Há quem diga que ter amigos é melhor que ter dinheiro. No judiciário, esse ditado parece ser levado a sério, como mostram os diversos casos de parcialidade que encontrei ao levantar via Lei de Acesso à Informação todas as investigações contra magistrados em curso no Conselho Nacional de Justiça, o CNJ. Com os amigos “certos”, um assessor jurídico pode virar até tabelião de cartório, como aconteceu em Buriticupu, uma pequena cidade do interior do Maranhão.
José Mauro Barbosa Arouche foi assessor no gabinete da desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão Nelma Celeste Sousa Silva Sarney entre 2001 e 2014. A proximidade da magistrada – cunhada do ex-presidente José Sarney e, graças ao casamento, parte de uma das famílias mais influentes do estado –, parece ter sido essencial para lhe garantir o cargo de administrador do único cartório de Buriticupu e alguns milhares de reais a mais na conta, como consta no processo em curso no CNJ.
A função de “delegatário de serventia”, nome oficial de quem administra um cartório, é concorrida e levou mais de 1.300 pessoas a participarem do concurso realizado em 2008 para definir quem seria o responsável pelas 202 serventias sem administradores espalhadas pelo estado. Também pudera: apenas em 2019, o cartório de Buriticupu arrecadou mais de R$ 1,3 milhão, segundo informações disponíveis no site do Tribunal de Justiça do Maranhão. Uma pequena quantia desse valor, cerca de R$ 156 mil, foi para o Fundo Especial de Modernização e Aparelhamento do Judiciário. O resto, excluído o pagamento dos funcionários, as despesas fixas e demais custos de manutenção dos serviços, ficou na mão do titular do cartório, mas como a vaga era ocupada por um interino, que recebe um salário fixo, o lucro é destinado ao fundo do TJMA. É um negócio lucrativo – e garantido para a vida toda, já que o cargo é vitalício.
Arouche também se inscreveu no concurso e, apesar de ter passado em uma das duas fases – uma prova objetiva com 100 questões de múltipla escolha–, empacou na segunda, discursiva, que envolvia quatro questões teóricas e outras três práticas. Tirou 6,3 na parte objetiva e sequer alcançou a nota mínima – 5 –, na prova discursiva, alcançando apenas 1 ponto.
Seria só mais uma história de um concurseiro frustrado, caso Arouche não tivesse questionado – e ganhado! –, o cargo. O caso agora está sendo analisado pelo CNJ, que concluirá se foram algumas manobras amigas da justiça maranhense que colocou o assessor a frente do cartório. O conselho passou a analisar o caso após uma denúncia anônima, acusando os dois magistrados de quebra de imparcialidade – o velho e bom favorecimento. Em 25 de junho, o prazo para conclusão do processo foi prorrogada em mais 140 dias.
Arouche chegou a entrar com uma liminar em 2009 pedindo que as suas respostas às questões discursivas fossem recorrigidas. A banca reavaliou sua prova, mas manteve a reprovação. Os registros de movimentação no site do tribunal mostram algo estranho. A desembargadora Sarney pediu que os arquivos referentes ao processo do assessor, que já havia tramitado até o fim, fossem encaminhados ao seu gabinete, onde ficaram por um mês e meio antes de o caso ser definitivamente arquivado em 2011.
O assessor esperou mais três anos e escolheu entrar com um novo processo pedindo a revisão da sua nota à justiça em fevereiro de 2014, exatamente um mês depois de a desembargadora Sarney, com quem ainda trabalhava, se tornar corregedora do tribunal. Segundo consta no relatório do conselheiro Humberto Martins, relator do caso no CNJ, a magistrada se aproveitou do seu poder e fez uma série de manobras judiciais para favorecer o assessor de longa data.
Em março de 2014, na função de corregedora – que, além de fiscalizar o trabalho dos outros magistrados, tem entre suas atribuições decidir em que varas serão alocados os juízes auxiliares –, a magistrada nomeou o juiz Clésio Coelho Cunha para substituir o juiz titular da 5ª Vara da Fazenda Pública de São Luís, que estava de férias e seria o responsável por julgar o pedido de Arouche. Cunha, que também é investigado pelo suposto favorecimento do assessor no concurso, determinou que fosse criada uma comissão no tribunal para corrigir novamente as respostas do assessor.
“O juiz admitiu que cometeu um erro de avaliação nessa decisão, mas acredita que não tenha sido algo tão grave.”
A comissão manteve a reprovação, mas Arouche não se deu por vencido e entrou com outro pedido para que a sua nota fosse recorrigida. Novamente, a desembargadora Sarney nomeou o juiz Cunha para substituir o juiz responsável por analisar o caso, como mostra o relatório do CNJ. Dessa vez, o próprio magistrado corrigiu as questões e concluiu que “a nota do requerente deveria ser 5,00 (cinco) pontos”. Também determinou nova análise da prova de títulos e a inclusão do candidato na relação final de aprovados.
