O programa Pânico no Rádio foi ao ar com uma novidade na última segunda-feira de janeiro de 2019: a estreia de Felipe Ferreira, ex-militante do Movimento Brasil Livre, o MBL, na bancada. Ferreira chegava a um dos principais produtos da reacionária rádio Jovem Pan após se tornar uma celebridade da internet como integrante do canal de humor disfarçado de noticiário chamado Jacaré de Tanga.
Com apenas 20 anos de idade, Ferreira reunia milhares de seguidores no YouTube, produzindo informações – não raro distorcidas ou falsas – que alimentavam a base bolsonarista na internet. Além de ganhar dinheiro com a propaganda que o Google veiculava no canal, o Jacaré de Tanga também recebeu pagamentos do PSL (então o partido de Jair Bolsonaro) e pelo PRTB, ainda hoje legenda do vice Hamilton Mourão.
Em um grupo num aplicativo de mensagens, os líderes nacionais do MBL se agitaram com a aparição de Ferreira no Pânico. Arthur do Val (nome do youtuber e empresário Mamãe Falei, deputado estadual pelo Patriota e pré-candidato à prefeitura de São Paulo) e os irmãos Renan e Alexandre Santos, fundadores do MBL, começam a tramar um plano para tirar o comediante do Jacaré de Tanga da Jovem Pan.
Era um ódio antigo. Ferreira saiu do MBL atirando. Gravou vídeos acusando os ex-colegas, entre outras coisas, de serem vassalos do governo de Michel Temer e terem o “nome sujo”, motivo pelo qual Alexandre e Renan Santos não teriam registrado o movimento quando o fundaram (Ferreira não apresentou provas das acusações). Além disso, o fundador do Jacaré de Tanga, o advogado Cléber dos Santos Teixeira, acusou Fernando Holiday de caixa dois na campanha que elegeu o jovem vereador em São Paulo. Teixeira havia sido defensor engajado de Holiday.
A briga entre os ex-aliados no MBL chegou aos tribunais após Ferreira publicar no YouTube uma ligação a Alexandre Santos em que finge ser coordenador do MBL em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, e pergunta se o movimento havia recebido dinheiro do governo Temer. Santos processou Ferreira, perdeu na primeira instância em agosto de 2019, mas recorreu da decisão.
Na sua discreta estreia no Pânico, a principal intervenção de Ferreira foi perguntar ao cantor Fiuk sobre o posicionamento político dele. Mamãe Falei avaliou que aquilo não podia continuar e começou uma campanha de bastidores para tirá-lo do ar. Fez contato com Paula Krausche, diretora do programa, e, assim que recebeu resposta, enviou um áudio aos colegas do grupo (clique no botão play para ouvir):
Mamãe Falei
O deputado botou a cara na briga, mas não entrou nela sozinho. Antes de falar com Krausche, fora insuflado por Alexandre Ferreira, o Salsicha, a colocar a diretoria do Pânico contra a parede:
Alexandre Ferreira (Salsicha)
Os áudios fazem parte de uma série de conversas enviadas ao Intercept pela mesma fonte do arquivo da Vaza Jato. Elas vieram no mesmo período, mas num pacote separado, e não guardam relação com as conversas dos procuradores da República e do ex-juiz e ex-ministro bolsonarista Sergio Moro.
Eles foram trocados por pessoas públicas e trazem informações relevantes sobre a atuação do MBL, um grupo de extrema direita que nasceu nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2013. A análise dos áudios demandou meses de trabalho e também envolveu apuração com fontes externas e cruzamento de informações e eventos citados nas próprias conversas. Todos os áudios usados na reportagem são reproduzidos na íntegra, com o mesmo conteúdo dos enviados ao Intercept, sem cortes ou edição.
Nelas, um político do Movimento Brasil Livre, candidato a prefeito de São Paulo, confessa uma falsa acusação de crime para atacar um oponente e interferir em um veículo de comunicação. Nos mensagens de voz que se seguiram, a atitude de Mamãe Falei não é criticada por nenhum dos demais líderes do movimento.
Apesar de, em seu manifesto de fundação, defender uma “imprensa livre e independente”, o MBL agiu tal qual fazem caciques partidários quando contrariados com o espaço aberto a um adversário: interferiram na liberdade e independência que dizem defender.
Duas mentiras
Apesar de falar com a diretora do Pânico, Mamãe Falei não estava satisfeito. Ele queria falar com o presidente da rádio, Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o Tutinha, que estava em viagem. Quando finalmente recebeu uma resposta de Tutinha, Mamãe Falei voltou ao grupo. Em uma gravação de pouco mais de um minuto, ele relatou a conversa aos colegas e confessou que havia mentido sobre Ferreira ao dono da Jovem Pan, acusando o desafeto de crimes:
Mamãe Falei
Mamãe Falei atribuiu a Ferreira um ataque que foi realizado por cinco homens à sede do MBL na Vila Mariana, em São Paulo, em dezembro de 2016. Câmeras registraram a ação: os invasores chutam a porta do prédio onde fica o escritório do movimento e quebram os vidros de uma Kombi utilizada para a campanha eleitoral de Holiday. O veículo, aliás, é apontado pelo ex-advogado de Holiday como uma das doações à campanha não-declaradas pelo candidato. Até hoje, não há qualquer evidência da participação de Ferreira no crime.
