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JBS raciona máscaras para empregados após frigoríficos causarem surtos de covid-19

Funcionários da empresa tem que reutilizar máscaras molhadas por até cinco dias seguidos.

A irregularidade se soma a outras práticas da companhia como a falta de busca ativa e monitoramento de casos de coronavírus.

Entre carcaças de animais e temperaturas de menos de 10 graus, os processos para tornar um pedaço de carne apto para o consumo envolvem muita umidade. Após oito horas de trabalho, é natural que as máscaras que os trabalhadores do setor frigorífico passaram a usar durante a pandemia de covid-19 fiquem encharcadas. Mesmo assim, em unidades da JBS de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, funcionários são obrigados a reutilizar o equipamento por cinco dias.

Tivemos a acesso com exclusividade a relatórios da fiscalização do Ministério Público do Trabalho e a relatos de trabalhadores que mostram como a multinacional prefere economizar nos equipamentos de proteção individual, os EPIs, a resguardar a saúde de seus funcionários. O uso contínuo das máscaras PFF2, modelo fornecido aos funcionários, contraria normas sanitárias nacionais e até mesmo o que indica o rótulo do produto, que deixa claro se tratar de uma máscara descartável, a ser usada por apenas um turno.

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Em condição de anonimato, os funcionários relataram ao Intercept que são orientados a guardar as máscaras molhadas em sacos plásticos, deixá-las dentro dos armários individuais e reutilizá-las no dia seguinte. A própria empresa admitiu em 20 de julho, em ofício aos auditores-fiscais do Trabalho de Santa Catarina, que a troca ocorre apenas uma vez por semana. Os advogados da JBS garantem que as máscaras são trocadas quando estão “úmidas, sujas ou rasgadas”. Trabalhadores dizem desconhecer qualquer tipo de substituição que não seja a semanal.

“Tem uma dificuldade muito grande porque os supervisores começam a questionar os trabalhadores e a dizer que aquela máscara (mesmo úmida) pode ser usada. Eles não trocam”, nos relatou um trabalhador de um frigorífico catarinense.

A irregularidade se soma a outras práticas da companhia detectadas em fiscalizações dos auditores-fiscais. Entre elas, a falta de busca ativa e monitoramento de casos de coronavírus e o fato de que funcionários infectados com covid-19 seguiam trabalhando normalmente.

Não é mero detalhe. Frigoríficos se tornaram focos de disseminação da doença em vários lugares do mundo, como nos Estados Unidos – onde em apenas uma unidade da JBS morreram seis pessoas – e na Alemanha. No Brasil, dados levantados pelo MPT apenas para o Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná – que concentram metade dos 500 mil empregos do setor no país –, mostram que no dia 13 de julho havia 11.499 casos de covid-19 em 104 fábricas de diferentes empresas, com oito mortes de funcionários.

Os casos representam quase 6% de todos os registrados na região sul no final de julho –e essa porcentagem era ainda maior antes de a região se tornar um dos novos epicentros da doença no Brasil. Por isso, desde março, os MPT dos estados já fizeram 90 termos de ajustamento de conduta, os TACs, no setor – nenhum, contudo, com a JBS, que acumula 12 ações civis públicas por irregularidades relacionadas à covid-19.

A JBS é a maior processadora de proteína animal do mundo, com receita líquida de R$ 204,5 bilhões em 2019. Mas, além de preferir economizar R$ 10 em média por máscara, a gigante é a única empresa do setor no Brasil que se recusa a negociar acordos de adequação de segurança para a saúde dos trabalhadores na pandemia. A empresa afirma, por meio de nota, que adotou “rigorosas medidas de prevenção e segurança e que estão em total conformidade com as normas estabelecidas pelo poder público no país, não havendo, portanto, nenhuma infração ou medida passível de ajuste por meio de TAC”. Mas a realidade contraria a sua assessoria de imprensa.

‘Jeitinho’ com as normas

Em tese, a máscara PFF2 deve ser de uso único – ou seja, por um turno. Mas, para justificar o uso prolongado do equipamento por seus funcionários, a JBS distorce as recomendações da Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, a SBPT.

A nota técnica nº 4/2020 da Anvisa, que data de 8 de maio, admite a possibilidade de reutilização da máscara PFF2 apenas profissionais de saúde “em caso de escassez” de produto semelhante. Ainda assim, determina diversos cuidados, entre eles que, caso haja disponibilidade, seja usado um protetor facial e que “máscaras úmidas, sujas, rasgadas, amassadas ou com vincos, devem ser imediatamente descartadas”. Também há diversas recomendações quanto ao armazenamento. Além do fato de uma linha de produção de frigorífico ser um ambiente completamente diferente de uma unidade de saúde, vídeos e fotos de funcionários da JBS enviados ao Intercept mostram máscaras completamente molhadas sendo reutilizadas.

Funcionário mostra umidade da máscara que empresa considera reutilizável.

Assim como a norma da Anvisa, a recomendação da SBPT se refere especificamente a profissionais da área da saúde, e prevê a reutilização desse tipo de equipamento só em situações de escassez, o que não parece ser o caso. Na planta de Passo Fundo da empresa, por exemplo, a fiscalização verificou que há um estoque com 45 mil máscaras PFF2.