Cunha destacou ainda que era “desnecessária remessa à Superior Instância”, no caso, os desembargadores do tribunal. Ou seja: a sua decisão não deveria ser submetida à análise de outros magistrados. Em entrevista por e-mail, o juiz admitiu que cometeu um erro de avaliação nessa decisão, mas acredita que não tenha sido algo tão grave a ponto de beneficiar Arouche indevidamente.
Em outubro de 2015, seis anos depois de divulgada a lista de aprovados no concurso, o processo foi concluído e Arouche conseguiu, enfim, o cargo que tanto queria. Mas ele teve pouco tempo de tranquilidade na nova função. Em fevereiro de 2016, a Associação dos Titulares de Cartórios do Maranhão, a ATC, e a Associação de Notários e Registradores, a Anoreg, contestaram a decisão do juiz Cunha. Ele acabou afastado do cartório por decisão do desembargador Lourival de Jesus Serejo Sousa, que dizia que não compete ao poder judiciário “substituir banca examinadora para avaliar respostas dadas pelos candidatos”.
Foi nesse momento que a desembargadora Sarney agiu novamente em favor do ex-assessor. Dessa vez, não contou com intermediários. Em abril de 2016, quando estava no plantão judicial, ela concedeu a Arouche um mandado de segurança que lhe garantia novamente a administração do cartório de Buriticupu. Essa ação, no entanto, foi indeferida por outro desembargador e, o afastamento, mantido.
“A desembargadora alegou que esse fato não a impedia de atuar como magistrada no caso.”
Ao responder ao CNJ por que não se declarou suspeita para julgar o processo, já que Arouche havia sido seu assessor, a desembargadora alegou que esse fato não a impedia de atuar como magistrada no caso. A defesa, no entanto, não foi suficiente para o relator Humberto Martins, que votou em novembro de 2018 pela abertura de um Processo Administrativo Disciplinar contra a desembargadora Sarney e o juiz Cunha. Mas os magistrados não foram afastados e seguem ocupando as suas funções.
Por e-mail, a desembargadora disse que teve apenas relação de trabalho com o ex-assessor, negou que o tenha beneficiado ao conceder o mandado de segurança no seu plantão judicial e afirmou que “foram proferidas outras decisões, que não por mim”.
Em outubro de 2018, o caso de Arouche chegou à Terceira Câmara Cível do tribunal do Maranhão. Nessa instância, três magistrados analisaram o processo e ele ganhou a causa. Um desembargador e um juiz entenderam que o juiz Cunha atribuiu corretamente as notas. Apenas um desembargador discordou, destacando que Arouche identificou a sua prova ao colocar nomes de pessoas em uma das respostas. Mesmo que sejam usados nomes fictícios, esse tipo de atitude provoca eliminação do candidato. Mas o desembargador foi voto vencido.
O Estado do Maranhão, a Anoreg e a ATC recorreram ao Superior Tribunal de Justiça contra a decisão, mas no dia 25 de agosto deste ano o ministro Gurgel de Faria negou o pedido. Mesmo assim, Arouche segue afastado até que outra ação no Supremo Tribunal Federal seja julgada. Enquanto isso não acontece, o administrador interino Denisson Oliveira Barbosa toma conta do cartório de Buriticupu. Não que isso signifique que Arouche se manteve longe do cartório.
Tentei contato com esse administrador pelo telefone e e-mail oficial do cartório. Curiosamente, recebi como resposta pelo e-mail do cartório, sem assinatura, o número do celular do advogado de Arouche, Johnny Sanches Vale. O administrador interino sequer me respondeu.
Para o advogado do assessor, Arouche é que é a vítima da história. Vale me disse que seu cliente tem colecionado “sucessivas vitórias” na justiça, primeiro com a decisão do juiz Cunha e depois dos magistrados da Terceira Câmara Cível. “Não acredito que possa existir um complô de todo mundo a favor do Mauro [Arouche]. Se tem alguém prejudicado em toda essa história é ele, que passou no concurso e foi retirado da serventia sem remuneração, sem nada.”
Falei também com o juiz Cunha. Por e-mail, ele me disse que foi designado pela desembargadora Sarney para responder pela 5ª Vara da Fazenda Pública de São Luís devido à sua agilidade e produtividade. À época, segundo Cunha, a unidade tinha muitos processos aguardando julgamento e não havia uma ordem formal para atendimento da demanda, “o que obrigava o juiz a despachar o acervo de acordo com os pedidos de preferência feitos por advogados”.
