Um técnico de laboratório classifica amostras de sangue para estudos de vacinação contra covid-19 nos Research Centers of America em Hollywood, na Flórida, em 13 de agosto de 2020. Foto: Chandan Khanna/AFP via Getty Images

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Fabricantes fogem da responsabilidade por vacinas apressadas

Pelo menos 120 vacinas para covid-19 estão em desenvolvimento pelo mundo. Cada uma tem seu próprio potencial de causar dano.

Um técnico de laboratório classifica amostras de sangue para estudos de vacinação contra covid-19 nos Research Centers of America em Hollywood, na Flórida, em 13 de agosto de 2020. Foto: Chandan Khanna/AFP via Getty Images

Apesar dos repetidos alertas de especialistas de que apressar uma vacina para covid-19 pode colocar milhões de pessoas em perigo, o presidente Donald Trump deixou bem claro que deseja acelerar uma vacina. O seu plano seria contornar os padrões regulatórios para ter uma vacina pronta antes do dia das eleições, em 3 de novembro. Um movimento assim poderia reforçar as afirmações de Trump, que diz estar salvando os americanos do coronavírus, em vez de piorar o avanço da pandemia e causar dezenas de milhares de mortes evitáveis — algo que, possivelmente, o ajudaria a ganhar um segundo mandato.

Mas o que acontecerá com as empresas que fabricam e comercializam a vacina se as pessoas descobrirem que foram prejudicadas por um produto lançado às pressas no mercado? De acordo com uma lei aprovada no primeiro semestre, praticamente nada. Uma emenda à Lei PREP, que foi atualizada em abril, estipula que as empresas “não podem ser processadas na justiça por danos financeiros” por lesões causadas pelas medidas médicas contra a covid-19. Essas medidas incluem vacinas, medicinas terapêuticas e dispositivos respiratórios. A única exceção a essa imunidade é se morte ou lesões físicas graves são causadas por “má conduta intencional”. E, mesmo nesses casos, as pessoas prejudicadas terão que atender aos padrões elevados de “má conduta intencional” que são favoráveis aos acusados.

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As proteções abrangentes são “um desvio extremo das normas”, de acordo com Ameet Sarpatwari, do Centro de Bioética da Harvard Medical School. Sarpatwari disse que as empresas farmacêuticas tradicionalmente não têm recebido muita proteção diante da lei. Mas isso mudou durante a pandemia.

E enquanto as pessoas prejudicadas por vacinas podem entrar com ações no Programa Nacional de Compensação de Lesões por Vacinas, criado em 1986, a Lei PREP agora proíbe qualquer pessoa que sinta que foi prejudicada por uma vacina contra o coronavírus de usar o programa. A incapacidade de obter compensação ressalta “a tensão entre botar o pé no acelerador — e possivelmente cortar custos — para trazer uma vacina ao mercado e compensar as pessoas que podem sofrer eventos adversos com elas no futuro”, disse Sarpatwari.

O que poderia dar errado?

Pelo menos 120 vacinas para proteção contra covid-19 estão em desenvolvimento em todo o mundo. E cada uma tem seu próprio potencial de dano. Embora a esperança seja de que esses produtos impeçam as infecções por coronavírus, alguns provavelmente serão ineficazes. Outros podem piorar a doença, como fez uma vacina destinada a proteger as crianças do vírus da dengue em 2016. E ainda outros podem causar danos não relacionados. Foi o que aconteceu com uma vacina contra a gripe suína, que acabou causando um grave distúrbio neurológico em milhares de pessoas saudáveis que a tomaram nos anos 1970.

Os tratamentos da covid-19, que agora são objeto de mais de mil testes clínicos, também podem prejudicar, bem como podem ajudar. Já vimos isso com a hidroxicloroquina, o tratamento da malária que pode causar efeitos colaterais fatais e tem sido usado experimentalmente para covid-19. Esse medicamento, no qual Trump também se fixou, recebeu uma autorização de uso emergencial nos EUA em março, que foi revogada por lá em junho depois que ficou claro que os danos que representava para os pacientes com coronavírus superavam seus benefícios.

Dada a necessidade desesperada de ferramentas para combater o coronavírus, e as consequências de vida ou morte se essas ferramentas se provarem inseguras, as questões sobre como lidar com os riscos são enormes e calorosamente debatidas. A discussão sobre eles foi intensificada — e acelerada — pelas somas exorbitantes que o governo norte-americano está gastando rapidamente para combater a pandemia, incluindo US$ 27 bilhões que foram destinados para uma divisão da secretaria de Saúde e Serviços Humanos chamada Autoridade de Pesquisa Avançada e Desenvolvimento Biomédico, BARDA na sigla em inglês, para compra de vacinas, terapias, diagnósticos e insumos médicos contra a covid-19.

Os tratamentos da covid-19, que agora são objeto de mais de mil testes clínicos, também podem prejudicar, bem como podem ajudar.

Considere, por exemplo, um medicamento antiviral experimental conhecido como EIDD-2801, que o Dr. Rick Bright disse que foi pressionado a financiar quando era chefe do BARDA. Segundo uma denúncia que ele registrou em maio, o EIDD-2801 foi apresentado a Bright no segundo semestre do ano passado como uma “cura milagrosa” para a gripe, embora o antiviral ainda não tivesse sido testado em humanos. Bright, um especialista em doenças infecciosas, expressou preocupação com a droga porque medicamentos similares em sua classe tinham causado problemas reprodutivos sérios em animais, levando a nascimentos sem dentes ou crânios parcialmente formados naqueles que haviam sido expostos no útero.