Na fábrica da cidade gaúcha, funcionários chegaram a levar máscaras caseiras de pano para o trabalho. O caso foi exposto no relatório de interdição fábrica, em abril, citado em uma ação civil pública apresentada pelo MPT no RS. “O uso, sem qualquer tipo de critério, de máscaras dos mais diversos tipos, materiais e estampas, sem absolutamente qualquer controle ou especificação. Alguns dos trabalhadores entrevistados receberam máscaras de uso único há semanas atrás e continuam usando diariamente, contrariando orientação explícita dos fabricantes. Outros, trazem de casa máscaras caseiras”, diz a ação.

Outra fiscalização,no começo de julho, constatou que a empresa havia alterado o modelo de máscara para o PFF2, com reutilização por cinco dias – antes cabia aos funcionários trazerem suas próprias máscaras. Mas, no relatório da inspeção, os procuradores mostraram preocupação com o fato de a empresa seguir recomendações referentes a unidades de saúde e não frigoríficos, espaços em que, além da umidade, os trabalhadores “realizam maior esforço físico”.

Até então, o setor sequer tinha regulamentação para prevenção da doença. Levou quase quatro meses após o primeiro caso do novo coronavírus ter sido registrado no país para o governo Bolsonaro publicar uma normativa específica para o setor de abate e processamento de carnes. A portaria interministerial nº 19, das pastas da Economia, Saúde e Agricultura, só saiu em 19 de junho –e cita apenas máscaras de tecido ou cirúrgicas, que “devem ser substituídas, no mínimo, a cada três horas de uso ou quando estiverem sujas ou úmidas.”

Pandemia frigorífica

Segundo o pesquisador do Ipea Ernesto Galindo, que está concluindo um levantamento sobre a disseminação do vírus nos frigoríficos brasileiros, há um forte indicativo de interiorização do novo coronavírus no Brasil por meio do setor. No fim de junho, cidades do interior já respondiam por 60% dos casos da doença no país. “Não é que o vírus tenha sido levado para o interior pelos frigoríficos, é que eles facilitam a disseminação”, explica Galindo.

Isso porque os frigoríficos são locais perfeitos para a circulação da doença, com um grande número de trabalhadores que atuam “ombro a ombro” nas linhas de produção, em ambientes com alta umidade e com diversos pontos de aglomeração. Durante a pandemia, aliás, o segmento passou a contratar mais gente. Enquanto o país perdeu 1,2 milhão de vagas formais de janeiro a junho deste ano, os frigoríficos criaram 24 mil postos de trabalho, sendo 18 mil no sul. Apenas a JBS contratou 10 mil novos trabalhadores na pandemia, segundo comunicado da empresa a investidores em 29 de julho.

Segundo Galindo, ao sobrepor dados da incidência de covid-19 no setor e em municípios, percebe-se que em muitos lugares os frigoríficos são responsáveis por até dois terços no número de casos da doença. Uma unidade da JBS em São Miguel do Guaporé, no interior de Rondônia, por exemplo, chegou a ter 60% dos casos confirmados de covid-19 do município.

Como a região sul concentra metade dos 500 mil empregos do segmento no país, a situação é mais grave naqueles estados, diz o pesquisador. Em Ipumirim, oeste de Santa Catarina, uma inspeção do Ministério Público do Trabalho identificou que 5% dos 1,5 mil trabalhadores de uma fábrica da JBS estavam infectados com o novo coronavírus no dia 18 de maio, conforme os registros médicos da empresa. Apesar disso, parte deles exercia normalmente suas funções. Os casos registrados na unidade, que foi interditada, representavam aproximadamente 14% dos contaminados em toda a região oeste e serra catarinense à época.

A JBS também se destaca como frigorífico campeão de ações do MPT na pandemia. Já são 12 no país, todas citando problemas de falta de cuidados para proteger trabalhadores do novo coronavírus. Unidades de SC, RS e RO já chegaram a ter a operação interrompida por decisão judicial após denúncias do MPT apontarem que os locais eram focos de proliferação do vírus.

Em quatro meses de pandemia, e após diversos surtos do vírus entre trabalhadores, a JBS era a única empresa que resistia em fazer acordo com o MPT, informou Priscila Dibi Schwarcz, procuradora do Trabalho no Rio Grande do Sul e gerente nacional adjunta do Projeto de Adequação das Condições de Trabalho nos Frigoríficos do MPT. No dia 27 de julho, a direção da unidade de Três Passos, no interior do Rio Grande do Sul, firmou o primeiro acordo da gigante de processamento de carnes. Eles se comprometeram a testar todos os trabalhadores indicados em uma triagem prévia e a fornecer máscaras PFF2 a funcionários de todos os setores mas não aceitaram fazer a a troca diária dos equipamentos.

Por meio de nota, a JBS afirmou que “desde o início da pandemia no Brasil, adota um rigoroso protocolo de segurança em todas as suas instalações”, e que “as medidas implementadas atendem as recomendações dos órgãos de saúde internacionais, nacionais e estão em conformidade com a portaria conjunta” interministerial.

A empresa também diz ter contratado a consultoria de médicos “infectologistas renomados e instituições de referência, como o Hospital Albert Einstein que apoiaram na construção do protocolo de proteção para os seus 135 mil colaboradores no Brasil”. Quanto ao TAC, afirma que “não há nenhuma infração passível de ajuste”.

Atualização – 6 de agosto, 10h

O texto foi alterado para acrescentar o acordo firmado pela JBS com o MPT referente a unidade de Três Passos, no interior do Rio Grande do Sul, em 27 de julho.

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