Marie Claire, Nova, Claudia, Manequim. Essas eram as revistas de consultório às quais eu tinha acesso quando ia ao dentista, ao médico e à costureira onde minha mãe me levava quando pequena, lá no bairro Bandeirantes, em Contagem, Minas Gerais. Folheava, achava bonitos os modelos mais sofisticados, mas ficava com os mais básicos mesmo. Mais em conta.
Cresci, comecei a trabalhar e continuei a ver as mesmas revistas quando ia ao médico. Dicas de beleza, receitas, conselhos sobre relacionamento, notícias sobre TV. Continuava uma coisa distante, mas boa para matar o tempo.
Demorou até eu entender por que me parecia ser algo distante.
Com as redes sociais, me reaproximei das revistas que não comprava. E tive a surpresa de notar que a distância entre nós diminuiu – muito. Entre publicidade de bolsas e sapatos de marca na revista Marie Claire, há também propaganda de maquiagem para pele negra, entrevistas com cientistas políticas, matérias sobre a resistência indígena e política feitas por mulheres. Há ainda denúncias sobre racismo, assédio e abuso sexual. Definitivamente, sou o público-alvo agora. Quis entender como essas mudanças ocorreram.
Conversei com a Paola Deodoro, editora sênior de Beauty Tudo da Marie Claire. A gaúcha de Porto Alegre passou pelo maior jornal do estado, Zero Hora, fez rádio, TV e internet. Especializou-se na Parsons, a melhor faculdade de moda dos EUA, e passou pelo site IG e pelas revistas Glamour, Criativa, Cosmopolitan e Trip até chegar à Marie Claire. “Eu sempre, a preta, entrando em lugares que as pessoas não esperavam que eu estivesse”, diz Paola, que gerencia 40 pessoas.
Cecilia Olliveira – Eu lia a Marie Claire anos atrás e hoje me parece outra revista. O que aconteceu, como e por quê?
Paola Deodoro — A Marie Claire é uma revista grande dentro de um grupo grande. A gente não deu muita bola fora, porque nos dão espaço para caminhar. Isso também não refletiu em nenhuma mudança financeira, o que é importante. Teve uma capa, com a Bruna Linzmeyer, sem depilar a axila. Não foi uma edição super aceita, porque as pessoas têm sérias restrições com a não depilação, e a gente achou que podia acabar até perdendo uns patrocínios e tal. E até perdemos. Mas ganhamos outros, com empresas grandes, que têm grana, vontade de investir e discursos mais alinhados. Eu acho, então, que teve uma troca de público. Muita gente que lia Marie Claire não lê mais hoje, porque não se adapta, mas tem outros públicos. Então crescemos muito. O impresso diminuiu pouco, o que é bizarro em uma época que é tudo tão digital. Mas os meios digitais cresceram muito, muito mesmo. A Laura Ancona é diretora de redação, e a Maria Laura Neves é editora-chefe. São feministas, sensíveis a causas caras às mulheres. Elas têm esse olhar da mulher social. Hoje, tem muita coisa que acontece na Marie Claire naturalmente, como deixar de usar termos específicos misóginos, racistas e homofóbicos, que usávamos antes.
Como são as reuniões de pauta? Como são recebidas pautas que tempos atrás seriam “fora dos padrões”?
Agora, por exemplo, estamos fazendo a edição de outubro que tradicionalmente é uma edição de “prepare-se para o verão”. Então, era aquela coisa de corpo do verão, vamos malhar, fazer dietas, perder quilos etc. Quando eu entrei já não era mais assim. Já era uma coisa sobre bem-estar, era yoga, tinha a Gaby Amarantos, a Isabeli Fontana. Eram pessoas. Quatro capas com pessoas que já estavam nesta onda de bem-estar. Agora com as mudanças em relação à pandemia, acabou que a gente usou esse mesmo olhar para entender como as pessoas estão se aceitando sem pintar o cabelo, deixando de fazer as unhas – e tudo bem. É uma conversa muito sincera porque é o jeito das pessoas que trabalham lá. Durante muito tempo, as revistas femininas foram compostas por pessoas iguais, iguais, absolutamente iguais. Pensavam iguais, se vestiam iguais, tinham o mesmo cabelo e, supostamente, era um lugar de vanguarda, de mostrar coisas diferentes etc.
‘Durante muito tempo, as revistas femininas foram compostas por pessoas iguais, iguais, absolutamente iguais. Pensavam iguais, se vestiam iguais, tinham o mesmo cabelo’.
Fui contratada para criar o Beauty Tudo, uma plataforma de resenhas de produtos de beleza, avaliados por uma turma super diversa. A equipe tem 40 pessoas. Tem homem, tem mulher, tem branco, tem preto, tem alto, tem baixo, tem gordo, tem magro, tem velho, tem jovem. Muitos tipos de pele, muitos tipos de cabelo. A gente faz uma grande mapeamento dos produtos de beleza que circulam no Brasil.
