O malabarismo da grande imprensa para omitir os nomes das facções coloca cidadãos em risco

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O malabarismo da grande imprensa para omitir os nomes das facções coloca cidadãos em risco

Boa parte dos jornais e programas de TV não nomeia as facções e milícias para não valorizar esses grupos. Mas essa decisão se provou inócua – e perigosa.

O malabarismo da grande imprensa para omitir os nomes das facções coloca cidadãos em risco

“O grupo que atua ao centro e o grupo que também está ao centro vão oficializar, nos próximos dias, o desembarque de um bloco central, liderado na Câmara pelo deputado Arthur Lira (de outro grupo do centro). Conhecido como “blocão”, o grupo maior conta, atualmente, com os partidos um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito e nove e tem 221 deputados federais, o maior grupo da Casa”.

Você entendeu alguma coisa do que leu acima?

Essa é uma matéria, publicada pelo Estadão, em julho, em que nós deliberadamente suprimimos o nome dos partidos políticos e suas alianças, tornando impossível entender quem são os envolvidos na história. É exatamente isso que grande imprensa faz com as facções criminosas e milícias nas reportagens: ela omite o nome desses grupos que afetam a vida de 2 milhões de cidadãos que moram em favelas e comunidades cariocas.

Todas as manhãs, os jornais do Rio de Janeiro são pendurados nas bancas com manchetes parecidas entre si – e que não informam muito. “Disputa entre traficantes rivais aterroriza moradores”. “Guerra entre quadrilhas rivais no [bairro] deixou [X] mortos”. “Traficante líder de facção criminosa é preso no Rio”.

Facção, quadrilha, bando, grupo. A imprensa carioca parece ter comprado, décadas atrás, um pacote de palavras para escrever sobre o tráfico de drogas que não dizem nada. O repertório batido e desinformativo é fruto de uma ordem não expressa em manuais de redação, mas que corre pelas mesas e corredores: repórteres não devem citar o nome das facções criminosas nas matérias.

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Os nomes do Comando Vermelho, o CV, do Terceiro Comando Puro, o TCP, do Amigos dos Amigos, o ADA, e dos grupos de milícia não aparecem nos jornais ou sites, mas estão pichados nos muros, trens, ônibus; são assunto nos grupos de WhatsApp e nas esquinas do Rio. Tem pacote de figurinhas, memes, músicas próprias.

CV, TCP, ADA e milicianos como os do Bonde do CL 220 (reformulação da Liga da Justiça), do Urso, do Jura, Águia de Mirra dominam bairros inteiros e comandam a cor do cabelo, o vocabulário do morador e até o comportamento de quem está ali só para visitar alguém. Ao omitir o nome das facções, a imprensa finge que elas não existem, mas o problema, obviamente, não desaparece. Na verdade, ao esconder a existência e o domínio desses grupos nas regiões, a imprensa pode pôr em risco a vida de quem transita por essas áreas.

“Pode parecer uma decisão sensata aos olhos de editores que enxergam a superfície, mas é uma omissão que compromete nosso jornalismo por impedir o repórter de descrever a cidade como ela é”, contou um jornalista que passou anos cobrindo a editoria Rio do Jornal O Globo. “É sabido que não pode mencionar as facções”, disse outro repórter que atuou no mesmo jornal.

Rio de Janeiro - As forças de segurança do Rio prenderam na favela do Arará, zona portuária, um dos traficantes de drogas mais procurados da cidade, Rogério Avelino de Souza, o Rogério 157 (Tânia Rego/Agencia Brasil)

O traficante Rogério Avelino de Souza, o Rogério 157, preso em 6 de dezembro de 2017.

Foto: Tânia Rego/Agencia Brasil

A Rocinha e o efeito dominó

Como isso funciona na prática? Na madrugada de 17 de setembro de 2017, moradores da Rocinha, na zona sul do Rio, acordaram ao som dos tiros causados pelo confronto entre o grupo de Rogério 157, do Comando Vermelho, que disputava o domínio da favela com Nem, do Amigo Dos Amigos. Rogério herdou a Rocinha quando Nem foi preso, em novembro de 2011. Nem foi traído, e a cidade do Rio sofreu um efeito dominó da violência armada.

