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Doria diz que auxílio-merenda chega a todos que precisam. Estas 10 mães mostram que é mentira.

Doria recorreu de decisão que obrigava o estado a universalizar o benefício. Depois de quatro meses, Merenda em Casa ainda não chega em quem precisa.

Doria diz que auxílio-merenda chega a todos que precisam. Estas 10 mães mostram que é mentira.

Vinda de Alagoas, Iolanda dos Santos tinha acabado de completar quatro meses em São Paulo quando a pandemia começou. Com menos de duas semanas no trabalho como diarista, ela foi dispensada. Santos é a mãe solo de duas meninas, uma de 13 e outra de nove anos, e passou a depender do auxílio emergencial do governo federal. Aluguel e contas básicas somam mais da metade de sua renda. Sem a escola para garantir almoço, o programa Merenda em Casa, do governo paulista, que oferece R$ 55 por mês de auxílio-alimentação para crianças que estão fora das escolas estaduais por conta da pandemia, a ajudaria a colocar comida na mesa para as filhas em casa. Mas o dinheiro, suficiente para duas feiras por mês – ou o equivalente dois dias de vale-refeição para assessores parlamentares em São Paulo –, nunca apareceu.

A história de Santos se repete na saga de outras nove mães das periferias de São Paulo com quem conversamos. Burocracia, informações desencontradas, dificuldade com a internet e até aparelho de celular antigo são empecilhos para as famílias mais pobres da maior cidade do país receberem o dinheiro.

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O auxílio-merenda começou a ser distribuído pelo governo de São Paulo emergencialmente em abril, mas apenas para quem fosse cadastrado no Bolsa Família, recebesse renda mensal de R$ 89 por pessoa no CadÚnico, cadastro que identifica famílias com baixa renda e dá acesso aos programas sociais do governo federal, e tivesse o filho matriculado em uma escola estadual (as regras estão aqui). Pouco mais de 700 mil estudantes cumprem os requisitos.

Mas até agora Iolanda, Elane, Eliane, Danielle, Natalia, Ana, Jozilma, Aparecida, Raquelina e Sharon não conseguiram ter acesso ao benefício, mesmo cumprindo os requisitos. Em comum, essas mães têm o fato de serem pobres, morarem nas periferias de São Paulo e serem, quase todas, negras.

A saga de Santos, por exemplo, começou quando sua franquia de internet móvel não foi suficiente para baixar o aplicativo do PicPay, serviço de pagamentos privado utilizado pelo governo paulista para depositar o Merenda em Casa. Ela tirou um dia para ir na casa do irmão, no mesmo bairro, onde usou o wifi emprestado e seguiu os passos mostrados no site do programa, fez o cadastro com seus dados e confirmou por foto sua identidade.

O valor supostamente cairia cerca de quatro horas depois, mas em maio, um mês depois de seu cadastro, nada tinha aparecido. Santos ligou três vezes para a escola da filha em busca de ajuda, e os funcionários pediram que ela mandasse um e-mail com os documentos pessoais confirmando que possuía o Bolsa Família. Uma semana depois, pediram mais uma confirmação: agora era necessário o comprovante do CadÚnico, feito na internet.

Mas a conexão instável no Jardim Cocaia, periferia da cidade de Guarulhos, onde mora, a impediu. Ela precisou ir para a casa do irmão mais uma vez, mas o site não identificou o seu cadastro. Era necessário, então, ir ao Centro de Referência da Assistência Social, o Cras, para atualizar o número. Tudo isso no meio de uma pandemia, com medidas de restrição de circulação e isolamento social e com as duas filhas a tiracolo. Como a data mais próxima de agendamento era dois meses à frente, Santos desistiu. A filha mais nova tem problemas cardíacos e faz parte do grupo de risco ao coronavírus. Não era seguro sair com ela nem deixar as crianças sozinhas em casa.

O governo de São Paulo afirma que quem tem o cartão do Bolsa Família já tem direito ao benefício desde que tenha as crianças inscritas no CadÚnico. Questionada, a escola, responsável por filtrar os pedidos, disse que Souza não estava na “lista” dos alunos aptos a receberem o auxílio. O CadÚnico exige atualização de dois em dois anos – se os dados estiverem desatualizados, caso de Souza, as famílias não conseguiriam receber o benefício.

