O departamento de Estado dos EUA tem uma nova visão para uma internet “limpa”, o que significa uma internet sem a China. Esta nova rede etnicamente exclusiva “é a abordagem abrangente da administração Trump para proteger a privacidade de nossos cidadãos e as informações mais confidenciais de nossas empresas”, garantindo que a China não seja capaz de elaborar uma infinidade de subversões e violações com tecnologia que os EUA e seus aliados já fazem há anos. Como um documento político essa visão é absurda, mas como um documento moral, um pedaço de hipocrisia codificada, fica perfeitamente claro: se é para haver um estado de vigilância global, é melhor que ele seja feito nos EUA.
Uma declaração do Secretário de Estado Mike Pompeo inclui um plano em cinco frentes para repelir as tentativas da China Vermelha para desviar e abusar de seus dados: trabalhar para manter as operadoras de telefonia chinesas (presumivelmente comprometidas por Pequim) fora dos mercados dos EUA, para que os apps chineses que violam a privacidade sejam excluídos das lojas de aplicativos americanas, para remover apps dos EUA das lojas de aplicativos administradas por empresas chinesas, para manter os dados dos cidadãos americanos longe de servidores em nuvem chineses “acessíveis a nossos adversários estrangeiros” e para garantir que os cabos submarinos que transportam sinais de internet entre continentes não sejam secretamente interceptados por serviços de inteligência chineses.
A verdadeira questão, mais até do que como tudo isso poderia ser realizado na prática pelos ditames do Departamento de Estado, é a seguinte: por que alguém deveria levar a iniciativa a sério? Como pode qualquer rede ser considerada limpa após décadas de aproximação com as agências de espionagem americanas? A absoluta ousadia dos Estados Unidos em condenar “aplicativos [que] ameaçam nossa privacidade, proliferam vírus e espalham propaganda e desinformação” é um pouco atordoante demais para ser ridícula. Sem exceção, os Estados Unidos se envolvem em cada uma dessas práticas e violam cada uma dessas virtudes de uma Internet limpa. Quando vamos parar?
O programa de vigilância telefônica da NSA pós-11 de setembro, por meio do qual grandes operadoras de telecomunicações como AT&T e Verizon cooperaram com o governo para fornecer dados confidenciais para centenas de milhões de chamadas e mensagens de texto, foi encerrado apenas no ano passado (e apenas supostamente encerrado). Embora os críticos da rede social chinesa TikTok apontem rapidamente para as obrigações de compartilhamento de dados das empresas de tecnologia chinesas com seus governos, não precisamos olhar para o outro lado do mundo para encontrar arranjos obscuros desse tipo. Como o New York Times comentou quando o programa da NSA foi encerrado, “A partir de 2006, o Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira começou a emitir ordens secretas exigindo que as empresas participassem, com base em uma nova interpretação da Seção 215 do Patriot Act, que dizia que o FBI pode obter registros de negócios ‘relevantes’ para uma investigação de terrorismo.” Antigos temores de que equipamentos de comunicação pré-adulterados fabricados pela Huawei da China possam violar redes americanas começam a parecer um pouco vazios moralmente quando você se lembra de que a NSA investigou esses medos violando a própria Huawei e, ao mesmo tempo, exportando equipamentos de rede pré-adulterados da Cisco, uma empresa americana. Um psicólogo poderia descrever as preocupações dos EUA nesta área como “projeção”.
Estamos em uma situação igualmente fraca quando se trata de intimidar outros países sobre aplicativos que violam a privacidade, uma indústria na qual os Estados Unidos são orgulhosamente pioneiros. É raro o cidadão americano cujos movimentos, hábitos, gostos e desejos diários não são vigiados 24 horas por dia por uma constelação de empresas com fins lucrativos cujos nomes eles nunca saberão e cujos interesses raramente compartilharão. Em recente audiência no Congresso sobre as práticas monopolísticas de empresas de tecnologia americanas, na qual ele afirmou que sua empresa representava “valores americanos”, o CEO do Facebook, Mark Zuckerberg, foi questionado sobre uma rede privada virtual que a empresa implantou em smartphones para espionar crianças e adultos em troca de subornos – ou, como disse o Facebook, para “pesquisa de mercado”. Zuckerberg negou que já tivesse ouvido falar desse incidente mesmo quando disse ao Congresso, sob juramento, que a empresa não usa cookies para rastrear informações privadas (ela usa). A denúncia de Pompeo do “estado de vigilância da China” soa simplesmente como um protecionismo do estado de vigilância.