O baque na favela da Rocinha se estendeu por dias, e os tiroteios fecharam vias, estações de metrô, escolas e universidades. Mas o problema não ficou restrito à zona sul da cidade. A prisão de 157 ocorreu em dezembro de 2017, na favela do Arará, na zona norte do Rio. Neste meio tempo, o traficante rodou por mais de 30 locais. Dados do Disque Denúncia mostraram a rota: Vidigal, Alemão, Turano, Salgueiro, Tijuca, Alto da Boa Vista, Bonsucesso, Campo Grande, Vista Alegre, Guadalupe, Penha, Vila da Penha, Costa Barros, Chapadão, Nova Iguaçu, Icaraí (Niterói), Marechal Hermes, Santa Teresa, São Gonçalo, Estácio, Rio Comprido, Itaoca, Lins de Vasconcelos, Bangu, Del Castilho, Cidade de Deus, Jacarepaguá, Vigário Geral, Mangueira, Olaria, Barra de Guaratiba, Pedra de Guaratiba e Barra da Tijuca.

Em algumas dessas áreas, a maioria sob domínio do Comando Vermelho, ficou visível o rastro da passagem de 157. Desde o início do embate na Rocinha, no dia 17 de setembro, até a prisão de Rogério 157, em 6 de dezembro, a plataforma Fogo Cruzado mapeou 530 tiroteios nas regiões que sofreram as consequências da disputa.

O Rio como ele é

Os embates entre CV, TCP, ADA e milícias é travado à bala, mas também no campo das ideias. É importante para o traficante e também para o miliciano que os membros do grupo e moradores tenham um sentimento de pertencimento, mesmo que involuntariamente. Por isso, há códigos particulares nos morros e periferias do Rio. Serve para reconhecer o amigo e identificar o inimigo. E, no mais extremo dos casos, se manter vivo.

O risco de morte está também na cor do vestuário. Antônio* precisou tirar a camisa para entrar no Jardim Miriambi, em São Gonçalo. A ordem foi dada por traficantes do Terceiro Comando Puro que pararam seu carro na entrada da favela. Motorista de aplicativo, ele vestia uma camisa polo vermelha, cor associada ao Comando Vermelho, que também tentava dominar a região. “Eu fiquei sabendo pela televisão que a área estava em guerra, mas não sabia quem era quem. Se era guerra com milícia, com polícia ou com o CV. Se soubesse, teria me precavido e vestido uma roupa de outra cor”, afirmou. Como você já sabe, a imprensa não informa o nome das facções e milícias.

O malabarismo da grande imprensa para omitir os nomes das facções coloca cidadãos em risco

A morte do jornalista Tim Lopes modificou a cobertura da Globo sobre facções. Na foto, a irmã do jornalista, Tânia Lopes, durante ato na praia de Copacabana, em memória aos 15 anos da morte de seu irmão.

Foto Tomaz Silva/Agência Brasil

‘O que era falado pela polícia, era repetido na imprensa’

Quem foi repórter na década de 1990 afirma que dois grandes episódios fizeram com que a cobertura de segurança pública no Rio tomasse novos rumos. O primeira foi a onda de sequestros dos anos 1990, alguns deles cometidos por traficantes e outros pela própria polícia.

O segundo episódio foi o assassinato do jornalista Tim Lopes durante uma reportagem investigativa, em 2002, na Vila Cruzeiro. Ele filmava um feirão de drogas com uma câmera dentro da mochila, mas foi descoberto, torturado e assassinado. A grande imprensa, especialmente a Globo, decidiu então parar de citar o nome das facções para não dar palanque aos seus feitos como se a estratégia fosse inibir novos crimes ou alterar o modus operandi de criminosos. O crime caiu? Matou menos? O tráfico acabou? Os traficantes ficaram mais tímidos? Ostentam menos porque o nome de sua facção não sai nos jornais? A resposta é não para todas as perguntas. O único prejudicado é o leitor.