As mudanças nas pautas então são reflexo da mudança na equipe?
Cada editora é responsável por sua área, por levar as ideias das pautas, e o mix das editoras é bem diverso. Tem questões que são questões de todo mundo. Por exemplo, a gente não trabalha mais, só em raras exceções com homens. Normalmente é fotógrafa, é maquiadora, é stylist. Essa é uma maneira de equilibrar um pouco o mercado. Tem muitos maquiadores homens excelentes. Mas optamos por fazer esse recorte para conseguir colocar mais mulheres na vitrine.
Tem um consciente coletivo de toda equipe pensando nessas pautas, na diversidade, na inclusão. Todo mundo levanta essa bandeira. Essa questão meio que foi resolvida a partir da contratação das pessoas, tem pouca gente que está há muito tempo lá, deu uma renovada assim. Quando a Laura virou diretora, ela mexeu bastante na equipe de acordo com as coisas que ela acredita. Então, nas reuniões de pauta, essas mudanças vão acontecendo. Por exemplo, a edição de outubro, que era a edição do corpo de verão há quatro anos atrás, já não é mais assim.
A melhor coisa do mundo é poder transmitir essa sensação e abrir a possibilidade para as pessoas entenderem que é possível, que dá para fazer, que tem espaço. Cada vez mais, tem esse olhar democrático.
Hoje você é uma pessoa com poder de decisão e pode gerenciar mudanças. Você já foi liderada por pessoas iguais a você?
Nunca na minha vida, em nenhuma situação, eu fui liderada por uma mulher negra, uma pessoa negra, nem homem e nem mulher. Nunca, jamais, nem perto. Essa semana eu tive uma reunião com a diretora da Marie Claire UK, e ela é negra. Fiquei feliz em ver. Andrea Thompson revolucionou a Marie Claire lá, que não é mais impressa, é só digital. Ela tem um monte de projetos e é uma mulher negra.
Sempre fui a pessoa responsável por trazer as questões sobre negritude ou diversidade para as equipes com as quais trabalhei na minha vida inteira. Eu tive poucos colegas negros, raríssimos. Trabalhei em revistas femininas em quase toda minha carreira, e a maioria dos chefes eram mulheres. Geralmente o presidente ou diretorzão é homem.
Moda é uma editoria onde os padrões são muito rígidos, inclusive para cobertura. Você já se sentiu “inadequada”? Como?
Na Cosmopolitan, a gente causava nos eventos. Uma vez, uma marca francesa lançou uma base. A história era que havia uma gama ampla de cores, mas nenhuma funcionou em mim e nem perto de funcionar. Ficou uma situação super constrangedora na hora. Era uma maquiadora gringa, e ela não sabia o que fazer. A gente meio que brincou, passou uns iluminadores. Na hora disfarcei para não ficar uma situação ruim, mas a gente não publicou [minhas fotos].
E isso mudou?
Nessa edição de outubro, fizemos sobre a Fenty Beauty, a marca de maquiagem da Rihanna, que chegou no Brasil. Não foi a primeira marca que ampliou a gama de tons, mas creio ter sido a primeira marca que teve 50 tons de base. Todo o marketing em cima, um olhar de celebridade, forçou o mercado a se adaptar. Antes mesmo de chegar ao Brasil, ela já tinha trazidos benefícios, porque algumas marcas abriram o olho e começaram a ampliar a linha de cores de base e corretivo, que é meio básico. A marca chegou em agosto. Agora em setembro, tivemos uma exclusiva com eles, com a maquiadora oficial. Eles escolheram a Marie Claire.
‘Acho importante aprendermos a reconstruir alguns padrões’.
Hoje, quando querem tratar de diversidade, somos naturalmente a primeira opção. A revista se transformou. Conquistamos esse lugar. Dá para entender que a gente faz isso com um propósito. Produzimos também um editorial fotográfico com a Fenty. Em seguida, colocamos marcas que são feitas especificamente para a pele negra que são de empreendedoras negras brasileiras. Foi muito legal, um momento muito especial de exaltar essas mulheres que estão na batalha.
No mês passado a capa foi uma mulher negra. Este mês também. Essas mudanças vieram para ficar?
Esse editorial da Fenty ficou lindo demais. É uma menina preta retinta linda, sonho de pessoa. A outra, mais clara, com cabelo descolorido, afro-indígena, com esse tom meio avermelhado de fundo, com a cara de preta, é uma loucura. É isso que eu quero fazer. Eu quero que essas pessoas estejam nas páginas da revista. Quero que as pessoas que não se sentem representadas se sintam representadas. Mas quero também que quem, em tese, não tem nada a ver com o rolê, olhe para isso e ache bonito, entenda e abra seus olhares, tenha uma visão mais generosa em relação à beleza. Entenda que beleza não é única, não é particular, não é privilégio de ninguém, que existem mil belezas e que beleza é feito em cima do que você construiu. Acho importante aprendermos a reconstruir alguns padrões.
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