Frequentemente, Rosa Elbira Coc Ich preparava o almoço na cozinha externa da comunidade Lote Ocho, na Guatemala, enquanto os helicópteros passavam sobrevoando com suas rajadas de ar ensurdecedoras. As pás do rotor espalhavam tomates, feijões, ervas e tortilhas sobre o solo castanho-avermelhado. Os helicópteros pairavam sobre as cabanas da aldeia, formando nuvens de poeira e terra e derrubando no chão as chapas de ferro e folhas de palmeira usadas como telhados.
Ich se recorda de que os helicópteros sobrevoavam diariamente, às vezes até mesmo duas vezes por dia, a partir do final de 2006 e até 2008. Agora com 35 anos, ela contou ao Intercept que corria para dentro de sua cabana, morta de medo de que ela e os demais moradores da aldeia estivessem prestes a ser expulsos a força de suas terras pela Compañía Guatemalteca de Niquel [Companhia Guatemalteca de Níquel], a CGN: uma empresa guatemalteca de mineração com a qual Lote Ocho, e pelo menos 18 outras comunidades indígenas, tem disputado terras desde o começo de 2005. Os helicópteros também a lembraram dos helicópteros militares que havia visto quando era pequena, já no final dos 36 anos de guerra civil na Guatemala, durante os quais os militares praticaram genocídio contra diversos grupos indígenas.
Recordar Ich do passado genocida de seu país e fazê-la temer o uso da força no futuro parece ter sido mesmo o objetivo.
Na época, a CGN era subsidiária da Skye Resources, uma empresa de mineração sediada em Vancouver. Em 12 de outubro de 2006, o vice-presidente de operações da Skye, William Enrico, enviou um e-mail para vários colegas sugerindo formas de lidar com os “invasores”, como eles chamavam os moradores indígenas das aldeias:
“Cesar me aconselhou a fazer mais voos – especialmente de helicóptero. Pode ser bom que os nossos voos regulares circulem sobre áreas importantes, para causar impacto psicológico. Isso não deve nos custar nada demais.”
O homem que deu esse conselho para Enrico foi César Montes, co-fundador do Exército Guerrilheiro dos Pobres, antes um formidável grupo militante de esquerda cujo reduto englobava a região de Ixil, onde, entre 1981 e 1983, os militares praticaram genocídio contra o povo Ixil. Refugiados Ixil que fugiam para as montanhas foram metralhados por atiradores em helicópteros. Montes, que aparentemente atuou informalmente como consultor para a Skye e a CGN, certamente detinha uma profunda compreensão do “impacto psicológico” que sobrevoos de helicóptero teriam sobre os indígenas.
Os sobrevoos sobre Lote Ocho foram revelados por documentos corporativos anteriormente sigilosos, que se tornaram públicos em uma ação judicial no Canadá. Esses documentos, até agora pouco noticiados, mostram que o assédio por helicóptero foi apenas uma parte de uma campanha muito maior promovida pela Skye e pela CGN para expulsar as comunidades indígenas de uma enorme faixa de terra que as empresas nunca tiveram qualquer direito legítimo de explorar. Esse esforço se concentrou em tentativas frequentemente bem sucedidas de influenciar, manipular ou subornar as instituições públicas mais poderosas da Guatemala, incluindo o judiciário, as forças de segurança – e até mesmo a presidência. A campanha culminou em duas ondas de remoções de diversas aldeias indígenas, nas datas de 8, 9 e 17 de janeiro de 2007. Onze mulheres de Lote Ocho teriam sofrido estupro coletivo por policiais, soldados e seguranças da CGN, durante o último despejo. Ich é uma dessas mulheres.