A relação da cúpula do MBL com Ferreira, na época do ataque, era ótima. A tal ponto que, cinco meses depois do episódio, Mamãe Falei e Kataguiri participaram de evento organizado e apresentado por Ferreira na faculdade em que estudava.
Àquela época, a imprensa noticiou que o MBL iria registrar boletim de ocorrência sobre o crime. O Intercept foi atrás do documento nas três delegacias próximas à sede do movimento. Em nenhuma delas, porém, existe registro do caso. Encontramos boletins de ocorrência feitos por membros do MBL, mas nenhum de 2016, ano da agressão. Perguntamos ao movimento porque não houve registro policial daquele caso e da suspeita lançada sobre Felipe Ferreira. O MBL, porém, disse que “não comenta material especulativo e supostas conversas privadas entre seus integrantes ou deles com jornalistas e políticos”.
Na mesma mensagem de áudio a seus colegas de movimento, Mamãe Falei sugeriu que Ferreira estava envolvido no que chamou de “polêmica” da viagem de deputados do PSL à China. Tratou-se de uma comitiva de parlamentares recém-eleitos pelo partido de Bolsonaro que foi à Ásia a convite do governo comunista. A viagem foi criticada pelo presidente, seus filhos e pelo guru bolsonarista Olavo de Carvalho. Mas Felipe Ferreira não estava na comitiva. Perguntamos a Mamãe Falei sobre a que envolvimento ele fez referência. Como os colegas, porém, ele não quis responder às várias questões que enviamos ao MBL, que somam 14 páginas em formato A4.
Obcecado com a ideia de sabotar o rival e interferir na programação da Jovem Pan, Mamãe Falei pediu que Kataguiri e a deputada federal Joice Hasselmann, do PSL de São Paulo, também pressionassem o apresentador Emílio Surita.
‘num botei no cu de uma vez’
Ainda sem uma resposta definitiva da Jovem Pan, Mamãe Falei passou a conjecturar sobre o que dizer a Tutinha caso Ferreira se tornasse membro fixo do Pânico:
Mamãe Falei
Em seguida, na mesma mensagem, ele relata o teor de uma mensagem que enviou a Joice Hasselmann:
Mamãe Falei
O drástico plano de cortar relações com uma rádio simpática ao MBL, contudo, não precisou ser ativado. Internamente, Paula Krausche, a diretora do programa, comprou a briga da cúpula do movimento e, depois de falar com Tutinha, informou-os de que o chefão havia mandado deixar Ferreira de molho por uns dias, segundo Mamãe Falei.
Em novo áudio, Mamãe Falei descreveu aos colegas a conversa que tivera com a diretora:
Mamãe Falei
No mesmo áudio, Mamãe Falei traça a fase seguinte: colocar no Pânico dois humoristas alinhados à cúpula do MBL:
Mamãe Falei
Paula Krausche, diretora do programa, tranquilizou pessoalmente Mamãe Falei:
Paula Krausche (Paulinha)
Enviamos perguntas a respeito do caso à direção da Jovem Pan, Tutinha, Surita e Krausche. Eles disseram que não iriam se pronunciar sobre o caso. Mas o fato é que o plano do MBL funcionou: Ferreira nunca mais voltou ao Pânico.
Para o lugar dele, a Jovem Pan contratou para o programa as duas indicações de Mamãe Falei. André Alba é comediante reacionário mais conhecido por ter publicado um vídeo no Twitter em que alguém dispara o que parece ser uma arma de fogo para o ar, de sua janela num bairro residencial de São Paulo, durante um panelaço contra Jair Bolsonaro. Depois da repercussão ruim do post, Alba disse que o vídeo não era dele. Ele é amigo do deputado e candidato a prefeito Mamãe Falei.
André Marinho é filho do empresário carioca Paulo Marinho, suplente de Flávio Bolsonaro no Senado e imitador do presidente. Marinho admitiu ter cedido dois cômodos de sua casa para a comunicação da campanha e das redes sociais do PSL nas eleições de 2018.
A CPMI das Fake News desconfia que o local era um “QG de fake news”. Ele nega e hoje é adversário dos Bolsonaro. Numa entrevista, Marinho disse que Flávio recebeu informações sigilosas da Polícia Federal sobre investigações em andamento no gabinete dele mesmo na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Alba levou ao Pânico uma gama de imitações que vai de Olavo de Carvalho aos companheiros de emissora. Entre os ouvintes, se tornou um sucesso e ganhou vídeos que compilam seus “momentos brilhantes” – que incluem piadas de cunho sexual com Fefito, ex-comentarista homossexual do Morning Show, outro programa da Jovem Pan.
André Marinho ganhou fama com as imitações Jair Bolsonaro. “Nós temos agora o André Marinho e o Alba, que são os tops do momento”, elogiou Surita em um programa de setembro de 2019.
Enviamos perguntas a Felipe Ferreira, André Alba, André Marinho e Joice Hasselmann. Nenhum deles as respondeu. O espaço está aberto para comentários.
Em sua primeira aparição no Pânico após a contratação das suas duas indicações, Arthur do Val disse: “Hoje a bancada tá cheia, hein? Ilustres convidados aqui”, se limitou a dizer.
Sua missão no Pânico já estava cumprida.
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