Segundo dados da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo, o governo paulista gastou entre abril e junho de 2020 R$ 175 milhões com o programa Merenda em Casa. Esses valores foram divididos entre 732 mil estudantes na primeira parcela e os 770 mil da parcela mais recente neste mês de junho. O número corresponde a somente 22% dos 3,5 milhões de estudantes da rede estadual que estavam consumindo a merenda antes da pandemia.

Publicidade do Programa Merenda em Casa, anunciada pelo governo de São Paulo em Abril.

Foto: Reprodução/Facebook

Nem a escola sabe da merenda

Os dois maiores grupos no Facebook onde as famílias tentam se ajudar para conseguir o dinheiro somam quase 7 mil membros, perdidos nas intermináveis burocracias para conseguir o benefício. Mas a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo garante que todos os alunos que têm direito estão recebendo os R$ 55 e que “é muito difícil falar quem são todos os que não estão conseguindo receber”. “São casos específicos que chegam e a gente direciona para a diretoria de ensino”, nos disse a assessora da secretaria de Educação, Isabela Moraes.

Não foi o que Elane Sousa Lopes de Oliveira ouviu ao entrar em contato com a secretaria da Escola Estadual José Benedito Ferreira, em Guarulhos. “Ih, moça, esse tal de auxílio merenda nem existe mais, não estamos fazendo cadastro nenhum”, respondeu um funcionário da instituição, segundo ela. Era a terceira vez que a mãe tentava pedir ajuda sobre o benefício que, em tese, seus dois filhos teriam direito. “Eu venho tentando todo mês fazer algum contato e tenho as duas coisas, o CadÚnico e o Bolsa Família, não entendo porque não consigo”, diz Oliveira, que também depende do auxílio emergencial.

Eliane Maria, mãe de outro adolescente na mesma escola e que também tenta há meses receber o benefício, ouviu que a única solução era seguir aguardando. “Eu já adianto uma coisa para a senhora, se você já enviou todos os documentos e não teve retorno precisa continuar aguardando porque agora não é a escola, é o banco que precisa liberar e não está acontecendo isso. Não é só a senhora, tem outros pais que não conseguiram”, disse uma das coordenadoras da escola à mãe.

O caso “específico” se repete com Danielle Cristina, que cria sozinha Alison, de dez anos, que reclama que os gastos aumentaram com as crianças em casa. Com Ana Clélia Santos Souza, outra mãe solo de quatro filhos e beneficiária do Bolsa Família, o problema ocorre no login no PicPay – ela precisou ir com um bebê recém-nascido em um posto de atendimento e não resolveu o problema. Sem dinheiro para garantir o sustento das crianças e sem parentes por perto, ela vai às avenidas Santo Amaro e do Largo 13, na zona sul de São Paulo, pedir dinheiro. “Vou um dia sim e no outro não, fico em média duas horas com meus filhos nos faróis. Às vezes ganho comida, chego levar para casa de R$ 50 a R$ 100”.

São as mães negras que ficam mais vulneráveis, já que elas são o perfil que mais recebe o Bolsa Família. É o caso de Sharon Rodrigues Lopes, 32, desempregada, mãe de quatro filhos, nas idades de 15, oito, dois anos e um bebê de nove meses. Demitida do trabalho como passadeira no início da pandemia, Lopes precisou apagar aplicativos para liberar a memória do celular para instalar o PicPay – em vão. A escola alegou problemas com a matrícula do filho para negar o benefício a Lopes, o que contraria as regras do governo.

A única chance de sair do arroz e feijão

Desde que soube do programa Merenda em Casa, Natalia de Souza Irineu, 33 anos, começou a correr atrás do auxílio. Mãe solo de quatro crianças e desempregada, a moradora do Butantã, zona oeste de São Paulo, viu no programa a chance de garantir que seus filhos comessem algo além de arroz e feijão durante a pandemia – antes, ir para a escola era garantia de refeições mais completas. Era abril. Até agora, Irineu não conseguiu receber o dinheiro.

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Print feito por Natália, onde mostra a conta PicPay vinculada ao auxílio zerada.

