“Não se preocupe, você ainda vai viver uns 20 anos!”
Foi assim que, em 1999 meu primeiro infectologista, que me diagnosticou com HIV, o vírus da imunodeficiência humana, tentou me tranquilizar após me passar minha primeira receita do coquetel de antirretrovirais que tomei (eram dois medicamentos, chegando mais tarde a quatro). Na época, minha dimensão de 20 anos era enorme, especialmente no dia do meu aniversário de 22 anos, quando tomei os remédios pela primeira vez. As perspectivas para alguém infectado por HIV eram muito curtas quando a epidemia começou, no início dos anos 1980. Seis meses de vida no máximo. Fiquei aliviado.
Mas naquele ano já tinham ocorrido dois fatos muito importantes sobre a epidemia de aids, a síndrome da imunodeficiência humana: a primeira delas foi a descoberta de que o vírus poderia ser controlado graças a um coquetel de medicamentos (tanto que na época se comentava, muito discretamente, que tal pessoa já tomava “o coquetel” e estava bem).
O segundo é um fato político de muita importância e que devemos dar crédito a quem é de direito, especialmente hoje em dia, em que o brasileiro deve estar um pouco confuso sobre o que devem fazer um presidente e um ministro da Saúde em meio a uma pandemia. Sob o governo de Fernando Henrique Cardoso, o então ministro da Saúde, José Serra, havia feito uma parceria de US$ 500 milhões com o Banco Mundial para promover campanhas de prevenção com distribuição gratuita de preservativos e tratamento médico, além coleta de dados sobre a epidemia que tinha um prognóstico de infectar cerca de 1,5 milhão de brasileiros até o ano 2000.
Ao oferecer tratamento gratuito universal para os infectados já em 1996, Serra e FHC não apenas ajudaram a frear o aumento da infecção com informação e proporcionando aos mais pobres o direito à vida, como ensinaram ao mundo, através dos profissionais do SUS, como se lidar com HIV. Muitos países europeus seguiram o programa brasileiro de combate ao HIV até que os “profissionais técnicos” do atual governo resolveram desmontar e aparelhar o programa com sua máquina ideológica que vê o HIV positivo como um homossexual promíscuo que não merece viver por não seguir a doutrina da religião que eles alegam seguir. E para justificar essa necropolítica, usam a medida mais torpe de todas: o dinheiro.
Mas voltemos ao Brasil de quando havia governo, que também queria lotear o país para o capital com privatizações de direitos essenciais como educação e saúde, mas que na hora em que a morte bateu à porta resolveu agir conforme a Constituição mandava, usando seus recursos para garantir pelo menos a vida da população. Até porque, se não tiver consumidor, não tem capitalismo. Se não tiver povo, não tem voto.
Neoliberais até a raiz do Grecin 2000, Serra e FHC conseguiram segurar a epidemia em “apenas metade” da expectativa, cerca de 540 mil pessoas, aplicando uma política que hoje rendeu a seu partido, o PSDB, a pecha de “esquerdopata”. O governo, em 2001, promoveu uma quebra de patentes de uma medicação que eu tomei durante alguns anos, o Kaletra. Esse processo se estendeu a outros remédios que a rede pública de saúde oferece aos infectados, e até aos não infectados, que se previnem do HIV tomando o PrEP. Todas essas políticas, além de ter incentivado as pessoas a se tratarem, diminuíram em muito o custo de produção desse tratamento para o governo.
’21 anos depois de ter dito a mim mesmo que depois do vacilo eu tinha a obrigação de sobreviver, tomo apenas dois medicamentos’.
Os remédios, que no começo eram muitos e tinham muitos efeitos colaterais, não apenas continuam funcionando como estão passando por atualizações em sua fórmula. Hoje, 21 anos depois de ter dito a mim mesmo que depois do vacilo eu tinha a obrigação de sobreviver, tomo apenas dois medicamentos. Desde 2001 mantenho minha carga viral indetectável e um nível alto de células CD4, que protegem nosso organismo contra infecções, tomando diariamente, sem nunca falhar, minhas pílulas. Faço também uma bateria de exames de sangue trimestral para investigar meus níveis de colesterol, se desenvolvi diabetes ou se me contaminei com alguma IST. Devido a esse constante monitoramento é que muitos médicos dizem que é muito mais seguro transar com um soropositivo em tratamento do que com alguém que diz ser negativo.
