Há quase três meses, em 1º de junho, o deputado estadual Douglas Garcia, do PTB, um dos principais aliados de Jair Bolsonaro em São Paulo, pediu a seus seguidores no Twitter que lhe enviassem os dados de ativistas antifascistas (em resumo, qualquer ativista que se opusesse ao governo de seu presidente). No dia seguinte, Garcia, orgulhoso, postou um vídeo em seu Twitter com imagens (borradas) da lista que teria compilado com dados de centenas de ditos antifascistas ou “antifas”. O deputado também recebeu fotos de Vampeta pelado, mas essa é outra história.
Em 4 de junho, mais um vídeo do deputado com um calhamaço de papéis anunciando que iria fazer BOs contra os “antifas” da lista – que seria entregue à Polícia Federal. Ele novamente pediu aos seguidores para que enviassem a ele nomes de perigosos “terroristas”.
Enquanto Garcia comemorava a compilação da lista e pouco antes de dar um chilique jurando inocência, recebi de um amigo, pelo WhatsApp, uma cópia do documento… e lá estava meu nome. Não só o nome, mas fotos, e-mail e, o que mais me preocupou, meu CPF. Por morar fora do Brasil meu primeiro pensamento foi o de que não deveria me preocupar muito, mas imediatamente me lembrei que tenho família e amigos no país e que, oras, não quero ficar olhando por cima do ombro ao visitar meu próprio país com medo de ser atacado por algum dos amigos do deputado.
Meu nome estava lá na lista de 999 páginas com nomes de centenas de ativistas e jornalistas, colocando em risco a vida daqueles que tiveram seus dados (como endereço e número de telefone) vazados. No mesmo dia fatídico 4 de junho, Garcia foi novamente ao Twitter negar que tivesse qualquer ligação com a lista. Nem quem acredita em coincidências estava preparado para essa mudança de eventos.
A lista circulou amplamente. Eu mesmo fui avisado por pelo menos mais duas ou três pessoas sobre meu nome constar dela. O desafiador deputado, bradando do ar-condicionado do seu gabinete que iria fazer e acontecer, de repente resolveu negar tudo. Será por que ser antifascista não é crime, mas compilar e vazar dados pessoais de centenas de pessoas pode resultar em pelo menos uma bela dor de cabeça?
O assunto foi amplamente debatido nas redes e surgiram os primeiros processos – inclusive a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, pediu ao MP abertura de investigação criminal contra Garcia, que foi negado.
Garcia é um conhecido líder da extrema direita paulista, ganhando notoriedade ainda em 2018 após reportagem da Folha de S. Paulo em que falava de sua trajetória – como havia sido de esquerda e depois se tornado uma destacada liderança de direita na comunidade onde vivia. No mesmo ano foi eleito deputado estadual pelo então partido de Bolsonaro, o PSL, com 74 mil votos. De lá para cá seu feito mais notável foi o de ter sido expulso do PSL, em julho, migrando então para o PTB de Roberto Jefferson (aquele do Mensalão), pelo envolvimento em ataques contra o STF e pela investigação de membros de seu gabinete na CPI das fake news e por envolvimento no “gabinete do ódio”.
Em 10 de agosto, Garcia foi condenado em uma primeira ação judicial a compensar em R$ 20 mil uma mulher cujo nome estava na lista. Outras ações judiciais contra ele estão sendo julgadas. Pouco depois, Eduardo Bolsonaro anunciou que havia entregue a lista de antifascistas à embaixada dos EUA. O próprio Garcia anunciou que iria enviar também à embaixada norte-americana e a consulados, anunciando que deveríamos esperar a visita da polícia em nossas casas. O crime? Nenhum.
Existe também outro dossiê, este concebido pelo Ministério da Justiça, com os nomes de 579 ativistas, congressistas, funcionários públicos e professores, visando um grupo conhecido como “policiais antifascistas” em um ato clássico de espionagem política e de tentativa de intimidação – que tanto nos lembra regimes fascistas. Nesta quinta-feira, dia 20, o STF decidiu, por 9 votos a 1, proibir o MJ de produzir dossiês contra opositores políticos. O ministro Edson Fachin, em seu voto, afirmou que “a administração pública não tem, nem pode ter, o pretenso direito de listar inimigos do regime”. Mas o deputado Douglas Garcia, se valendo de sua posição dentro da administração pública e usando recursos públicos, acredita poder impunemente perseguir, ameaçar e processar opositores políticos.
As milhares de pessoas incluídas nos dois dossiês não cometeram nenhum crime além de serem partidários da esquerda, dos direitos humanos e de se oporem, em diferentes graus, ao governo de extrema direita (ou mesmo abertamente fascista, como apontam especialistas) de Jair Bolsonaro, e assim se tornaram alvos de perseguição e ameaças. Os jornalistas também são alvos tanto dos dossiês quanto de ameaças nas mídias sociais feitas pelos partidários do presidente. Ataques contra a imprensa são parte fundamental do modus operandi bolsonarista.