Os telefones Android do Google vêm pré-instalados com uma longa lista de recursos que estão sempre ligados, sempre ouvindo e sempre rastreando e que monitoram silenciosamente os hábitos e localização dos clientes nos smartphones: dados que são, cada vez mais, entregues à polícia e, como sempre, aproveitados para publicidade direcionada por uma gama alucinante de empresas.
Há muito pouco nisso que poderia ser considerado “limpo”, a menos que seja o incrível poder de limpeza do sabonete Dove que seu telefone agora está recomendando a você porque é persistentemente rastreado pelo Facebook, Google e inúmeros profissionais de marketing. O Skype, um dos softwares mais populares e confiados do mundo, foi sabotado de forma infame por seu proprietário americano para permitir que a NSA espionasse com eficácia as conversas realizadas nele. O resto do mundo está certamente ansioso para sentir esse tipo de Limpeza.
Se estamos condenando a prática da duplicidade em nome da segurança nacional, é estranho deixar o Vale do Silício completamente livre de responsabilidade.
Pompeo clama por uma “nuvem limpa” que não pode ser “acessível aos nossos adversários estrangeiros”. Seria interessante ouvir o argumento de Pompeo sobre por que outros países deveriam recorrer, digamos, ao serviço de nuvem AWS da Amazon, usado pela CIA e pela NSA. O governo dos Estados Unidos deve pensar com muito cuidado se deseja dizer ao mundo que a proximidade da comunidade de inteligência com uma empresa e a colaboração que ocorre há tempos devem ser um sinal de alerta antes de fazer negócios.
A determinação de Pompeo em “garantir que os cabos submarinos que conectam nosso país à Internet global não sejam subvertidos para coleta de inteligência pela China em hiperescala” é talvez sua iniciativa mais falida em termos morais. “Também trabalharemos com parceiros estrangeiros para garantir que os cabos submarinos em todo o mundo não estejam igualmente sujeitos a concessões”, ele promete, sem notar que somos exatamente nós e esses “parceiros estrangeiros” da aliança de espionagem Five Eyes que temos há décadas nos certificado de que os cabos submarinos sejam comprometidos. Os programas da NSA com nomes como FAIRVIEW, STORMBREW e OAKSTAR revelados por Snowden mostram o quanto os Estados Unidos estão investindo em espionar a rede de fibra óptica da Internet em sigilo absoluto para cumprir a agenda de segurança nacional do país.
A abordagem americana do “faça o que eu digo, não faça o que eu faço” com relação à internet sempre foi o caso, mas atingiu o ápice com o debate sobre “banir” o TikTok, um aplicativo de compartilhamento de vídeos de propriedade chinesa que está entre os softwares mais usados na história. Descobri que é um exercício que vale a pena pegar uma parte aleatória do consenso centrista da segurança nacional contra o TikTok, que enquadrou o amado aplicativo adolescente como o equivalente em segurança de dados a uma bomba cômica de um desenho do Batman, e trocar “TikTok” por, digamos, Facebook. Os argumentos para uma proibição nacional contra empresas de tecnologia desonestas que coletam o máximo de dados possível e fazem comunicação secreta com agências de espionagem e polícia se sustentam muito bem, não importa qual empresa está inserida no jogo de palavras da segurança nacional. Não há razão para acreditar que o TikTok coleta mais dados do que o Facebook ou qualquer outro aplicativo, cujos proprietários, na ausência de qualquer regulamentação significativa, podem fazer o que quiserem com essas informações para sempre.
Considerar Mark Zuckerberg, Sundar Pichai e o resto da corja do Vale do Silício como contrastes significativos para o sigilo, sabotagem e subterfúgio chineses, como algum baluarte dos ideais democráticos, é um insulto para qualquer um. O pesadelo do tecno-autoritarismo chinês não absolve de forma alguma o Estado de Vigilância Light que estamos construindo em casa. Por mais fácil que seja para o governo chinês acessar dados dentro de suas próprias fronteiras e não importa o quão nefasta seja sua intenção, o americano médio deveria se perguntar se eles enfrentam uma ameaça iminente maior das autoridades daquele país ou das empresas de marketing de vigilância sediadas nos EUA que tentam ativamente impedir e subverter sua autonomia pessoal a cada minuto de cada dia, ou as brutalizantes agências policiais que avidamente se aproveitam desses bancos de dados.