Ela e as demais mulheres agora estão processando a Hudbay Minerals Inc., uma empresa de mineração com sede em Toronto que adquiriu a Skye em 2008, sucedendo-a na responsabilidade jurídica. Durante o processo em curso, os advogados das mulheres obtiveram os e-mails, fotos, e outros documentos mencionados nesta matéria por meio do processo de produção de provas, e os juntaram aos autos como anexos a uma declaração juramentada por escrito [affidavit]. A Hudbay ainda não respondeu formalmente ao depoimento, e a empresa se recusou a responder ao Intercept porque “o assunto em questão está sendo discutido judicialmente”. Mesmo depois de várias solicitações, a CGN não se manifestou, nem respondeu às perguntas enviadas por escrito. Nenhum dos funcionários da CGN ou da Skye com quem o Intercept tentou contato, nem seus associados na Guatemala responderam ou comentaram. Anteriormente, em petições judiciais e materiais de relações públicas, a Hudbay colocou em dúvida as alegações das 11 mulheres, argumentando que os registros do promotor e das autoridades policiais mostram que nenhum segurança da CGN, nem outros seguranças privados, estava presente no despejo de 17 de janeiro – e, na realidade, “nenhum ocupante ilegal estava presente”. Em outras palavras, nenhuma dessas mulheres sequer estava lá, alega a Hudbay.
Os relatos que as 11 mulheres apresentam do trauma que os estupros coletivos teriam causado são inimagináveis. Cinco estavam grávidas na época; quatro sofreram abortos, e uma, que estava a três dias da data prevista para o parto quando o estupro coletivo teria ocorrido, declarou em depoimento que deu à luz um natimorto “todo azul ou verde”. Casamentos foram irremediavelmente destruídos. A comunidade empobrecida acabou se dividindo e se afastando, à medida que alguns de seus membros aceitavam empregos na CGN, mesmo sabendo que a empresa teria intimidado e assediado as mulheres para pressioná-las a desistir da ação. Treze anos após as remoções, as mulheres afirmam viver com dor crônica e sofrimento emocional contínuo. Algumas vezes, as duas coisas se misturam. Em um depoimento dado em 2017, uma das mulheres declarou: “Alguma coisa entrou em mim, e é um medo. É um terror, e uma dor física com a qual eu vivo o tempo todo.”
O Legado da Terra
Até 17 de janeiro de 2007, Lote Ocho, uma aldeia de aproximadamente 100 casas, se equilibrava no alto de uma montanha, e as famílias que ali moravam tinham uma vista panorâmica impressionante dos verdes planaltos da Guatemala, e, “ao longe, do espelho cintilante do Lago Izabal”, como descreveu o fotojornalista Roger LeMoyne. Lote Ocho era isolada, a aproximadamente 45 minutos de carro, por uma traiçoeira estrada acidentada e sem manutenção, da cidade mais próxima, Cahaboncito. Mas as pessoas de Lote Ocho raramente iam à cidade. Elas viviam da terra.
Um vínculo íntimo e espiritual com a terra está no centro da visão de mundo dos moradores de Lote Ocho, que, sendo Maya Q’eqchi’, pertencem a um dos mais de vinte grupos indígenas da Guatemala que descendem da civilização pré-colombiana maia. Porém, em 2004, a Skye recebeu autorização para começar a atuar em uma extensa área no nordeste da Guatemala que abrigava diversas comunidades Maya Q’eqchi’, incluindo Lote Ocho.
No começo daquele ano, a Skye tinha adquirido da empresa canadense de mineração INCO os direitos sobre a mina de níquel a céu aberto Fenix, localizada perto da cidade de El Estor, de maioria maia, às margens do Lago Izabal. A Skye também comprara a participação de 70% da INCO em sua subsidiária EXMIBAL, que a Skye rebatizou de CGN. Mas como parte do negócio, a Skye adquiriu também conflitos de longa data sobre as terras deixados pela INCO, e o passado violento da EXMIBAL.
A INCO iniciou, com a ditadura militar da Guatemala, as negociações relativas a uma possível mina de níquel a céu aberto em 1960, o ano em que estourou a guerra civil. Depois que um engenheiro contratado pela INCO contribuiu para a elaboração de um novo código de mineração que permitia “mineração a céu aberto”, até aquele ponto proibida pela então suspensa constituição da Guatemala, foi concedida à EXMIBAL uma licença de mineração de 40 anos sobre uma área de 385 quilômetros quadrados, em 1965. No ano seguinte, o Coronel Carlos Arana Osorio lançou uma ostensiva campanha de contra-insurgência na região, que lhe renderia o nome de guerra de “açougueiro de Zacapa”. Durante essa campanha, as forças militares expulsaram camponeses da terra que viria a se tornar o local das instalações da EXMIBAL. Entre 3 mil e 8 mil pessoas foram mortas, a maior parte delas camponeses Maya Q’eqchi’ sem envolvimento em combate. Nos anos 1970 e 1980, veículos da EXMIBAL foram usados para atirar contra a população civil local; em pelo menos um dos casos, a polícia estava envolvida. Em 1978, funcionários da EXMIBAL e soldados executaram quatro pessoas na cidade de Panzós, onde, um mês antes, os militares haviam massacrado camponeses Maya Q’eqchi’ que manifestavam suas reivindicações pela terra.
