesmo a tradicional festa de São Sebastião, padroeiro da localidade, ficou ameaçada porque o terreno onde há 100 anos é realizada a corrida dos vaqueiros – quando são testadas habilidades de resistência e velocidade dos peões – estava do lado de lá da cerca. Foi preciso pedir autorização ao novo dono do pedaço, e a negociação quase azedou.
‘Somos um município sem-terra. A gente não tem área para fazer outro lixão, aí tudo é do Quartiero’.
Os gestores municipais não contavam com aquela cerca especialmente porque o Plano Diretor de Cachoeira do Arari previa uma grande área dedicada à habitação de interesse popular na margem esquerda da rodovia. No centro desse novo bairro, haveria um setor de serviços: bancos, lojas, correios, lotéricas etc. Mas Quartiero atropelou o planejamento urbano e instalou ali o galpão da peonada, um estacionamento de tratores, semeadeiras e colheitadeiras, um depósito de agrotóxicos e o hangar do avião que dissemina veneno pelos ares.
“Lá no Plano Diretor tem lugar para tudo: o nosso campo de pouso, a cancha de futebol… mas é tudo dentro da área da fazenda”, lamenta o vice-prefeito Antonio Augusto Figueiredo Athar, ou simplesmente Bambueta, do MDB, que assumiu o cargo enquanto o titular, Jaime da Silva Barbosa, do mesmo partido, esteve afastado por improbidade administrativa.
As consequências da nova cerca foram imediatas. Na “periferia”, que na prática fica a 15 minutos a pé do centro, as casas estão sendo construídas em cima de um lixão. Ao meio-dia, moradores sentam em um avarandado miserável para almoçar tendo como companhia centenas de urubus que sobrevoam o aterro improvisado em busca de restos de comida ou carniça.
Afastar as famílias do lixo é uma das prioridades da cidade, e a prefeitura até tinha recursos federais para construir um aterro conforme a legislação. Escolheu e comprou um terreno, mas logo os gestores descobriram que a área era requisitada por uma comunidade quilombola e não puderam dar sequência ao projeto, que já tinha até financiamento garantido. A solução temporária foi jogar os resíduos longe do centro, mas a chegada da cerca afunilou o espaço e, hoje, uma área da divisa entre a cidade e o arrozal está tomada pelo lixão.
“Somos um município sem-terra. A gente não tem área para fazer outro lixão, aí tudo é do Quartiero. Dinheiro para desapropriar, não tem, tamo num aperreio”, lamenta Bambueta.
Ciente do problema, o arrozeiro apresentou uma solução. “A minha fazenda cerca a cidade? Tudo bem, cerca a cidade. A cidade tem problema de expansão? Tem problema de expansão”, me disse. “Aí reservei 34 hectares para fazer um loteamento, mas não é para ganhar dinheiro, é para ter uma expansão organizada e que não me traga problema de invasão, para que as pessoas tenham uma válvula de escape. Mas larguei de mão porque não tem comprador… é uma demanda terrível, a gente dando praticamente de graça, mas não tem comprador”.
Saudades do futuro
Enquanto Quartiero discute a legalidade do seu arroz e gado com as autoridades do Marajó, sua antiga plantação na reserva Raposa Serra do Sol pouco a pouco recupera as características originais da paisagem. As cicatrizes do arrozal sobre a terra ainda podem ser vistas pelo Google Maps. De perto, é notável que milhares de sementes do cereal ainda brotem de forma selvagem, a despeito da falta de irrigação – e o tamanho da infraestrutura abandonada na área denunciam o volume de água que era desviado do rio Surumu para a lavoura.
Cinco dias antes de deixar a área, ele havia ordenado a seus empregados que não deixassem pedra sobre pedra nas propriedades. “Carretas enormes e fechadas deixavam a fazenda levando o rebanho da raça canchim, com quase 5 mil cabeças. Em outra parte, grupos de peões retiravam telhas, portas, esquadrias, estruturas metálicas, enfim, todo o material que pode ser aproveitado em outra obra. Logo atrás deles, vinha uma enorme retroescavadeira, derrubando paredes e revolvendo pisos”, narra uma reportagem do Estadão.
Pela destruição e por outras atitudes, ele responde a dezenas de ações judiciais. “Tenho um monte de processo, são ridículos, não têm como prosperar. Lá em Roraima, denunciaram que eu cuspi em um policial. Que eu demoli uma caminhonete com pontapé. Que eu sequestrei, que eu… enfim. Só [não denunciaram] até hoje que eu roubei”, contesta – há controvérsias, porque ele foi condenado por improbidade administrativa.