Bright descreveu ter vivido novas pressões para financiar o EIDD-2801 em abril, quando o medicamento foi apresentado a ele outra vez, agora como um tratamento potencial para covid-19. A essa altura, uma empresa chamada Ridgeback Biotherapeutics tinha feito parceria, em março, com o Instituto Emory para Desenvolvimento de Medicamentos. Segundo a denúncia de Bright, a CEO da Ridgeback, Wendy Commins Holman, esperava “garantir aproximadamente US$ 100 milhões” do BARDA para desenvolver o EIDD-2801 para tratar o coronavírus. A pressão para conseguir o dinheiro foi rápida e intensa, segundo a denúncia e emails obtidos pelo Intercept, um dos quais aludia a um telefonema recebido tarde da noite, do superior direto de Bright na secretaria de Saúde, Robert Kadlec, secretário assistente de preparação e resposta a crises sanitárias. Pouco depois disso, outro funcionário da secretaria pediu o financiamento da proposta da Ridgeback “o mais rápido possível, e de preferência dentro de 24 horas”.

O EIDD-2801 não recebeu financiamento do BARDA. Mas é importante notar que Bright, o funcionário do governo que recomendou cautela no uso da droga e relatou enfrentar pressão de indivíduos que teriam a ganhar com drogas que não foram examinadas cientificamente, foi afastado de seu trabalho. Enquanto isso, a Ridgeback vendeu à Merck os direitos mundiais exclusivos do EIDD-2801 em junho, embora a empresa diga que continua envolvida em seu desenvolvimento. “Este acordo com a Merck, líder em terapia para doenças infecciosas, nos coloca em posição de aproveitar todo o potencial do EIDD-2801 e, se aprovado, entregá-lo a pacientes que precisam dele globalmente”, disse Holman.

Já se considera que a droga está no caminho para derrubar o remdesivir como o antiviral preferido no combate à covid-19. Embora dois estudos sobre a segurança do medicamento estejam em andamento, eles só inscreveram um total de 174 indivíduos. Nenhum dos dois ainda publicou resultados. No entanto, os investidores parecem estar prevendo os impactos da droga no mercado até o final do ano.

Ameaça material

Wendy Holman e seu marido, Wayne Holman, gerente de fundos de investimento e fundador da Ridgeback, receberam uma quantia não revelada da Merck após adquirir o EIDD-2801 apenas alguns meses antes. A empresa também receberá uma parte dos lucros se o medicamento for aprovado. E mesmo que eles não precisem se preocupar com a responsabilidade pelos riscos desses produtos, a Ridgeback e outras empresas farmacêuticas que fazem tratamentos, vacinas e testes para o coronavírus poderão lucrar ainda mais se a covid-19 for designada como uma “ameaça material” para a segurança nacional.

Essa designação vem com “vouchers de revisão prioritária”, que permitem às empresas que fabricam produtos que tratam da ameaça material acelerar em quatro meses o processo de aprovação da FDA, a agência federal responsável pela liberação de medicamentos. Os vouchers também podem ser vendidos a outras empresas e renderam até US$ 350 milhões. “Se você conseguir colocar seu medicamento no mercado muito mais cedo, isso pode valer muito mais do que as centenas de milhões de dólares pelos quais você está comprando a isenção”, explicou Sarpatwari.

Além disso, como a própria Holman explicou em um webinar organizado pela Information Technology & Innovation Foundation em abril, a “designação de ameaça material permite que o governo compre medicamentos antecipadamente”, mesmo antes de serem aprovados. Portanto, a eventual descoberta de que uma droga é inútil ou prejudicial não impediria um fabricante de lucrar com ela.

Embora a dispensa de responsabilidade para os fabricantes de medicamentos tenha se tornado rapidamente o padrão nos EUA na era da covid-19, esse não foi o caso na Europa. Quando a farmacêutica AstraZeneca recentemente solicitou em Bruxelas imunidade de quaisquer reclamações futuras sobre os efeitos de sua vacina experimental, os especialistas hesitaram, chamando o pedido de “um pouco chocante”, como disse Thierry Vansweevelt, professor de direito médico na Universidade de Antuérpia, em entrevista ao Brussels Times.

No fim de agosto, porém, um documento dos fabricantes de vacinas deixou claro que a indústria farmacêutica europeia também busca isenção de responsabilidades futuras. O documento, do grupo comercial Vaccines Europe, busca “uma isenção de responsabilidade civil”, alegando que a covid-19 é uma “crise econômica e de saúde pública sem precedentes”. Embora a União Europeia esteja em negociações com outros fabricantes de vacinas, ela já teria concedido à AstraZeneca isenção de responsabilidade.

O precedente preocupa Yannis Natsis, um representante de pacientes no conselho de administração da Agência Europeia de Medicamentos, órgão da União Europeia responsável por avaliar e supervisionar drogas. “Esse tipo de discussão sobre dar às empresas um passe livre, isso prejudica a segurança do paciente e a confiança nas vacinas”, disse Natsis, que também expressou preocupação “que a indústria está tentando usar a covid para abrir novos precedentes”.

Enquanto isso, nos EUA, o precedente para negar a responsabilidade sobre os riscos já foi aberto. Trump disse que a aprovação de uma vacina até o dia da eleição “não prejudicaria” suas chances contra o candidato democrata à presidência, Joe Biden. Se as vacinas ou os tratamentos chegarem rapidamente ao mercado para a Trump um impulso político e prejudicar as pessoas que os tomarem, haverá pouco a se fazer.

Tradução: Maíra Santos

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