Talvez nunca se venha a conhecer a completa extensão da violência da EXMIBAL: “Eu sei pessoalmente de ainda mais casos que não estão documentados e que estão guardados sob o sigilo confessional”, contou Daniel Voigt, padre e então diretor de uma organização de proteção dos direitos Maya Q’eqchi’, ao diretor-executivo de operações da Skye, em setembro de 2006, em um e-mail que foi trazido à tona pela ação judicial no Canadá. “O que permaneceu foi uma história de dor e desespero.”
Foi com esse pano de fundo histórico que a Skye e a rebatizada EXMIBAL, CGN, adquiriram a licença de exploração de uma área de 259 quilômetros quadrados que abrangia pelo menos 19 assentamentos Maya Q’eqchi’ em 13 de dezembro de 2004. A embaixada canadense na Guatemala dera uma mãozinha à Skye: “Depois de meses de negociação, durante os quais a embaixada desempenhou um importante papel de apoio, o Ministério Guatemalteca de Minas e Energia emitiu uma licença de exploração de 3 anos para a Skye Resources”, escreveu um conselheiro da embaixada canadense a seus colegas, em 16 de dezembro de 2004, em um e-mail até então não divulgado, obtido pelos advogados das mulheres. “Qualquer vitória dos interesses da mineração responsável é uma vitória dos investidores canadenses.”
A Corte Constitucional da Guatemala, porém, veio a decidir depois que a licença havia sido concedida ilegalmente. O governo da Guatemala não havia consultado os povos indígenas que ocupavam ou utilizavam as terras antes da concessão da licença, o que seria exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho da ONU, a Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais, de que a Guatemala é signatária desde os Acordos de Paz de 1996. A OIT considerou em 2007 que a licença infringia a Convenção 169, e a Corte Constitucional chegou à mesma conclusão em 18 de junho de 2020.
“O que permaneceu foi uma história de dor e desespero.”
Diante dessa história, era praticamente inevitável que as perfurações exploratórias no começo de 2005 desencadeariam diversos conflitos entre as empresas e as comunidades locais, que alegavam que a CGN estava invadindo suas terras e destruindo o meio ambiente, poluindo inclusive suas fontes de água. No entanto, em 17 de abril de 2006, a Guatemala concedeu à Skye e à CGN outra licença — que mais tarde foi considerada inválida pelo Tribunal Constitucional — que lhes permitiu começar a mineração.
Em resposta às operações cada vez mais intensas da CGN, cinco grupos Maya Q’eqchi’ compostos de aproximadamente 300 famílias se mudaram para as terras reivindicadas pela empresa em 17 de setembro de 2006. Eles defendiam estarem recuperando as terras que a INCO lhes teria roubado mais de 40 anos atrás. Ao longo dos dois meses seguintes, esses grupos aumentaram para quase mil famílias.
Do momento em que esses assentamentos foram criados até as remoções em janeiro de 2007, voltadas para alguns dos assentamentos recentes mas que também atingiram uma outra aldeia existente há décadas, diversas pessoas de ambos os lados do conflito insistiram com as empresas para resolverem o impasse por meio do diálogo, segundo os e-mails que constam dos documentos judiciais.
“Qualquer tentativa de remover os moradores da aldeia à força terminaria em tragédia”, disse Vogt, o padre, em um e-mail para a direção da Skye em 22 de setembro de 2006. Apenas três dias antes das remoções, o próprio consultor da CGN enviou um e-mail a um dos gestores da empresa: “Como já dissemos, NUNCA haverá uma remoção positiva.”
Muito embora a administração da Skye declarasse que as “invasões” não estavam afetando as operações, principalmente porque a maior parte delas “não estava em áreas essenciais do projeto”, a empresa decidiu que, se os moradores não saíssem por conta própria, a Skye e a CGN os expulsariam.
