George Floyd não foi a primeira vítima de violência estatal dos Estados Unidos. As polícias do país já mataram inúmeras pessoas que nunca foram devidamente lembradas e para quem a justiça nunca foi buscada. Parte do que tornou o assassinato de Floyd tão cruel – desencadeando o que pode ter sido o maior movimento de protestos na história dos Estados Unidos – foi o caráter de execução pública, com 8 minutos e 46 segundos de duração, transmitida online. Floyd deu um rosto, uma história e um vídeo para a questão da violência do Estado americano, arraigada na supremacia branca. Como escreveu o advogado de direitos civis David Lane: “A brutalidade policial não aumentou. A quantidade de vídeos mostrando policiais violentos cresceu, e os americanos brancos estão finalmente vendo isso.”
Agora que o assassinato de Floyd forçou um debate nacional sobre as polícias dentro do território dos Estados Unidos, é hora de começarmos a enxergar as vítimas da política externa do país. Quantos americanos podem citar o nome de pelo menos uma das cerca de 200 mil mortes de civis ocorridas desde o início da guerra no Iraque? Mesmo quando as imagens grotescas de torturas – praticadas por militares dos Estados Unidos – em Abu Ghraib foram reveladas, os rostos das vítimas permaneciam apagados e seus nomes desconhecidos.
O que aconteceria se soubéssemos as histórias, os rostos e os nomes das vítimas de Eddie Gallagher, criminoso de guerra perdoado pelo presidente Donald Trump, que, de acordo com seus colegas, aceitava “matar qualquer pessoa que estivesse se movendo” quando estava no Iraque? Ou os 30 produtores de pinhão no Afeganistão que foram surpreendidos por um drone dos Estados Unidos em 2019? Quando divulgam suas ações no exterior, os militares americanos apresentam vídeos de ataques com drones que geralmente incluem pouco mais do que uma súbita névoa verde para demonstrar o poder bélico do país. Nunca ouvimos os últimos gritos das vítimas inocentes. Não as vemos se abraçando com força na esperança de que passem despercebidas pelas aeronaves não tripuladas. Vemos nossas máquinas, mas nunca a humanidade dessas pessoas. Elas tampouco se tornam hashtags: são vítimas ocultas.
Durante anos, pesquisadores registraram em detalhes o obscuro uso de drones pelos Estados Unidos, elemento central da guerra contra o terrorismo – e parte do legado de Barack Obama mantido por Trump. O Bureau of Investigative Journalism estima que até 17 mil pessoas tenham sido mortas por ataques de drones americanos no Paquistão, no Afeganistão, no Iêmen e na Somália, ao passo que a Airwars rastreou relatórios de quase 30 mil civis mortos pela coalizão liderada pelos Estados Unidos contra o ISIS, o Estado Islâmico, no Iraque e na Síria. Em 2015, o Intercept publicou documentos secretos do governo americano detalhando o funcionamento interno do programa de drones. Dois anos depois, uma investigação do New York Times descobriu que civis foram mortos numa proporção 31 vezes maior do que a admitida pela coalizão anti-ISIS.
Apesar desses esforços, houve pouca cobertura jornalística dos ataques de aeronaves não tripuladas e, mais especificamente, das histórias das pessoas mortas pelos operadores de drones, que apertam botões a milhares de quilômetros de distância – uma combinação de apatia coletiva e de esforços do governo dos Estados Unidos para blindar o programa em relação a críticas da opinião pública. Apenas três dias depois da posse de Obama, em 2009, quando os Estados Unidos projetavam sua melhor imagem de progresso e esperança, um drone da CIA matou nove civis reunidos para uma refeição no Paquistão. Faheem Qureshi, um adolescente que por pouco sobreviveu ao ataque, disse ao jornal The Guardian na época: “Eu tinha todas as esperanças e todo o potencial, agora não estou fazendo nada”. Faheem nunca recebeu uma explicação do motivo pelo qual sua família foi morta no ataque, e a grande maioria do público americano provavelmente nunca ouviu sua história.
Só em 2013 o Congresso ouviu depoimentos de uma família impactada pela guerra dos drones. Nabila Rehman, uma doce menina de 9 anos, levou os membros do Congresso às lágrimas enquanto segurava desenhos feitos à mão que mostravam como tinha sido o ataque que matou sua avó no Paquistão. Seu pai, Rafiq ur Rehman, gritou: “Não era uma militante, e sim minha mãe”, sentindo o fardo de precisar explicar que sua mãe significava alguma coisa e não tinha feito absolutamente nada que justificasse sua morte. Se fosse transmitido para todas as salas de estar do país, aquele momento teria o potencial de comover pessoas com consciência, para que exigissem maior responsabilidade nas ações militares realizadas no exterior – enquanto combatemos a militarização da polícia em nosso próprio território.
Os americanos precisam exigir maior responsabilidade por suas ações militares no exterior, enquanto combatem a militarização da polícia no próprio território.
Ao herdar o programa de drones de Obama, Trump tornou essa guerra mais ambiciosa e ambígua, ao mesmo tempo ampliando e escondendo melhor as operações. As Forças Armadas dos Estados Unidos realizaram 2.243 ataques com drones nos primeiros dois anos de Trump – em comparação com os 1.878 realizados ao longo de todo o mandato de Obama. Trump também tornou essa guerra ainda mais secreta, emitindo uma ordem executiva pela qual não se exige mais a publicação de relatórios anuais de ataques e mortes resultantes do uso dessas aeronaves, ao passo que a Marinha expandia sua misteriosa tecnologia de drones. Desde que Trump tomou posse, não houve um único depoimento ao Congresso das famílias vitimadas pelo uso das aeronaves não tripuladas.
Não podemos responsabilizar nosso governo pelas vítimas de violência estatal se não houver transparência em suas ações. Além disso, não é possível provocar a indignação moral necessária para introduzir mudanças se não considerarmos a humanidade de nossas vítimas. Martin Luther King – que perdeu grande parte de sua popularidade quando vinculou a conduta americana no Vietnã ao comportamento dentro dos Estados Unidos – nos desafiou a pensar sobre o poder intoxicante que produzia o falso senso de invencibilidade do governo americano ao usar armas de guerra – em casa e no exterior – contra civis inocentes. Também nos fez refletir sobre a apatia perigosa de grande parte do público americano, que não parecia compreender a magnitude da guerra. Em um mundo sem redes sociais, ele tentou comunicar a tragédia do assassinato sem sentido de “cerca de um milhão de crianças vietnamitas … incineradas por napalm”, enquanto alguns soldados americanos “com ódio desenfreado, disparam contra o inimigo ferido caído no chão.” Ele chamou isso de uma guerra que havia mutilado nossa consciência e insistiu que “essas mortes são suficientes para fazer com que todos os homens se mobilizem com justa indignação”.
O que a história de George Floyd provocou não poderia ter sido feito por assassinatos policiais não gravados. Nós o assistimos e o ouvimos chorar, implorando por sua mãe, pressionado pelo joelho do policial Derek Chauvin. O assassinato de Floyd levou massas às ruas, legitimamente indignadas, mesmo em meio a uma pandemia. Chegou a hora de começarmos a ouvir os gritos de Nabila Rehman por sua mãe sob o impacto de nossas bombas – e de insistirmos que pessoas como ela não sejam assassinadas de forma impune e silenciosa.
Tradução: Ricardo Romanoff
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