Durante todo o domingo, ativistas de extrema direita inundaram as redes sociais vomitando indignação contra o aborto realizado na menina de 10 anos grávida após ser estuprada pelo tio. A criança, vítima de abusos sexuais desde os seis anos, foi envolvida num imbróglio judicial, que acabou adiando o aborto – legal, previsto na lei brasileira desde os anos 1940. Nenhum hospital do Espírito Santo pôde realizar o procedimento na vítima, que precisou ir até um hospital público de Pernambuco. Todo o processo era para ser em sigilo, se a ativista de extrema direita Sara Winter (cujo sobrenome verdadeiro é Giromini) não tivesse alardeado o caso no Twitter, no Instagram e, mais tarde, em seu canal no YouTube.
Winter divulgou não apenas o nome da criança, mas também nome e endereço do hospital em que a vítima estaria internada. Ela apagou rápido – e isso é uma estratégia: deixar os posts no ar por tempo suficiente para que a horda fundamentalista seja mobilizada. Um grupo de pessoas foi para a porta do hospital rezar e protestar contra o aborto, hostilizando o médico responsável e a menina aos gritos de “assassinos”, em uma ação que a escritora Margaret Atwood talvez não fosse capaz de imaginar para a quarta temporada da série “O conto de aia“, a distopia que projeta um mundo militarizado em que mulheres são escravas sexuais e obrigadas a dar à luz crianças frutos dos estupros a que eram submetidas.
Em um vídeo postado durante a tarde, Winter expôs mais uma vez a criança vítima dos abusos, mencionando seu nome e a cidade em que vive. Segurando um boneco que simula um feto de cinco meses – idade estimada da gravidez da vítima –, ela defendeu que a criança “seja submetida a uma cesárea” para “tentar salvar as duas vidas”. Também, entre muitos absurdos, expõe o nome do médico responsável por realizar o aborto em Pernambuco, chamando-o de “maior abortista do Brasil”. São 23h30, e o vídeo está no ar há mais de seis horas. Acumulou mais de 200 mil visualizações desde então.
No Twitter, embora tenha apagado o tuíte com informações do hospital, a ativista passou o dia expondo a vítima e o médico, aproveitando o caso para se autopromover, como de costume. Presa por ordem do Supremo Tribunal Federal dentro do inquérito das fake news, ela nem poderia fazer isso: sua conta no Twitter foi suspensa, mas ela criou outra e continuou usando a rede como palanque, impunemente, até chegar ao escandaloso episódio de hoje. Hoje, usa tornozeleira eletrônica.
À noite, para finalizar, Winter fez uma live no seu canal do YouTube. Mais de 2 mil pessoas assistiram ao vivo, simultaneamente, ela falar sobre os detalhes do procedimento ao qual a vítima foi submetida, mostrar o tamanho do feto e ajudar a estigmatizar o aborto fruto do estupro, em uma criança, previsto em lei. Na descrição do vídeo, convenientemente, a ativista aproveitou para divulgar suas redes sociais e projetos, pedir doações e colocou até a conta bancária e o link do seu PicPay. Ela pôs em marcha sua empreitada capitalista para faturar em cima do horror que criou.
Os posts de Winter violam os termos de uso das redes sociais – estou focando nela aqui, mas isso vale para todos do núcleo duro bolsonarista que a replicaram e aumentaram o alcance dos posts, gerando uma onda de assédio e exposição contra a vítima, sua família e os profissionais de saúde responsáveis por atendê-la. No Twitter, segundo as diretrizes da comunidade, são proibidos conteúdos que “incitam a violência e assédio direcionado a alguém” – o que os extremistas fizeram claramente contra o médico. Também é proibido publicar informações privadas de pessoas, o que foi feito.
Em nota, o Twitter afirmou que “tem regras que determinam os comportamentos e conteúdos permitidos na plataforma, e violações a essas regras estão sujeitas às medidas cabíveis” e que “coopera com autoridades competentes em observância à legislação brasileira”.
No Instagram, as diretrizes da comunidade dizem que conteúdos com ameaças reais ou discurso de ódio e “informações pessoais com o intuito de chantagear ou assediar alguém” são removidas. Mas parece que o Instagram não considera expor o nome completo do médico e seu rosto, chamando-o de “maior abortista brasileiro”, seja caso de banir as pessoas que fizeram isso. “O vídeo em questão foi removido por violar nossas políticas ao promover potenciais danos a pessoas no mundo offline de forma coordenada”, me disse a assessoria de imprensa da empresa no final de segunda-feira, em uma resposta atribuída a “um porta-voz do Facebook”. Não houve comentários sobre o perfil da ativista e os outros vídeos que ela publicou na sequência sobre o caso.
E o YouTube, que diz combater “comportamento predatório, perseguição, ameaças, assédio, intimidação, invasão de privacidade, divulgação de informações pessoais de outras pessoas e incitação de atos violentos” em suas políticas de uso, permitiu que a ativista usasse a plataforma para capitalizar (politicamente e financeiramente) em cima do horrendo caso de pedofilia. Nem parece que a rede tem políticas de uso específicas para proteger crianças, incluindo a proibição de conteúdos que imponham “sofrimento emocional em menores”, com exposição a temas maduros, coação dos menores e violência.
Das duas, uma: ou Winter é uma gênia do malabarismo retórico ao conseguir encaixar a relativização de um procedimento legal em uma criança que foi estuprada dentro desses termos, ou o YouTube convenientemente fecha os olhos para a youtuber que acumula quase 250 mil seguidores, com 9,5 milhões de visualizações.
O YouTube, por meio de sua assessoria de imprensa, diz que “não comenta casos específicos”. A empresa mandou uma nota protocolar afirmando que “todos os conteúdos no YouTube precisam seguir nossas diretrizes de comunidade, que incluem medidas de proteção ao bem-estar emocional ou físico de menores”, garantindo que age rapidamente par identificar conteúdos que violem suas políticas.
As redes sociais também parecem ignorar o Estatuto da Criança e do Adolescente, que no artigo 5º determina que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A legislação também protege a identidade das crianças no artigo 17: “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, idéias e crenças, dos espaços e objetos pessoais”.=
A extrema direita soube muito bem como usar as redes sociais para autopromoção e proselitismo político – e as plataformas também souberam se aproveitar muito bem da audiência, cliques e atenção provocados por esse tipo de conteúdo. Mas, de todas as mentiras, assassinatos de reputações, ameaças e assédio da extrema direita, nenhuma mostrou de maneira tão cristalina quão baixo eles podem ir para emplacar a própria narrativa. E nem o fato de uma criança, vítima de um crime bárbaro, ser exposta e correr risco de vida, foi suficiente para que Google, Facebook e Twitter revissem suas práticas ao permitir conteúdo extremista na plataforma. Se gera clique, tudo bem.
Não tem outro jeito de dizer: os fanáticos religiosos estão usando as gigantes da tecnologia como palanque para seu extremismo, colocando a vida de uma criança em risco, e as empresas são coniventes. Enquanto elas mantiverem no ar os conteúdos que expõem a vítima, serão cúmplices da barbárie.
ATUALIZAÇÃO: 17 de agosto, 18h11
O texto foi atualizado com os posicionamentos do Instagram e do YouTube.
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