“Mantenha o presidente informado”
Dois homens da cidade de El Estor estavam no alto de uma montanha remota quando dizem ter visto cerca de 50 pessoas abrirem caminho à força nas terras da CGN em 23 de setembro de 2006. A aldeia de Lote Ocho estaria então situada nas terras onde esse grupo teria “entrado à força”, indicando que Lote Ocho seria outra ocupação de terras. Pelo menos é isso que os homens alegam em declarações escritas juntadas aos autos na justiça da Guatemala pela CGN no final de 2006.
Essas declarações “afirmavam falsamente que os declarantes teriam testemunhado, com os próprios olhos, membros da comunidade de Lote Ocho usando a força para ocupar a aldeia, quando na realidade os declarantes nunca haviam estado em Lote Ocho”, argumentam em sua própria declaração escrita os advogados das 11 mulheres.
“Isso é importante, porque se trata dos documentos iniciais, que começaram tudo”, explicou Cory Wanless, que representa as mulheres em juízo juntamente com Murray Klippenstein. “Isso compromete todo o embasamento legal do pedido de remoção, para começar.”
Os dois advogados vêm litigando nesse e em outros dois casos contra a Hudbay (a empresa que adquiriu a Skye) desde 2011. Os processos judiciais ganharam cobertura internacional porque podem estabelecer um precedente para facilitar a responsabilização de corporações multinacionais em seus países de origem por crimes praticados no exterior.
Ele alega que as declarações que iniciaram os procedimentos de remoção não são idôneas por diversos motivos. Mais importante, Lote Ocho se localiza na mesma região há décadas; a aldeia não foi assentada naquele dia de setembro de 2006, embora várias outras famílias tenham ingressado em Lote Ocho naquele mês como parte de um movimento mais amplo de reivindicação. E se 50 pessoas ingressaram na região “à força”, por que foram esses dois homens – que por acaso estavam passando pelo topo de uma montanha isolada – que prestaram as declarações juramentadas, e não um empregado da empresa contra quem esse grupo supostamente teria usado a força?
Essas ações judiciais poderiam estabelecer um precedente para facilitar a responsabilização de corporações multinacionais em seus países de origem por crimes praticados no exterior.
Além do fato de que essas declarações parecem altamente improváveis por si sós, elas também são praticamente idênticas a duas outras apresentadas pela CGN, cada uma delas supostamente listando os nomes dos ocupantes de diferentes aldeias que a Skye e a CGN pretendiam remover. As declarações reciclam a mesma lista de nomes, apenas com diferenças mínimas. Examinadas conjuntamente, elas afirmam que os mesmos indivíduos ocuparam simultaneamente três assentamentos distintos. Wanless considera que a CGN protocolou essas declarações porque, na justiça disfuncional da Guatemala, “isso é suficiente para resolver o problema”.
Eles de fato resolveram o problema, e Wanless pode ter razão quanto aos motivos para isso. Há muitas vezes uma “falta de diligência por parte do Ministério Público e das autoridades judiciais na investigação de conflitos [fundiários]; mandados de remoção são frequentemente concedidos após uma análise superficial dos fatos”, consta de um documento apresentado à ONU pela Anistia Internacional.
Muitos juízes “só levam em conta o título que o setor privado apresenta”, disse Ramón Cadena, diretor do Escritório Centro-Americano da Comissão Internacional de Juristas. Isso também facilita “a pressão das entidades do setor privado”, disse ele.
Embora as declarações tenham sido aceitas, a CGN teve dificuldade em obter a ordem de remoção de Lote Ocho. No dia 1º de dezembro de 2006, Enrico, o executivo da Skye, enviou uma atualização por e-mail a outros gestores da empresa.
“Precisaremos de pressão sobre o juiz de Puerto Barrios”, escreveu ele. “Temos tudo combinado.”
Uma semana depois, o juiz concedeu a ordem de remoção, de acordo com a declaração apresentada pelos advogados das mulheres.
Mas a CGN logo teve que se livrar de outro obstáculo legal: os moradores da aldeia e um grupo de proteção aos direitos indígenas, o CONIC, tinham ingressado em juízo e solicitado um amparo — semelhante a uma liminar — para impedir temporariamente as remoções iminentes, porque não haviam sido adequadamente notificados delas. No final de dezembro, parecia provável que o juiz deferisse o pedido, o que teria adiado as remoções por pelo menos seis meses.
