Em junho, o então secretário do Tesouro Mansueto Almeida anunciou que sairia do governo. O motivo seria o cansaço. O economista está no governo desde 2016 e alegou que não aguentaria ficar até 2022. Sobre os burburinhos de que já estaria negociando um novo emprego na iniciativa privada, Mansueto rechaçou: “Não é verdade. Seria maluquice eu estar no governo e vendo para onde ir. Vou definir isso na quarentena depois que sair.”
A quarentena à qual ele se refere é o período no qual agentes públicos devem cumprir antes de assumir cargos na iniciativa privada. Esse período serviria para evitar o uso de informações privilegiadas do serviço público em benefício de interesses privados.
Mas logo no primeiro mês de quarentena já foi anunciada a ida de Mansueto para o BTG Pactual. Não esperaram nem esfriar a cadeira no Tesouro para fazer o anúncio. Ele será sócio e economista-chefe do banco que, por uma dessas coincidências da vida, tem Paulo Guedes como um dos seus fundadores. Mansueto havia considerado uma “maluquice” imaginar que ele estaria negociando um cargo no setor privado enquanto ainda estava no Tesouro. É um papo difícil de convencer até os mais inocentes.
O BTG não teve nem a decência de esperar o fim da quarentena para disfarçar esse flagrante caso de promiscuidade entre os interesses públicos e privados. A coisa é mesmo escancarada, ostensiva. Mansueto só poderá assumir o cargo a partir de janeiro, mas o BTG da turma do Paulo Guedes já está faturando com o anúncio. Por que esperar até janeiro se o banco pode valorizar seu nome no mercado anunciando a contratação da fera desde já?
Agora, o ex-funcionário de Guedes no governo será um dos sócios de um banco fundado por… Guedes. Os seis meses de quarentena é um precinho muito baixo para se pagar. O BTG agora tem um craque que passou quatro anos acumulando informações privilegiadas, ajudou a escolher o seu substituto no Tesouro e é amigão do ministro da Economia e fundador do banco do qual acabou de se tornar sócio. Acredito que Guedes e Mansueto certamente passarão a conversar apenas sobre o campeonato brasileiros nos próximos churrascos entre amigos. Não é formidável?
Como se já não bastasse essa promiscuidade escandalosa, há ainda os requintes de crueldade. Adivinha com que empresa o Banco do Brasil fez sua primeira transação envolvendo créditos fora do seu conglomerado no mês passado? Acertou! Foi com o BTG, o banco fundado pelo atual ministro da Economia. O banco estatal vendeu uma carteira de créditos — na maioria, podres —, avaliada em R$ 2,9 bilhões, a um dos fundos do BTG por R$ 371 milhões. Foi um grande negócio para o BTG, mas não se pode dizer o mesmo para o governo. Essa parece ser a lógica que permeia o trabalho do nosso superministro ultraliberal.
A negociação foi feita sem nenhuma transparência. A notícia só veio à tona depois da conclusão do negócio. Nem os funcionários do banco sabiam da negociação. Há muito a ser esclarecido. Não houve licitação nem qualquer processo que permitisse a entrada de outros bancos interessados na disputa. O negócio parece ter sido feito sob medida para o banco co-fundado por Guedes e futuro banco de Mansueto. A oposição enviou um pedido de esclarecimentos para o ministro da Economia para que ele explique essa farra feita na calada da noite com o dinheiro público. O fato é que Paulo Guedes saiu do BTG, mas o BTG parece não ter saído de Guedes.
‘Em todos os governos pós-democratização, profissionais da área econômica transitaram livremente entre cargos no serviço público e no privado’.
Esse troca-troca de cargos públicos e privados deveria ser tratado como uma prática escandalosa, mas acabou virando uma tradição da política nacional. Em todos os governos pós-democratização, sem exceção, profissionais da área econômica transitaram livremente entre cargos no serviço público e no privado. Basta cumprir os seis meses de quarentena determinada por lei — o que para esses ricos pode significar seis meses de férias viajando pela Europa — que o ex-funcionário público pode levar segredos do governo para o setor privado.
Além de Mansueto, vários outros integrantes da equipe econômica abandonaram o governo para ocupar cargos importantes no setor privado. Agora o ex-secretário do Tesouro vai fazer companhia para Eduardo Guardia, que assumiu a presidência da área de gestão de ativos do BTG em julho do ano passado depois de ser ministro da Fazenda de Temer.
