A professora Patrícia* cumpria a quarentena em casa quando soube que sua intimidade havia sido violada. Ela foi fotografada em cenas íntimas, sem roupa, por vizinhos de um prédio de luxo no bairro de Perdizes, em São Paulo.
As imagens tiradas à sua revelia, o que configura crime segundo o Código Penal, foram compartilhadas via WhatsApp e geraram um intenso burburinho entre funcionários dos prédios, que repassavam o conteúdo sem saber que também é crime compartilhar imagens da intimidade de alguém feitas sem autorização da pessoa.
Apesar do medo e do constrangimento, Patrícia decidiu buscar recursos legais para se defender da exposição. Buscou provas de quem foi o autor das imagens, contratou uma advogada criminalista e pediu abertura de inquérito de investigação criminal no 23º Distrito Policial, de São Paulo.
Ao Intercept, ela contou como se viu envolvida em uma rede de intrigas virtual, movida por moradores e funcionários de um condomínio em que cada apartamento está avaliado R$ 2,5 milhões, sem ter saído do seu apartamento. “Fui violentada dentro da minha própria casa por pessoas com vidas vazias, que não se importam em tornar a vida de outras pessoas um inferno”, contou a professora que pediu para ter a identidade preservada.
Segunda-feira, dia 3 de agosto. Eu estava em minha casa sozinha, terminando de preparar meu almoço, quando a campainha tocou. Era uma funcionária do meu prédio – um imóvel antigo, de poucos andares, no bairro de Perdizes, em São Paulo. Ela dizia ter vindo falar de “um assunto chato”. Ela, então, me mostrou seu celular, no qual havia fotos minhas dentro de casa em cenas íntimas que contêm nudez.
O que senti foi horrível, um constrangimento absoluto de ter sido invadida como nunca. Senti também medo de saber que estava sendo observada, que sabiam meu nome, o que eu fazia no meu espaço mais protegido. E isso era apenas o começo.
Nesse mesmo dia e nos dois dias que se seguiram, um funcionário do prédio da frente de onde as fotos foram tiradas assediou funcionários do meu prédio, tanto responsáveis administrativos quanto responsáveis pela manutenção. O funcionário afirmava que um morador do prédio no qual trabalha, “advogado e que não quer se identificar”, obteve as fotos e exigia que alguém tomasse providências contra nós, moradoras.
Sim, o morador anônimo exigia que nós fôssemos punidas numa inversão total de lógica, já que a violação da nossa privacidade foi realizada por eles. Uma funcionária deles nos fotografou do alto de sua varanda, em trajes íntimos e/ou nuas, enquanto tomávamos sol dentro de nossas casas, sem ferir a existência de ninguém, sem infringir nenhuma norma, em um período de isolamento social em razão da pandemia.
Vale lembrar que o artigo 146 do Código Penal determina que é crime “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, ou depois de lhe haver reduzido, por qualquer outro meio, a capacidade de resistência, a não fazer o que a lei permite, ou a fazer o que ela não manda”. Nenhum funcionário, de nenhum prédio, tem o direito legal de ditar o tipo de roupa ou comportamento que qualquer pessoa deve vir a ter dentro de seu espaço privado, sua casa. A pena para essa infração é de detenção de um ano ou mais, ou multa.
O prédio onde vive esse morador que não queria se identificar e no qual trabalha o funcionário que veio ao meu prédio cobrar providências (há registros dele nas câmeras de vídeo), é um condomínio de alto padrão da zona oeste paulistana. Cada apartamento tem cerca de 200 metros quadrados, quatro dormitórios, quatro vagas na garagem e é avaliado em cerca de R$ 2,5 milhões.
Não é a primeira vez que moradoras do nosso prédio tomam conhecimento que moradores e funcionários desse prédio de luxo as observam. Houve outros casos, inclusive de possíveis registros fotográficos, mas que nunca foram levados adiante por medo das vítimas.
Chocada com a situação, comecei a pesquisar como me defender. Entrei em contato com meus amigos e conhecidos da área do Direito e optei por contratar uma advogada criminalista. Ela me deu as primeiras orientações e me explicou que a situação se enquadrava claramente em infração de mais de um artigo do Código Penal. Eu tinha, portanto, meios jurídicos de dar uma resposta a todos aqueles e aquelas que haviam participado do ato de me registrar nas fotos, bem como de repassá-las.
“Obtive um registro de áudio que comprova que sua patroa nos observa e nos difama para a funcionária.”
Orientada pela advogada, colhi as provas possíveis do repasse das imagens entre os funcionários do meu prédio. Nessa busca por informação com as pessoas que tinham minhas fotos, compreendi que elas haviam sido feitas por uma funcionária que trabalha em um dos apartamentos do prédio de luxo. Apesar de ter sido a funcionária a autora das fotos, até onde consegui apurar existe também o envolvimento de seus patrões. Obtive um registro de áudio que comprova que sua patroa nos observa e nos difama para a funcionária.