Desde que Edward Snowden, então contratado pela NSA, ajudou a expor vários programas de vigilância sete anos atrás, sabemos que informações de empresas pesadas do Vale do Silício, como Google, Facebook e Apple, eram rotineiramente e sistematicamente fornecidas à NSA, sujeitas em muitos casos apenas à supervisão e transparência de tribunais secretos, procedimentos secretos e descobertas secretas. Será necessário ter uma mente mais evoluída do que a de Pompeo para argumentar por que nosso opaco funil público-privado de dados de segurança nacional é significativamente democrático e genuinamente aberto. Empresas menos dóceis podem se ver destinatárias de uma “Carta de Segurança Nacional” federal, que não apenas obriga a que entreguem os dados solicitados, mas as proíbe até de mencionar que estes foram solicitados sob pena de prisão. Se estamos condenando a prática geral da duplicidade em nome da segurança nacional, ganância em nome da inteligência e violação constante das liberdades civis e da privacidade pessoal online, é estranho deixar os graduados de Stanford que dirigem o Vale do Silício tão completamente livres de responsabilidade.
Não é preciso tentar estabelecer uma equivalência moral entre a China e os Estados Unidos; a rede de vigilância totalitária e onipresente e o policiamento repressivo que existe nas cidades chinesas por enquanto só pode deixar os executivos de Palo Alto e os chefes dos sindicatos de polícia com inveja. Mas não podemos criticá-los por não tentarem algo parecido. Os horrores dos campos de concentração de uigures em Xinjiang — de sua brutalização, desumanização e pior — não têm igual nos EUA. Os abusos de direitos humanos dentro da China e as desintegrações das liberdades civis são muitas ordens de magnitude maiores do que as americanas. Mas só porque outra pessoa está muito pior, não significa que sejamos bons, ou limpos, ou que valha a pena nos imitar ou ouvir. A vigilância sistêmica e o assédio às comunidades muçulmanas ou são erradas, ou não são. O confinamento de grupos étnicos em fossas cercadas e jaulas é errado, ou não é. A vigilância corporativa persistente conduzida por empresas com laços estreitos com as agências militares e de espionagem é um problema, ou não é. Explorar cabos de fibra ótica submarinos, acessar clandestinamente equipamentos de rede e transformar smartphones em dispositivos de rastreamento é algo que ninguém devia fazer, ou não é. Vender aplicativos para jovens e coletar seus dados para sujeitá-los a reconhecimento facial ou aprendizado de máquina ou sabe-se lá o que é algo que deveria nos ofender ou não, independentemente de ser perpetuado por Zuckerberg ou pelo chefe do TikTok, Zhang Yiming; os manda-chuvas da indústria do Vale do Silício há muito tempo perderam a superioridade moral sobre seus colegas chineses. No mínimo, não sei se Yiming alguma vez disse a seus amigos que as pessoas eram “idiotas” por confiarem seus dados a ele.
O argumento de que os Estados Unidos podem e devem ser capazes de escapar impunes de tudo isso por causa de nossos valores democráticos ou do compromisso com os direitos humanos e a dignidade humana, nosso sistema judiciário justo, nosso executivo com princípios e nosso diligente legislativo até pode convencer algumas pessoas ansiosas por uma briga com a China — aquelas pessoas para quem só existem os Bons (nós) e os Maus (eles) — mas para o resto de nós deveria deixar um gosto amargo, ainda mais considerando o atual governo. Alardear o “estado de direito” superior dos EUA contra as práticas chinesas para lidar com os dados é pouco reconfortante quando agentes federais sem identificação estão enfiando pessoas em vans e o Departamento de Justiça é comandado por um cupincha escancarado da Casa Branca. Você vai ouvir e ler muito, nas próximas semanas, sobre como o programa “Rede Limpa” de Pompeo pode significar o início de duas internets fraturadas: uma rede Vermelha Chinesa e uma Orgulhosamente Americana. Será crucial ter em mente que, embora a visão chinesa para o futuro tecnológico seja revoltante, perigosa e deva ser enfrentada como for possível, a rede americana é tudo, menos limpa.
Tradução: Maíra Santos
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