Trabalhar no alto escalão da equipe econômica de governos valoriza o passe de qualquer economista. A chance de um figurão desses sair do governo e não receber um cargo com alto salário em uma empresa privada é zero. Todo alto escalão do mercado financeiro quer ter por perto alguém que já trabalhou em posições-chave no ministério da Economia.
Em artigo intitulado “A porta-giratória Mercado-Governo-Mercado”, o economista Alexandre Andrada mostra a facilidade com que os interesses privados sequestram os interesses públicos à luz do dia: “Ao chamar gente do mercado para comandar a política monetária, cambial e financeira do país, o governo, em certa medida, entrega superpoderes aos grupos privados que atuam nesse setor. Ao contratar com frequência funcionários e gestores públicos, em troca de salários milionários, as empresas financeiras geram incentivos para que essas pessoas se comportem desde sempre em favor dos interesses de futuros e potenciais empregadores.”
É mais do que um problema de caráter dos indivíduos. É sobretudo um problema de ordem estrutural, como aponta Andrada. No decorrer do artigo, o economista lista vários casos similares. Além de Esteves, o BTG conta como um dos seus donos Pérsio Arida, o economista que trabalhou no Plano Cruzado, foi um dos mentores do Real, e presidente do BNDES e do Banco Central no governo FHC. Já o atual presidente do BNDES, Gustavo Montezano, começou a carreira no banco Opportunity, de propriedade do controverso Daniel Dantas, e depois migrou para o BTG. Sim, o atual presidente do BNDES também é cria do BTG. Quando sua gestão acabar, alguém desconfia para onde ele levará todo o conhecimento adquirido à frente do bando público?
‘Esse tipo de conflito de interesses nunca foi um problema para esses liberais do alto escalão do mercado financeiro’.
E por falar em Opportunity — que nome sugestivo, não? —, lembro da economista Elena Landau, ex-diretora do BNDES no governo FHC. Depois de participar intensamente das privatizações daquele período, chegando a ganhar o apelido de “Rainha da Privatizações”, foi trabalhar logo em seguida com o banco de Daniel Dantas. Pior que isso: durante o tempo em que esteve no BNDES cuidando das privatizações, Landau era casada com o presidente de um banco que foi favorecido pelas privatizações. Já adivinhou qual é o banco, né? Sim, é o Opportunity, o banco com o qual ela viria a trabalhar.
Em uma CPI ocorrida em 1999 na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, Landau foi chamada para dar explicações. Perguntada se era eticamente aceitável tudo isso, respondeu: “Sim. A questão ética é de cada pessoa, independentemente do cargo que ocupa”. Então é isso, para alguns liberais a promiscuidade entre público e privado depende da ética particular de cada um. É uma lógica que nenhum bolsonarista botaria defeito. Toda essa história está registrada em detalhes no livro “Operação Banqueiro”, do experiente jornalista investigativo Rubens Valente.
Em novembro de 2018, antes de Guedes tomar posse, o Intercept listou uma série de conflitos de interesses que acompanhariam o trabalho do ex-banqueiro. Já passamos da metade de 2020 e podemos confirmar todos os conflitos que foram listados. Esse tipo de conflito de interesses nunca foi um problema para esses liberais do alto escalão do mercado financeiro. Apoiar o ditador Pinochet ou Bolsonaro, por exemplo, nunca foi um empecilho para essa turma. Pelo contrário, o que costuma irritá-la é o excesso de democracia.
Essa é, aliás, a razão oficial que Guedes deu para a debandada. A demora no avanço das privatizações, da reforma administrativa e a volta do debate sobre teto de gastos foram os motivos pelos quais os profissionais pularam do barco. Cansados de ter que lidar com os diversos interesses que precisam ser acomodados dentro de um governo, vão cuidar dos seus próprios interesses. Parece até que Guedes não está preocupado com a debandada – pelo contrário, considera algo natural e até positivo, o que, convenhamos, faz todo sentido.
Sai governo, entra governo e nada muda. Alguns dos que reclamam do peso e da burocracia do estado são os mesmos que usam o governo para ganhar prestígio, valorizar seu passe no mercado financeiro e ditar a política econômica de um país pela ótica de grupos privados. Os figurões liberais fingem que uma quarentena de seis meses é o suficiente para preservar interesses públicos, enquanto o povo brasileiro finge que acredita. Até quando o Brasil vai continuar aceitando que raposas sejam nomeadas para cuidar do galinheiro?
Correção, 16 de agosto, 14h55:
Em uma primeira versão, o texto informava que Mansueto Almeida passou seis anos no governo, mas foram quatro. A informação foi corrigida.
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