Segundo alguns e-mails juntados aos autos, os gestores da CGN acionaram seus “contatos” na Policía Nacional Civil, a Polícia Federal da Guatemala, para verificar se a PNC poderia realizar as remoções antecipadamente, antes que o amparo pudesse ser concedido. A polícia, porém, respondeu que muitos agentes estavam de férias. Além disso, “eles disseram que a ordem para acelerar o cumprimento dos mandados teria que vir de um nível muito alto, do presidente ou do ministro do Interior”, escreveu Monzón.
Monzón ligou para Rodolfo Sosa, um advogado da CGN, que disse que iria tentar falar com o presidente da Guatemala, Óscar Berger. Sosa e Berger já foram sócios em um conceituado escritório de advocacia, e a filha de Sosa é casada com um dos filhos do Presidente. Sosa, porém, não conseguiu entrar em contato com Berger. Monzón então entrou em contato com seu “amigo”, o ministro da Defesa, que também não pôde ajudar em razão das férias dos agentes.
Uma vez que essas vias se mostraram becos sem saída, a CGN solicitou ao juízo que a deixasse intervir durante o processo judicial que a CONIC tinha iniciado.
“Esperamos que com essas ações [sic] sejamos capazes de atrasar o processo da CONIC por pelo menos 2 semanas, o que significa que os mandados de remoção serão executados dentro desse período”, escreveu Monzón. Enrico respondeu que era importante manter Rodolfo Sosa informado sobre a “estratégia de desaceleração”, uma vez que “Rodolfo é a nossa via para manter o Presidente informado.”
A “estratégia de desaceleração” funcionou: as remoções ocorreram antes que o amparo pudesse ser concedido.
Os e-mails mostram que a Skye e a CGN tinham formado uma rede de conexões informais da qual se utilizavam para tentar influenciar funcionários do governo. Isso ilustra como o “conluio entre empresas e o Estado” funciona na Guatemala, disse ao Intercept Mariel Aguilar-Støen, professora da Universidade de Oslo. Aguilar-Støen foi co-autora de um artigo de 2016 que examinou como as elites locais muitas vezes participam de projetos de mineração, trabalhando como gerentes de empresas ou advogados, por exemplo, permitindo que as empresas explorem “as redes de contatos que as elites nacionais controlam”, afirma o artigo. A maneira como a CGN se beneficiou de suas conexões “é um bom exemplo de como as empresas de mineração, em particular, operam e como elas obtêm acesso a recursos”, disse ela.
Preto, azul e verde
A CGN teve uma prévia de como as remoções podem se tornar violentas. Na manhã de 12 de novembro de 2006, um promotor público e cerca de 60 policiais apareceram em um assentamento Maya Q’eqchi, de aproximadamente 30 famílias, que estava localizado do outro lado da estrada do complexo habitacional da CGN, nos arredores de El Estor. As famílias tinham se instalado lá no começo da manhã anterior, quando o local foi palco de confrontos com a PNC e funcionários da CGN. Uma desconfortável paz havia reinado desde o fim da manhã, quando agentes do governo encarregados de resolver disputas de terra teriam supostamente chegado a um acordo provisório com alguns líderes dos assentamentos Maya Q’eqchi estabelecidos em setembro. Mas, com a chegada do promotor e da polícia, a situação rapidamente saiu de controle.
Durante o impasse que se seguiu, tornou-se claro que o promotor não tinha um mandado para a remoção, que ele alegava não ser necessário – mas ele estava errado, de acordo com um relatório daquela época elaborado pela Anistia Internacional, que explicava o processo legal para a realização de remoções na Guatemala. O padre Daniel Vogt e um companheiro aparentemente teriam conseguido aplacar a tensão o suficiente para que, ao meio-dia, as famílias saíssem com seus pertences. Mas um conflito eclodiu entre a polícia e os moradores logo depois, e mais tarde, no mesmo dia, a polícia usou gás lacrimogêneo em outro assentamento, próximo à pista de pouso da CGN, para expulsar os habitantes. A polícia então, sem aviso, disparou gás lacrimogêneo em outro assentamento, para expulsar cerca de 200 famílias, segundo um relatório da época elaborado pela organização em prol dos direitos Maya Q’eqchi de que Vogt participa. Durante esses confrontos, bens foram roubados e várias pessoas ficaram feridas, incluindo uma mulher grávida que foi encoberta pelo gás lacrimogêneo, afirma o relatório. Duas pessoas desapareceram. Na tarde seguinte, uma das pessoas desaparecidas foi encontrada inconsciente ao lado de uma trilha, aparentando ter sido gravemente espancada. Houve mais confrontos com a polícia naquele dia.