Destrinchar o resultado dessas investigações, inquéritos e até verificar a totalidade de processos já abertos contra Paulo Cesar Justo Quartiero é um desafio incalculável. No site da Justiça Federal, meia centena de entradas aparecem ao iniciar uma busca por registros em seu CPF. Na Justiça Estadual de Roraima, mais uma leva de procedimentos o tem como parte. O Supremo Tribunal Federal também registra dezenas de entradas – entre inquéritos policiais, ações penais, ações cíveis e outras.
Como deputado e vice-governador, ele ganhou foro privilegiado e todas as ações abertas pelo Ministério Público Federal contra ele em Roraima migraram para cortes superiores. Atualmente Quartiero não possui nenhum cargo público, e com isso os processos deveriam descer para as instâncias inferiores, num vai-e-vem jurídico que tem favorecido a sua defesa rumo à prescrição das ações.
‘Nós temos essa beleza toda e não podemos desfrutar’.
Ele também usa outros expedientes para prolongar a tramitação das demandas judiciais, escapando dos oficiais de justiça que tentam convocá-lo para oitivas e até mesmo para que receba o resultado dos julgamentos.
Mesmo depois de ser localizado, nunca se sabe se ele vai aparecer para prestar seu depoimento na instrução do processo, como deixou registrado o juiz federal Igor Itapary Pinheiro depois que Quartiero faltou ao encontro agendado: “No presente caso, noto que o acusado demonstra claro e inequívoco desinteresse em comparecer aos atos processuais. É nítida intenção de dificultar ou prolongar o deslinde da controvérsia”.
Embora o volume de processos seja um fardo para o ruralista, os olhos de Quartiero brilham quando ele fala do conflito. PC atribui a si mesmo uma fantasia heróica, como quando diz que “nós poderíamos ter mudado a história do Brasil” se tivesse ousado ainda mais. Um exemplo: sugere que poderia ter levado policiais federais como reféns para a Guiana, para chantagear o governo federal a abrir mão da demarcação em área contínua.
“A PF foi um dia na comunidade do Flechal, que era a nosso favor. Como são meio abusados, começaram a fazer gracinha com as indígenas, e os índios prenderam três guardas federais, ficaram com eles presos. Depois, o governador interveio, prometeu uns bagulho pros índios e soltaram os federal depois de muito tempo. Mas, se eu tivesse ido para lá, pegado esses três federais, cruzado a fronteira – ali é bem pertinho – e ficado com eles lá na Guiana, tchê, o que eles iam fazer? Nós teríamos criado um problema que eles não teriam solução. Teria que ter negociação. Eu podia ter endurecido”, lamenta.
Entre esperançoso pelo que a era Bolsonaro pode significar e amargurado pelo que considera abandono, Quartiero diz ter saudades de um futuro que se avizinhou, mas ainda não chegou de fato. “Nós aqui na Amazônia, o agricultor, o trabalhador, a gente tem saudade do futuro. É como aquele cara que é casado com uma mulher belíssima – e todo mundo sabe que uma bela mulher custa caro. Tem que tratar bem. Então o cara cuida a mulher, paga cabeleireiro, paga para arrumar os dentes, para deixar a mulher bonita, só que ele não pode usufruir da mulher. Ele é casado, mas com separações de corpos. E ele tá aguardando essa mulher belíssima, mas vai aparecer o Ricardão que vai crau na mulher”, me disse.
“Então, nós aqui na Amazônia, nós temos uma natureza extraordinária, tantos problemas para resolver e tantas soluções para dar para a humanidade, só que nós temos essa beleza toda e não podemos desfrutar e estamos guardando para quando chegar o Ricardão aproveitar. Essa é a nossa história”, falou. Mais de meio ano depois, em 2019, a metáfora foi repetida por Bolsonaro, que afirmou que, “o Brasil é a virgem que todo o tarado de fora quer”.
Talvez o mandato de Bolsonaro seja a realização mais próxima do que Quartiero defendeu em março de 2016, no encontro regional da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, em Belém, no Pará. “Nós temos que mudar não quem tá no governo, temos que mudar o nosso governo”, discursou, criticando os entraves para o licenciamento rural. Mas é bem possível que do seu bunker no paraíso marajoara ele já esteja pensando na próxima etapa, cuja menção no evento gerou aplausos: “Aliás, nós temos que ser o governo”.
* Esta reportagem foi financiada pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos.
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