Cunha admite que a defesa de Arouche o procurou e pediu preferência no processo, mas diz que julgou o caso prontamente como fazia, segundo ele, “por todos os advogados que me procuraram nesse período”. O magistrado nega que tenha atendido a um pedido especial da desembargadora Sarney para beneficiar Arouche e também diz que apenas o conhece porque ele trabalhava no tribunal, mas não tem amizade. “A minha decisão foi correta. Esse conflito de liminares envolveu injustamente meu nome”.
A desembargadora também negou que seja amiga do juiz Cunha e de Arouche e disse que como corregedora, atuou “estritamente dentro dos princípios e regras legais” para evitar que uma unidade judiciária ficasse desassistida. “O magistrado em questão, na condição de auxiliar, foi designado para atuar por um período de 60 dias – onde proferiu centenas de sentenças e outros atos”.
Situações como a da desembargadora Sarney e do juiz Cunha, em que juízes são investigados por suspeita de parcialidade, são mais comuns do que se costuma imaginar – e do que determina a lei. Para se ter uma ideia, a maior parte dos casos denunciados ao CNJ desde a sua criação, em 2005, é de quebra de imparcialidade, como descobri ao levantar todas as investigações já realizadas pelo conselho.
Para a diretora da ONG Transparência Brasil Juliana Sakai, casos assim mostram que os órgãos de controle não têm sido eficazes em investigar e punir desvios na magistratura e restringem a aplicação da justiça real. “A partir do momento em que as instituições são coniventes, elas legitimam esse tipo de atuação de quem usa o poder de forma irregular”, afirma.
Outras nomeações suspeitas
Além de Arouche, dezenas de nomeações para cartórios, feitas pela desembargadora Sarney quando ela era corregedora do tribunal, também foram questionadas. Em 2015, a Anoreg e a ATC denunciaram ao CNJ irregularidades nas indicações de 18 interinos ou interventores para administrar 25 cartórios no estado. Alguns deles, distantes até mais de 700 km entre si, passaram a ser administrados pela mesma pessoa.
Interino é quem administra cartórios que não possuem titulares e interventores são pessoas designadas pelo tribunal para ocupar a vaga quando os administradores são afastados por decisão judicial ou administrativa. Diferente dos titulares, interinos e interventores não ficam com todo o lucro do cartório, mas a remuneração deles pode chegar a 90,25% do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal, que atualmente é de R$ 39,2 mil – uma pequena fortuna no interior do Maranhão, estado em que a renda média mensal é de R$ 636, segundo dados do IBGE.
Na denúncia feita ao CNJ, as associações reclamavam que a desembargadora Sarney, então corregedora, deixou de nomear como interinos os substitutos legais e chegou a indicar pessoas que sequer eram titulares em outra serventia, como exige o próprio Código de Normas da Corregedoria Geral do Tribunal do Maranhão.
Entre as nomeações questionadas, duas envolvem parentes de outros magistrados. Em março de 2014, a desembargadora Sarney designou a ex-esposa do desembargador José de Ribamar, Kamilly Borsoi Barros, para ser interventora em um dos cartórios de Imperatriz, o 3º Ofício Extrajudicial, cuja arrecadação naquele ano foi de R$ 1,2 milhão. Até então, Barros respondia pela pequena serventia de Brejo de Areia, cuja arrecadação anual não chegou a R$ 70 mil em 2014. Sarney jamais explicou o motivo do afastamento do titular do cartório em Imperatriz, como apontou o conselheiro do CNJ Carlos Levanhagem. Até hoje, Barros administra os cartórios das duas cidades, que ficam distantes mais de 400 km entre si.
Já Ana Carolina Terças de Almeida Abdalla, filha do juiz José Eulálio Figueiredo de Almeida e nora do desembargador Megbel Abdala Tanus Ferreira – aposentado compulsoriamente por suspeita de vendas de sentenças – foi designada pela desembargadora Sarney como interina do 1º Ofício Extrajudicial de Chapadinha em abril de 2014. Até então, ela era titular no cartório do município de Governador Newton Belo, cuja arrecadação anual havia sido de R$ 37 mil naquele ano. Já o cartório de Chapadinha arrecadou mais de R$ 600 mil no mesmo período. Essa nomeação, no entanto, acabou revogada pelo CNJ.
A denúncia foi analisada pelo conselheiro do CNJ Arnaldo Hossepian, que determinou ao todo seis anulações de nomeações feitas pela desembargadora e mandou a corregedoria definir políticas de transparência na escolha de interventores e interinos. Terminados os seus dois anos como corregedora, Sarney voltou ao seu posto regular como desembargadora. Arouche, Barros, Abdalla e todas as outras pessoas beneficiadas pelas nomeações da desembargadora Sarney podem dizer: nada é melhor do que ter uma ajudinha do judiciário.
Correção – 8 de setembro, 10h45
Diferentemente do informado anteriormente, Ana Carolina Terças de Almeida Abdalla não é filha do juiz Rodrigo Otávio Terças Santos. A informação foi corrigida.
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