“É uma omissão que compromete nosso jornalismo por impedir o repórter de descrever a cidade como ela é.”

“Ao longo de 20 anos que trabalhei, nunca me foi pedido (para esconder o nome da facção). Eram outros tempos, também. Não vejo como prejuízo, embora a informação fique comprometida para o leitor, ouvinte ou telespectador. Quem não domina o assunto, mas se interessa pela reportagem, não vai saber exatamente quem é o responsável. Mais importante do que isso, é conseguir determinar porque o Rio de Janeiro chegou a esse ponto”, opina Renato Homem, autor do livro ‘Marcinho VP: Verdades e Posições‘ e repórter com passagens por veículos como O Globo e O Dia. “Esses grupos existem, são verdadeiros e dominam os guetos do país”.

Já com Luís*, a coisa foi diferente. “Pediam para não citar nome de facção”, disse ele, que ficou cerca de cinco anos n’O Globo. Ele disse que não deixou de tentar dar nome aos bois. “Eu sempre escrevia, quando achava que era importante, e deixava para eles cortarem. Às vezes passava, mas não me lembro especificamente quando foi que deixaram. Depende de quem está fechando [a edição], e de quem estava na revisão da editoria Rio. Depois que demitiram todos os revisores, a leitura ficou menos atenta”.

Um experiente ex-produtor de telejornais do Rio pontuou um terceiro motivo para os repórteres não citarem os nomes: atualmente, é a polícia militar que quase sempre pauta os programas. “A onda otimista do programa de Unidade Polícia Pacificadora, que começou há 11 ou 12 anos, fez da imprensa quase uma extensão da assessoria de imprensa da polícia. O que era falado pela polícia militar era repetido fielmente. Isso ficou. A polícia, claro, não chama as facções pelo nome. Mas a gente não precisava repetir isso.”

2N
3N

O malabarismo da desinformação

Os telejornais regionais da hora do almoço são recheados de matérias sobre segurança pública, mas são pouquíssimas as vezes em que a reportagem cita o nome das facções. Quando isso acontece, normalmente vem de algum especialista – o SBT Rio e a Record Rio, por exemplo, usam delegados como comentaristas.

Em novembro do ano passado, jornais fizeram um malabarismo para não noticiar a trajetória do traficante Thomas Jayson Vieira Gomes, o 3N, considerado o mais procurado do estado. Ele foi morto pela polícia em Itaboraí.

Explicar a história de 3N é bem difícil sem citar o nome das facções pelas quais ele passou: Thomas era chamado de 2N quando pertencia ao Comando Vermelho. Ao pular para o Terceiro Comando, mudou o apelido para 3N. A saudação do CV é ‘tudo dois’, e o número pegaria mal no TCP – cuja saudação é ‘tudo três’.

“Se soubesse, teria me precavido e vestido uma roupa de outra cor.”

Na tarde do dia 26 de novembro, o RJ1 dispensou quase quatro minutos para noticiar a morte. Explicou assim: “segundo a polícia, o traficante 3N era o principal articulador da guerra entre duas facções criminosas em São Gonçalo. Antes, ele era conhecido como 2N, mas mudou de apelido depois de trocar de quadrilha”.

No Balanço Geral, da TV Record, uma das reportagens dizia que “o traficante mais procurado do Rio era chefe do tráfico no Complexo do Salgueiro. Em abril, decidiu mudar de facção e assassinou um antigo aliado por ele ter se negado a mudar de grupo criminoso”. Você entendeu?

O Globo também rebolou para não citar as facções. “Ele havia caído em desgraça junto à sua antiga facção por conta de dívidas com fornecedores de drogas e armas e de atrasos nos repasses de parte de seu faturamento para o comando da quadrilha […]. Já em outra facção, passou a mudar constantemente de endereço”. Na reportagem do dia seguinte, o Extra publicou a foto do cordão de um segurança de 3N que também foi morto na ação. O pingente tem uma Bíblia e as siglas TCP. A matéria dá detalhes da joia, mas não cita o nome da facção. “O pingente, com cerca de oito centímetros de diâmetro, traz o nome de Xandinho, o desenho de uma bíblia, com o trecho de um salmo escrito no centro, duas pombas da paz e as iniciais da facção criminosa”.