A extrema direita tem conexões mundiais. O deputado que já teceu elogios ao grupo fascista Carecas do ABC durante evento contra a filósofa americana Judith Butler capturado em vídeo pode perfeitamente ter conexões internacionais – ou algum dos grupos do qual faz parte ou mesmo que parece apoiar e louvar. Os Carecas do ABC são conhecidos pela sua periculosidade e por professarem abertamente a ideologia fascista.
O deputado que não vê problemas em nos chamar de criminosos, terroristas e vândalos resolveu me processar porque eu o chamei de…. fascista. Um misto de tática protelatória e de tentativa (mais uma!) de intimidação.
‘A defesa do deputado é uma peça que deveria ser exibida e premiada por sua cara de pau e desfaçatez’.
E por temer por minha segurança, de meus amigos e da minha família, cheguei através de contatos na esquerda à advogada Beatriz Hernandes Branco que aceitou me representar e tem feito um excelente trabalho. O processo corre em segredo de justiça a pedido dela, para evitar que os meus dados e o de outras pessoas sejam mais uma vez divulgados – ainda que o deputado, uma figura pública, deva arcar com os seus atos publicamente. O que é uma pena, já que a defesa do deputado é uma peça que deveria ser exibida e premiada por sua cara de pau e desfaçatez. Mas é uma forma necessária de garantir que os danos causados pelo deputado não sejam ainda maiores a mim e a outros.
Chamar o deputado de fascista não é somente uma crítica política a uma figura pública (e imputar fascismo não é crime no Brasil), como não faltam acadêmicos e especialistas que concordam com a definição de “fascista” para o governo Bolsonaro, o bolsonarismo e seus principais apoiadores. Há até os que vão além, apontando paralelos com o nazismo – e é notório o apoio e proximidade de lideranças integralistas (fascismo tipicamente brasileiro) ao bolsonarismo.
O debate, no entanto, é interminável e, no fim, trata-se de um instrumento retórico político – mas que passa longe da imputação de um crime, ao contrário do que faz o deputado ao chamar ativistas de esquerda e jornalistas de terroristas, vândalos e criminosos com direito a ameaças explícitas.
‘Ser antifascista não é crime. Não é terrorismo. Tampouco ser jornalista é crime. E o deputado parece não ser capaz de compreender isso’.
Em um de seus vídeos declara: “Não vou descansar, não vou descansar até ver cada um de vocês na cadeia, beleza?” O deputado claramente possui uma agenda voltada a intimidar e perseguir ativistas de esquerda e resolveu usar a justiça como teatro. Ser antifascista não é crime. Não é terrorismo. Tampouco ser jornalista é crime. E o deputado parece não ser capaz de compreender isso. Ou na verdade sequer se importa.
Agora resta me defender em juízo – em uma total inversão de valores. Para o deputado, ofensas só existem quando proferidas contra ele – sequer ofensas, mas conceituações políticas.
De que outra forma eu poderia chamar um deputado da base de apoio de um governo cujo Secretário de Cultura repetia um discurso de Goebbels? Cujo líder máximo posava em fotos ao lado de um homem vestido de Hitler? Que louva movimentos fascistas poloneses no Twitter? Que discursa em homenagem ao grupo fascista Carecas do ABC? Que é um dos idealizadores do “bloco Porão do DOPS”? Que defende abertamente a prisão e destruição de todo um campo político – exatamente aquele que se opõe ao fascismo?
Em 2017, o Direita São Paulo, grupo que hoje se chama Movimento Conservador (ambos com Douglas Garcia em posição de liderança junto a seu chefe de gabinete, Edson Salomão, investigado pela CPMI das Fake News) organizou um protesto xenófobo, e seus membros agrediram ativistas palestinos
O fato é que o deputado imputou crime contra mim e contra centenas de ativistas. Ameaçou e vazou os dados de ativistas e jornalistas – uma clara violação da liberdade de imprensa, algo que não é incomum aos apoiadores de Bolsonaro e ao próprio, que constantemente ameaçam jornalistas ou mesmo os agridem. Não duvido que inclusive tenha praticado denúncia falsa de crime ao enviar uma lista com nomes de pessoas que não cometeram qualquer ilegalidade para a polícia, nos acusando de terroristas e de fazermos parte de grupos de extermínio (quando sabemos que, na verdade, são os bolsonaristas aqueles próximos a grupos de extermínio formados por policiais e milícias). E ainda exigindo que pessoas sejam enquadradas na Lei de Segurança Nacional (uma lei vergonhosa da ditadura que segue existindo) pelo mero fato de serem de esquerda.
Trata-se, enfim, de pura e simples perseguição política e ideológica com imputação de crimes inexistentes e ameaças com direito a dossiês e listas apócrifas com o objetivo de intimidar ativistas e jornalistas, de calar a esquerda e também a imprensa com ameaças e mesmo violência, levadas adiante através de milícias virtuais disseminadoras de fake news e de apoiadores organizados nas ruas.
Se isso não é o prenúncio do avanço de um movimento fascista, então nada mais é.
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