Para aqueles que estão em início de tratamento, que nunca trocaram a configuração do coquetel, por exemplo, aqui nos Estados Unidos é comum prescrever hoje em dia apenas um comprimido para conter o HIV. Os efeitos colaterais são mínimos, embora ainda existam. Há algumas ações coletivas na Justiça americana contra a fabricante do Truvada, um dos comprimidos usados na PrEP. A Gilead, fabricante da droga, é acusada de ter posto no mercado um produto cuja composição química causou problemas ósseos em seus usuários.
Os primeiros a sofrer e os primeiros a aprender
Em 1999, ser HIV positivo já não significava mais uma morte precoce, mas ainda era um terreno pantanoso. Eu demorei muitos anos para contar para as pessoas sobre minha condição. Quando descobri, contei para meus amigos de faculdade, um grupo de gays e héteros com quem tive o privilégio de conviver em Londrina e que carrego no peito até hoje. Sem o apoio dessas pessoas, que nunca fizeram disso um grande drama, talvez eu não tivesse sobrevivido.
Para RH de empresa e chefe, por exemplo, nunca revelei – vai que resolvessem me cobrar mais pelo plano de saúde (embora eu sempre tenha me tratado pelo SUS) ou, pior, me demitissem. Colegas de trabalho foram pouquíssimos os que souberam. E parceiros sexuais nem todos, mas a grande maioria.
Namorados? Todos. Não que isso algum dia tenha sido critério de seleção para mim, mas, por incrível que pareça, sempre tive relacionamentos duradouros com homens soronegativos, que permaneceram assim mesmo depois do fim do relacionamento.
Percebi logo que isso não era assunto tabu dentro da comunidade gay. Sempre que contava, a maioria das respostas era: “tudo bem, eu já tive um namorado positivo e continuo negativo”, “ah, eu tomo PrEP”, “não tem problema, a gente vai usar camisinha mesmo”, ou “ah, eu também sou”, e o assunto parava por aí. Não é algo para se envergonhar, mas também sou contra romantizar. E acho que ninguém nem romantiza nem quer estabelecer sua relação com um parceiro sexual falando disso além do essencial.
Talvez seja por isso que a primeira vez que abri publicamente minha sorologia foi apenas em 2018, em um post no Facebook, quando Bolsonaro e seus necropolíticos ameaçaram acabar com o tratamento gratuito do HIV pelo SUS. Achei necessário, novamente, expor minha história para mostrar que pessoas HIV positivas não são descartáveis, mas têm carreiras, famílias, pagam impostos, são cidadãs. E sua vida sexual não deve ser objeto de especulação ou mesmo régua moral para determinar quem tem direito ou não a políticas públicas.
E como fomos os primeiros a sofrer o efeito devastador da aids pelo mundo, nós LGBTQIAP+ também fomos os primeiros a aprender sobre como conviver com a doença, a nos defender dela e, assim, proteger as outras pessoas através da autoproteção.
Pela minha experiência, dentro da comunidade gay, quase todo mundo já transou com alguém que é soropositivo, com ou sem preservativo, ou conhece alguém nesta situação. E essa pessoa provavelmente continua soronegativa. Porque talvez essa pessoa tome a PrEP ou porque o parceiro dessa pessoa seja um soropositivo de carga viral indetectável e que, segundo a ciência, é incapaz de transmitir o HIV, ou as duas coisas juntas.
Isso significa que a epidemia tenha diminuído? Diminuiu por um tempo, mas agora voltou a aumentar. O principal fator é a falta de informação. Os jovens veem a epidemia de aids como algo do passado ou, graças à eficiência dos medicamentos, algo superado. A ausência de campanhas educativas em escolas ajuda muito a propagação do vírus. Mas há outro dado importante que é ignorado por muita gente, especialmente homens heterossexuais, do presidente da República a jornalistas da grande mídia: de 2007 a 2019, segundo dados do Ministério da Saúde, os heterossexuais foram responsáveis por 58% dos novos casos de infecção por HIV.
‘Por que então Bolsonaro e Leandro Narloch insistem em disseminar informação distorcida e defasada sobre esse assunto?’
Ou seja, se em 1999 o panorama da aids no mundo já havia mudado, já não significava mais uma sentença de morte, e hoje, em 2020, não apenas aquela geração de gays superou a expectativa de vida dos 20 anos como aprendeu a conter a infecção. Por que então Bolsonaro ou o jornalista Leandro Narloch insistem em disseminar esse monte de informação distorcida e defasada sobre esse assunto?
Vamos recapitular: em 5 de fevereiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro disse, do seu chiqueirinho no Planalto, que a pessoa com a HIV era “uma despesa para todos”. Eu entendo a tática: usando da homofobia e da sorofobia, Bolsonaro desvia o foco das verdadeiras despesas do governo, como os R$ 2,5 milhões gastos em seu cartão corporativo até março deste ano. É revoltante que ele use a condição de saúde de cidadãos pagadores de impostos para obter ganho político, mas não chega a ser uma surpresa. A essas alturas já se sabe o valor que o presidente dá à vida humana.