Cerca de 20 pessoas invadiram o centro de relações com a comunidade da CGN e um hospital recém-reformado, mas ainda vazio, e incendiaram os edifícios. Informes internos da empresa revelam que este grupo era provavelmente o que a gerência da empresa chamou de “jovens manifestantes” que “não tinham relação com os invasores.”
“Mais tarde, à noite, tudo voltou ao normal – um grupo militar foi enviado a EE [El Estor] para proteger nossa equipe”, lê-se em um e-mail da empresa.
Em resposta, um consultor de relações com a comunidade enviou um e-mail afirmando que “ter os militares usados como forças de paz pode se tornar um risco para nós –precisamos nos certificar de criar uma distinção clara entre os agentes de segurança da empresa e os militares.”
Os documentos evidenciam que grandes somas de dinheiro foram pagas às forças de segurança pública por sua atuação nas remoções.
Mas já estava difícil fazer essa distinção, como demonstra um e-mail enviado em 17 de novembro de 2006, poucos dias depois da designação dos militares e das remoções ilegais e violentas. O gerente financeiro da CGN escreveu ao diretor financeiro da Skye: “Nós pagamos Q125.000 para manter os invasores sob controle esta semana”, o que significava aproximadamente US$ 16.447,37 na época.
O dinheiro servira para pagar por quartos de hotel, refeições e combustível de 125 agentes da PNC. A CGN também pagara pelas refeições de cerca de 65 soldados que dormiam no refeitório da CGN por razões de segurança.
O dinheiro para a polícia foi transferido “para a conta pessoal [sic] que está trabalhando para coordenar essas tarefas”, escreveu o gerente financeiro da CGN.
A “conta pessoal” provavelmente pertencia a um dos vários intermediários que a Skye e a CGN mantinham para tirar proveito de suas conexões com a PNC e os militares, de acordo com o depoimento apresentado pelos advogados das mulheres. Um dos intermediários era amigo do segundo comandante da PNC, e outro era um coronel afastado, envolvido em uma “poderosa rede mafiosa no exército e na polícia” na década de 1990, de acordo com a revista Latin American Digital Beat. De outubro de 2006 até, pelo menos, o período das remoções em janeiro, as empresas gastaram cerca de US$ 140.000, e provavelmente muito mais, em pagamentos clandestinos para esses intermediários, que repassavam quase todo o valor às forças de segurança, como mostram inúmeros e-mails, folhas de bônus e planilhas incluídos nos autos.
Enquanto muito era gasto com insumos logísticos, como gasolina e alojamento, certos documentos evidenciam que grandes somas de dinheiro foram pagas às forças de segurança pública por sua atuação nas remoções.
Uma auditoria de segurança e direitos humanos requisitada pela Skye, por exemplo, afirma que “Há boatos envolvendo 1,2 milhões de quetzais” — cerca de US$ 157.895 na época — “canalizados para as forças armadas por sua atuação nas remoções, quando só o que havia sido oficialmente acordado fora apoio logístico, como gasolina.” Esses boatos foram bastante convincentes: “com base nos rumores sobre recursos desviados, a empresa demitiu os agentes que instigaram este tipo de atividade”, observou a auditoria.
Uma planilha mostra “o financiamento total em dinheiro”, em 31 de dezembro de 2006, “para remoções”. Ali estão registrados pagamentos por serviços vagamente descritos como “recursos de segurança para invasões”.