Foto: Arquivo Pessoal

Depois de entrar no aplicativo com ajuda de uma amiga, Irineu preencheu as informações solicitadas, que incluem seu CadÚnico, mas nunca teve resposta. Procurou a escola onde a filha de 15 anos estuda. Ela alega que foi informada que somente crianças das escolas municipais teriam direito ao benefício. A prefeitura tem o seu próprio programa de merenda para estudantes de escolas municipais, mas a escola da filha de Irineu é estadual e, em tese, também deveria fornecer o benefício para seus alunos.

A mãe foi jogada em um empurra-empurra burocrático. Ligou para a central do PicPay, no qual o atendente pediu que ela entrasse em contato no número 156, da prefeitura de São Paulo. Quarenta minutos depois, ainda não tinha resposta. “Me disseram que não tinham a informação, porque era uma liberação do estado. Estou nessa luta desde quando que foi liberado pelo governo para ter o direito, e até agora nada”, desabafa.

Desempregada há quase um ano, ela consegue manter as contas como água, luz e a outra parte do aluguel com o auxílio emergencial do governo federal. Recebeu duas parcelas. Mas a terceira, que seria em julho, só vai ser paga em setembro. Agora sobrevive de cestas básicas, que ganha de uma ONG onde as filhas mais novas fazem cursos profissionalizantes e da escola da prefeitura, onde estudam os filhos de 12 e 8 anos. “Esse valor faz muita falta, pois as crianças não vivem somente de arroz e feijão. Tenho que comprar uma carne, pão e bolacha, porque esses itens não vêm na cesta básica”.

Os R$ 55 por mês correspondem a pouco mais de dois reais por dia útil. É pelo menos dez vezes menos do que o vale-alimentação de assessores da Assembleia Legislativa de São Paulo, que recebem mais de R$ 30 para almoçar diariamente. Mas, para uma família em condições de pobreza ou extrema pobreza, o auxílio, que permite a compra de uma cesta básica econômica, com itens como arroz, feijão e leite em pó, pode ser a diferença entre passar fome ou não.

A merenda escolar chega a corresponder a até 70% das necessidades nutricionais de crianças e adolescentes, segundo Maria Paula de Albuquerque, gerente geral clínica do Centro de Recuperação e Educação Nutricional, uma ONG que cuida de segurança alimentar nas escolas. “Não ter uma merenda escolar com todas as proteínas pode causar anemia, infecções e baixo rendimento nos estudos”, ela nos disse.

‘Entendemos que essa restrição de público é ilegal e inconstitucional, porque alimentação escolar é um direito para todos os alunos da rede pública’.

A pandemia tirou as principais refeições de muitas dessas crianças – não por acaso, a Unicef estimou que a crise deve fazer com que mais de 7 milhões de crianças no mundo fiquem subnutridas.

Os efeitos já são sentidos na Defensoria Pública de São Paulo. “Nessas últimas semanas tem aumentado consideravelmente o número de famílias procurando a defensoria por conta da restrição”, nos disse Ana Carolina Schwann, coordenadora do Núcleo Especializado de Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo, uma das responsáveis por processar o estado para universalizar a merenda. “Nós entendemos que essa restrição de público é ilegal e inconstitucional, porque alimentação escolar é um direito para todos os alunos da rede pública”.

Após um pedido da Defensoria Pública e do Ministério Público de São Paulo, a justiça obrigou o estado em abril a fornecer o valor correspondente às refeições para todos os estudantes, sem a condição de ter o CadÚnico. O governo de João Doria recorreu e, seis dias depois, o presidente Tribunal de Justiça de São Paulo, desembargador Geraldo Francisco Franco, acatou os argumentos e suspendeu a extensão do auxílio medida – recursos ainda serão julgados.

“A lei do programa nacional de alimentação escolar diz que um dos seus princípios é a universalidade, ou seja, se está na rede pública tem direito. Em um momento em que a segurança alimentar precisa ser reforçada, muitas famílias que não estavam no CadÚnico vão entrar em uma situação de maior pobreza e negar esse direito é expor elas à uma situação de maior vulnerabilidade”, concordou João Paulo Faustinoni, promotor de justiça do Grupo de Atuação Especial de Educação, também responsável pela ação.

Quando lançou o programa, o governador João Dória disse que os critérios rígidos para receber os benefícios serviriam “para evitar desvio de informação e recursos para os que vivem em extrema pobreza”. Mas a burocracia que ele criou está fazendo exatamente isso.

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