Não bastasse terem de lidar com as sequelas de um dos maiores crimes ambientais da história do país, agora os moradores de Brumadinho temem protestar contra a Vale. A mineradora, responsável pela tragédia que matou 272 pessoas em janeiro de 2019, processou os moradores que organizaram uma série de protestos na cidade. Alegou que as manifestações “tumultuavam o acesso à cidade” e poderiam provocar atrasos e prejuízos para a companhia.
O motivo das manifestações foram mudanças no auxílio que a empresa pagou durante um ano após o rompimento. Em novembro do ano passado, após acordo com o Ministério Público de Minas Gerais, ficou acertado que a Vale continuaria pagando por dez meses o valor integral do auxílio (um salário mínimo, ou R$ 1.045, para adultos, metade disso para adolescentes e um quarto do valor para crianças) apenas a residentes de seis comunidades da cidade, considerados “diretamente atingidos” pelo rompimento da barragem. Para os demais, o valor seria reduzido pela metade. O auxílio não são indenizações pelos prejuízos causados pela Vale aos moradores, que são negociadas individualmente.
Mas moradores alegam que muitos ficaram sem receber qualquer auxílio. Caso de Vanecia Aparecida, 38 anos, que está desempregada. “Depois que aconteceu essa tragédia, eu estou doente psicologicamente e tive bronquite. Preciso comprar remédio controlado, que é caro”, ela me disse. Segundo a moradora, a Vale alegou que houve problemas na documentação. Ela contesta. “Ano passado eu recebia e não tinha pendência alguma”. Vanecia é mãe de três filhos e não reside nos bairros que continuaram a receber o valor integral.
Os moradores de Brumadinho também reclamam da falta de um canal de comunicação com a empresa – principalmente para tentarem receber o auxílio. Com a pandemia da covid-19, os postos de atendimento mantidos pela companhia foram fechados. Além disso, os protestos também pediam o retorno das buscas pelos 11 corpos ainda desaparecidos. Desde março, o Corpo de Bombeiros suspendeu a procura, também por causa da pandemia, e ainda não tem previsão de retorno.
Mordaça e perseguição política
Na petição enviada ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais no começo de junho, a Vale alega ter sido “surpreendida” com “reiteradas obstruções de acesso ao Município de Brumadinho, impedindo a livre circulação das pessoas e o regular trânsito de trabalhadores e funcionários”.
Segundo a empresa, isso prejudica o andamento das obras previstas em acordos de reparação. Dezesseis pessoas foram apontadas como rés por serem consideradas as responsáveis pela organização ou simplesmente comparecerem às manifestações. O documento também lista, de forma genérica, “demais e/ou quaisquer movimentos, organizações de frente e/ou populares/terceiros manifestantes não identificados”.
“Eu enviei 15 ofícios para a Vale, e não recebi nem um ‘não'”
O presidente da Associação dos Moradores do Bairro São Conrado, Gabriel Parreiras, é uma delas. “Fizemos como uma das últimas opções. Eu enviei 15 ofícios para a Vale, e não recebi nem um ‘não’”, ele me disse. Pensando em evitar aglomerações, Parreiras promoveu a realização de uma carreata – segundo ele, o protesto não provocou nenhum tipo de aglomeração ou bloqueio na cidade. Outras entidades, no entanto, fecharam acesso a minas.
Para a Vale, as manifestações poderiam atrapalhar o cumprimento de metas assumidas como reparação pela tragédia do ano passado. A mineradora alegou que, por causa delas, poderia “sofrer prejuízos incalculáveis de dificílima reparação, decorrentes da impossibilidade de cumprimento, a tempo e modo, dos acordos homologados judicialmente”. Também alegou que “toda a população de Brumadinho” seria prejudicada pelas manifestações.
A Vale também usa as medidas sanitárias contra a covid-19 como argumento, alegando que as manifestações não respeitavam distanciamento mínimo ou uso de máscaras. É uma desculpa de ocasião. Em um outro processo, este contra a prefeitura de Brumadinho, a mineradora tenta burlar a restrição de circulação causada pela pandemia, mirando o decreto municipal que a impedia de operar. Para a Vale, trata-se de uma retaliação contra a empresa pelo não pagamento do auxílio para todos os moradores da cidade. Segundo a empresa, ainda que o decreto “apresente como motivação o combate ao novo coronavírus, há fortes indícios de que, na verdade, o que se almeja é punir a autora por motivos que não são os expressos no decreto municipal”.
De acordo com especialistas ouvidos pelo Intercept, a Vale não possui legitimidade para solicitar o impedimento de manifestações, pois elas ocorreram em locais públicos. “A Vale defende os interesses dela, enquanto empresa” me disse Dierle Nunes, professor de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. Para ele, a empresa impôs uma situação “de limitação do direito de manifestação”.
Estado policial à pedido da Vale
Três dias depois de acionar a justiça, a Vale conseguiu uma tutela de urgência da 2ª Vara Cível de Brumadinho determinando que qualquer organização ou manifestante devem se abster de realizar novos protestos que interditassem qualquer via ou acesso da cidade. A multa para quem se aventurasse foi estabelecida em R$ 5 mil. A decisão também solicitou à Polícia Militar que reforçasse o efetivo da cidade e autorizou os policiais a solicitarem dados para identificar os militantes.
O Ministério Público reagiu e entrou com um pedido de efeito suspensivo, no dia 18 de junho, pedindo a derrubada da decisão favorável à mineradora. Os promotores alegaram a decisão da justiça feria o direito à liberdade de expressão e manifestação. “As manifestações […] tem por objetivo garantir o não esquecimento do desastre ocorrido, denunciar os atrasos e irregularidades na garantia de direitos e a responsabilização da Vale S.A. pelos danos causados”, disse o MP na solicitação, que ainda lembrou o óbvio: a Vale responde a ação penal por crimes ambientais.
Todo esse imbróglio chegou à segunda instância, que derrubou a tutela que a Vale havia obtido. O desembargador Lailson Braga Baeta Neves entendeu que qualquer decisão neste caso deveria passar por votação do colegiado, algo que não tem prazo para acontecer. Enquanto isso, os protestos estão, em tese, liberados – mas os moradores de Brumadinho continuam se sentindo amordaçados.
“Infelizmente, ela (a Vale) conseguiu atingir os objetivos dela. A ideia era fazer intimidação e funcionou”
“Infelizmente, ela (a Vale) conseguiu atingir os objetivos dela. A ideia era fazer intimidação e funcionou”, me disse Gabriel Parreiras. Desde que foram processados, eles não voltaram a organizar novos protestos, pois têm medo de serem condenados a pagar a multa. Ela custa cinco vezes o maior auxílio que a mineradora paga às vítimas do desastre que causou. “A gente ficou com medo mesmo, porque é a justiça que manda”, afirmou Vanecia Aparecida. “A Vale matou quase 300 pessoas. Quem tem que ser punido, chamado de réu são eles. Estamos exercendo um direito nosso”, diz. Ela me falou que não pretende desistir de correr atrás do que considera ser um direito.
Procurada, a Vale afirmou que o processo teve como objetivo evitar que os protestos criassem obstáculos para os trabalhadores das obras de reparação, que poderiam ser paralisadas. Também declarou que o pagamento do auxílio é um benefício para os que foram diretamente afetados pelo rompimento da barragem “para que possam negociar suas indenizações finais com tranquilidade”. Por fim, a empresa confirma o fechamento dos postos de atendimento à população de Brumadinho como forma de evitar a transmissão da covid-19, mas que os atendimentos continuam de forma remota, e quando necessário, de forma presencial.
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