Especialistas jurídicos levantaram a possibilidade de que os simples pagamentos pelos suprimentos logísticos já violassem as leis anticorrupção guatemaltecas e canadenses. Fornecer suprimentos para as forças de segurança pública equivale a suborná-las, uma vez que a Skye e a CGN adquiriram na prática um grau de influência sobre elas, argumenta a advogada guatemalteca Verenice Jerez, que trabalhou na CICIG, uma comissão anticorrupção que contava com apoio da ONU e atualmente está dissolvida. “Neste mundo, nada é de graça”, disse ela. Alan Franklin, canadense especializado em legislação anticorrupção, que trabalha esporadicamente com a Real Polícia Montada do Canadá, confirmou o entendimento de Jerez. Mas Jennifer Quaid, outra especialista canadense, entende que não está claro se os pagamentos teriam ocorrido de forma a violar os termos da legislação canadense que estava em vigor na época. Nenhuma das empresas enfrentou acusação formal por esses pagamentos. A Hudbay e a CGN não responderam às perguntas enviadas pelo Intercept sobre os pagamentos.
Independentemente da existência de violações à legislação, as empresas estavam intensamente envolvidas no planejamento e na execução das operações das forças policiais. Essa estreita relação de trabalho se estendia aos oficiais do mais alto escalão. Em dezembro de 2006, o gerente local da CGN se “articulou” com Rodolfo Sisniega-Otero, filho de um conhecido general e comandante da Brigada Guardia de Honor, uma unidade de elite da polícia militar. E um dia antes dos supostos estupros coletivos, um dos intermediários da CGN fez, juntamente com Edin Palma, um dos chefes da PNC, um voo de reconhecimento sobre as “áreas invadidas”.
A Skye e a direção da CGN também participaram da coordenação das atividades in loco dos soldados e policiais de baixa patente que atuavam efetivamente como parceiros da segurança da CGN. Nas fotos se vê, pouco antes da remoção de 9 de janeiro, dezenas de caminhões e vans da PNC formando uma longa fila ao longo da estrada em frente ao complexo da CGN. Lá dentro, uma caminhonete branca transportava homens “que aparentavam vestir uniformes do exército,” segundo a declaração protocolada pelos advogados das 11 mulheres. As forças de segurança pública e privada se reuniam nas instalações da CGN “na manhã de cada remoção, incluindo a remoção de 17 de janeiro”, alega o depoimento. As fotos também mostram gerentes da CGN, seus intermediários e oficiais da PNC reunidos após a remoção de 8 de janeiro de 2007. Essa foi apenas uma das “sessões de planejamento pré-remoção e avaliações pós-remoção [que] foram realizadas nos escritórios da CGN”, afirma o depoimento.
Os homens armados e mascarados que invadiram Lote Ocho enquanto a chuva caía e o vento soprava às 5 horas da tarde, em 17 de janeiro de 2007, só podiam ser diferenciados por seus uniformes. Os uniformes eram negros, “da cor do céu”, e “da cor das árvores”, relatam as mulheres. Preto, azul e verde: as vestimentas da PNC, da segurança da CGN, e do exército. Outra coisa ajudou a identificá-los: duas das mulheres que são alfabetizadas dizem ter visto o logotipo da CGN nos uniformes azuis.
Essa diferença pouco importava, no entanto, uma vez que os três grupos de homens já teriam se dividido em grupos menores e se reunido quando atacavam, de acordo com os depoimentos das mulheres. Homens de diferentes grupos capturaram uma mulher grávida que estava fazendo tortilhas e a arrastaram para os arbustos, enquanto seus filhos choravam e gritavam, depôs ela. Ela descreveu os homens como um “cão quando chega e encontra comida e começa a rosnar.” Todos juntos, eles a amordaçaram, enrolaram um pano sobre seus olhos e ouvidos, cortaram sua roupa com um facão, e a estupraram, um após o outro, o que talvez tenha sido uma reconstituição intencional dos estupros usados pelos militares como tática de terror contra as mulheres maias durante a guerra civil. “Eles tiraram minhas roupas e brincaram com a minha vida”, declarou outra mulher em seu depoimento. Homens dos três grupos jogaram gasolina sobre as cabanas improvisadas e as roupas esfarrapadas das mulheres e as incendiaram.
Irma Cac, uma das mulheres que teria sofrido estupro coletivo, chorou enquanto falava em Toronto em setembro de 2019, depois de comparecer a uma audiência do processo em curso. “Nunca esquecerei”, disse ela, “nunca sairá dos meus olhos — a cor dos uniformes dos soldados, da polícia e da segurança privada.”
Tradução: Deborah Leão
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