Uma trabalheira para não informar.

Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau: As cinco comunidades que, juntas, formam a região conhecida como Complexo de Israel.

Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-pau: as cinco comunidades que, juntas, formam a região conhecida como Complexo de Israel.

Mapa: Google

Complexo novo, omissões antigas

Na zona norte do Rio, o traficante Álvaro Malaquias Santa Rosa, conhecido como Peixão, está expandindo o terreno do Terceiro Comando Puro, o TCP, nos bairros de Vigário Geral, Parada de Lucas, Cordovil e Brás de Pina, formando um novo complexo de favelas. Chefe do TCP na região e pastor evangélico, Peixão exibe Estrelas de Davi e bandeiras de Israel após tomar favelas de rivais, e impõe também, entre outros hábitos, a religião aos moradores da região.

O novo conjunto de favelas foi nomeado pela imprensa como “Complexo de Israel”. No G1, o caso foi noticiado sem nenhuma menção ao TCP – que tem histórico de ataques a terreiros de religiões de matrizes africanas –, apenas ao nome de Peixão. Como o leitor fará a ligação entre os crimes ou entenderá o que esse domínio narco-religioso representa? Quem mora nos locais sabe, porque se informa por outros meios. Jornais populares, de bairros e sites fora do mainstream nomeiam o que já tem nome. Mas, e quem não mora ali se informa como?

Mais recentemente, no início de julho, um relatório divulgado pela Polícia Civil mapeou 1.413 favelas dominadas por traficantes e milicianos. O documento mostrava que o Comando Vermelho dominava 828 favelas; as milícias, 278; Terceiro Comando, 238 e Amigo dos Amigos, 69. Essa informação, porém, chegou um tanto maquiada para os telespectadores da Globo: ao longo do dia 7 de julho, os telejornais da emissora exibiram a informação sobre os domínios de favelas por tráfico e milícias denominando as facções como “Traficantes Grupo 1”, “Traficantes Grupo 2” e “Traficantes Grupo 3”.

Foto: Reprodução: Rede Globo

A exceção à regra, em praticamente todos os veículos, é a Liga da Justiça, a primeira e mais influente milícia do Rio, em atividade na zona oeste da cidade. Então, quais são os parâmetros jornalísticos?

“Não há quem não saiba da existência desses grupos criminosos. Não há quem não saiba que existem guetos onde esses grupos criminosos dominam. Hoje em dia, o Rio está fatiado por esses grupos. Aí, você repara a dicotomia: a imprensa omite o nome do CV, ADA, TCP, mas não se intimida a citar os nomes das milícias”, comenta Renato Homem.

E isso nos remete a um outro ponto, levantado por um ex-repórter do Grupo Globo. Ele lembra que foi a imprensa que começou a batizar as facções quando chamou de Falange Vermelha a união dos presos comuns em Ilha Grande. A Falange, mais tarde, se tornou o Comando Vermelho. “Vários depoimentos, inclusive o livro ‘400 contra um’, do William da Silva Lima, o Professor, mostram que o grupo original que formou o CV se autodenominou Grupo União“, disse ele, pontuando a “tremenda hipocrisia” de não citar os nomes das facções. Para o repórter, essa prática também não deixa de ser o apagamento de um dos lados da história do Rio, “nascido da perpetuação da violência do estado nas cadeias – movimento em sintonia com a submissão da imprensa aos órgãos de segurança”. Quando William morreu, a notícia foi: “Morre William ‘Professor’, um dos fundadores da maior facção criminosa do Rio.”

Um das premissas do jornalismo é informar de modo qualificado, mas boa parte da grande imprensa considera razoável omitir uma informação importante para contextualizar a violência no Rio. A decisão de não dizer os nomes das facções e milícias que dominam favelas e bairros inteiros não é apenas uma decisão semântica, mas tem impacto real na vida de mais de 2 milhões de pessoas que vivem sob domínio desses grupos.

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