A demonização e a desumanização dos gays e soropositivos servem para atiçar sua base eleitoral moralista. E servem também à sua ideia americanizada de mercado e economia, em que saúde é mercadoria. Bolsonaro mente que soropositivos e gays (o que para ele e seu eleitorado são a mesma coisa) estão “causando danos aos cofres públicos” e, portanto, sua vida “imoral” deve ser penalizada, senão descartada. Sua resposta ao covid-19 é nada mais que a materialização de suas políticas de combate ao HIV.
Já o caso do ex-comentarista da CNN Brasil é um pouco mais preocupante. Em 10 de julho de 2020, ele foi demitido após as repercussões negativas de seu comentário sobre a decisão do STF em suspender a proibição de doações de sangue por homens homossexuais. As declarações estão abaixo:
No que diz respeito ao comentário do Narloch, a gente percebe a velha homofobia–sorofobia estrutural. O jornalista diz que não é e que ficou muito “triste” de ser considerado homofóbico. Já deve até ter falado por aí, em uma das lives em que se diz “vítima da cultura do cancelamento”, que tem amigos gays, provavelmente gays de bem, que se cuidam na Smart e que “tiveram um só parceiro a vida inteira”, a única casta de gays imaculada digna de ser aceita socialmente — e olhe lá!
Na cabeça desse pessoal, aids é ainda aquele “câncer gay”, como chamavam os tabloides nova-iorquinos nos anos 1980, e gays ou são “heteronormativos monógamos” ou são verdadeiros “depósitos de IST” como já me chamou um jornalista esquerdomacho.
Acredito que Narloch pense que não é homofóbico, mas o fato de ele ter colado um rótulo que venceu há mais de 20 anos e ter associado a aids a “gays promíscuos” apenas demonstra aquilo que eu sempre digo: a homofobia, como o racismo e a misoginia, é insidiosa. Quase sempre vem acompanhada de um sorrisinho, um tapinha nas costas, uma boa intenção, um amigo gay no jantar.
Ah, mas e os gays soropositivos que transam sem camisinha? Não são eles que continuam transmitindo HIV? Em primeiro lugar, gays soropositivos com carga viral indetectável, segundo Centro de Controle de Doenças, órgão do governo americano, não transmitem HIV. A pesquisa foi realizada entre casais sorodiscordantes (em que um é positivo e o outro, negativo) e constatou algo que eu já sabia não apenas por experiência própria, mas também por meio de meus infectologistas. Além disso, os gays soronegativos não apenas estão informados disso como também tomam a PrEP. Proteção em duas vias.
‘Mais de 80% das mulheres soropositivas foram infectadas por seus maridos’.
Quem continua se infectando, e infectando especialmente suas mulheres, são os homens heterossexuais que têm comportamento de risco, que fazem sexo sem camisinha, que não fazem teste de HIV porque isso é “doença de gay” e que, quando descobrem com HIV, não se tratam. Mais de 80% das mulheres soropositivas foram infectadas por seus maridos.
Agora, para quem acredita na narrativa vitimista de Narloch, sinto informar, mas ele não foi demitido por causa da cultura do cancelamento. Foi demitido por não ter feito direito o trabalho pelo qual é pago. Não pesquisou, não se atualizou, foi ao ar em rede nacional vomitando preconceitos e acabou reforçando uma imagem da qual a CNN Brasil está tentando se livrar: de ser um “Superpop de terno”, como bem definiu um leitor no Twitter, ou seja, uma emissora mais preocupada com o bate-boca e a polêmica do que com a informação.
Fica muito claro que o importante para o jornalista ali não era discutir a decisão do STF, mas ressaltar sua agenda “politicamente incorreta” ao culpar os “gays promíscuos” por serem os maiores disseminadores de HIV no Brasil.
Tivesse ele pesquisado, teria facilmente descoberto que, segundo a OMS, uma pessoa é considerada sexualmente promíscua se tiver tido mais de dois parceiros sexuais em um espaço de seis meses. E você? Já estourou sua cota?
Correção, 4/9, 15h42:
Uma primeira versão deste texto informava erroneamente que, em 2001, o governo havia quebrado a patente do antirretroviral Efavirenz. Mas o nome correto do medicamento é Kaletra. A quebra do Efavirenz ocorreu em 2007, no governo Lula. As informações de data e nome da medicação foram corrigidas.
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