No áudio, a funcionária afirma que isso de tomarmos sol em casa não é do tempo da pandemia, que sempre foi assim e que a dona (ela diz o nome da patroa) comenta que, aos sábados, as pessoas do meu prédio não usam roupas. Esse tipo de comentário configura crime de difamação, previsto pelo artigo 139 do Código Penal.
Infelizmente, será difícil chegar nos patrões, que agora se escondem por trás de cortinas que não abrem. Da funcionária conhecemos o nome, o número de celular, o rosto, os horários de trabalho. Temos diversas provas contra ela. E, sim, ela deve ser punida e será, mas também devem ser punidos os patrões endinheirados blindados pela sua estrutura de luxo que lhes dá o poder de terceirizar até mesmo o ódio de pessoas que estão apenas vivendo suas vidas.
O funcionário que tanto assediou meu prédio, que nos olhou feio a semana toda, que falou alto e vestiu um blazer para se exibir na frente do prédio de luxo como alguém que tem algum tipo de autoridade (ele não quer ser tomado por um mero funcionário como qualquer outro desse condomínio) teve um ataque histérico quando minha advogada tentou lhe entregar uma notificação extrajudicial (que informa que qualquer pessoa que tenha as fotos não pode continuar repassando esse material sob o risco de ser criminalizada), documento que ele optou por não pegar. É mais um funcionário que está envolvido até o pescoço nessa história e que, ao contrário do que imagina, não tem a blindagem daqueles patrões, embora também resida no condomínio alto padrão, como funcionário.
Um inquérito criminal acerca do caso está instaurado no 23º Distrito Policial, localizado na Rua Itapicuru, nº 80, para apurar os fatos. Como mencionado, há quatro artigos do código penal que foram infringidos nessa situação: 216-B, 218-C, 139 e 146. Dizem respeito à inviolabilidade da privacidade, à proibição dos registros audiovisuais de qualquer pessoa sem a sua autorização, bem como do repasse desse tipo de registro; à proibição de difamação de alguém; ao fato de ser proibido constranger uma pessoa a não fazer o que a lei permite ou a fazer o que a lei não manda.
Fiz um breve relato em minhas redes sociais e criei a hashtag #privacidadeinviolavel para que todos e todas que ofereceram apoio possam divulgar essa história e informar outras pessoas.
A situação é absurda em muitos sentidos, mas especialmente neste contexto de pandemia, em que as pessoas estão em isolamento social dentro de suas casas. Eu sou portadora de doença crônica e, por orientação médica, devo tomar sol diversas vezes por semana, o que, no momento, só posso fazer de dentro da minha casa.
Para uma mulher, o espaço público é um espaço de perigos, e a nossa vida é pagar eternos pedágios pela nossa existência apenas porque somos mulheres. Mas agora há ainda um perigo extra lá fora, um vírus mortal. Faço o que posso para me prevenir, permaneço em casa, graças ao meu privilégio de poder fazer isso, há meses.
“Até dentro de nossas casas temos que pagar o pedágio de existirmos enquanto mulheres?”
Segui trabalhando, pagando corretamente minhas contas, cumprindo com os deveres de cidadã. Tenho amigos, uma família incrível, um trabalho que amo e uma vida bastante comum, de tarefas e lazer. Não terceirizei a limpeza da minha casa durante esse período de pandemia, evitei o contato com outras pessoas o quanto pude. Mas fui violentada dentro da minha própria casa ao ter minha privacidade invadida por pessoas baixas com vidas vazias, que não se importam em perder tempo para tornar a vida de outras pessoas um inferno. Até dentro de nossas casas temos que pagar o pedágio de existirmos enquanto mulheres?
Desde o que aconteceu, não durmo, tenho pesadelos, não tenho energia ou concentração para trabalhar ou cuidar da minha casa. Estou muito estressada de estar gastando tempo e dinheiro com essa situação, que não foi criada por mim, mas com a qual tenho que lidar se quiser ter algum tipo de justiça.
Compreendo as vítimas que não chegaram até aqui. É um desgaste sem paralelo. Mas é preciso que alguma vez na vida pessoas como essas que me violentaram tenham uma resposta à altura do que fazem. Tenho investido toda a minha energia em fazer tudo que está ao meu alcance para constituir meu processo, primeiramente na esfera criminal e, em seguida, na esfera civil.
Casos como o meu vêm ocorrendo de modo idêntico, com pequenas variações. Vale lembrar da moça que foi exposta quando fazia yoga no Rio de Janeiro e do recente caso extremo de uma personal trainer morta a facadas por uma vizinha que a filmava, em São José do Rio Preto. Daí a importância de informarmos que isso é criminoso e de que há ferramentas jurídicas para respondermos à altura esse tipo de agressão. Não é justo e é ilegal quererem mandar no modo como nos vestimos dentro de nossas casas. A lei nos protege disso. Agora é fazer com que ela seja aplicada e que cada envolvido seja devidamente punido.
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