Como a indústria do cigarro esconde os perigos do vape para convencer você a fumar

Futuro da fumaça

Como a indústria do cigarro esconde os perigos do vape para convencer você a fumar

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Maria Helena perdeu as contas de quantas vezes revirou o quarto e a mochila do filho em busca de um pequeno aparelho que poderia muito bem passar de forma despercebida, como um pen drive ou uma caneta. Encontrava, descartava e, poucos dias depois, outro aparecia.

Foram meses de procuras, broncas e longas conversas desde que ela descobriu que Gabriel, aos 15 anos, fazia uso do vape – como são conhecidos os cigarros eletrônicos. Neles, o processo de combustão do cigarro comum é substituído por uma bateria recarregável que aquece uma substância líquida que, geralmente, contém nicotina e aditivos de sabor, produzindo vapor para ser inalado.

Com uma infinidade de gostos que remetem à infância, como algodão doce, chiclete, morango, manga e chocolate, o dispositivo eletrônico se popularizou nos últimos anos e se concretiza como uma epidemia entre jovens em diversos países.

Segundo dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, o CDC, na sigla em inglês, 3,6 milhões de estudantes de ensino fundamental e médio usam cigarros eletrônicos.

A prática, que à primeira vista parece inofensiva, despertou atenção internacional após usuários começarem a apresentar graves lesões pulmonares causadas pelo uso dos dispositivos eletrônicos. Conforme monitoramento do CDC, foram registradas 2.807 internações e 68 mortes nos EUA até fevereiro deste ano, mês em que o último boletim a respeito foi divulgado.

A doença chegou a ganhar um nome próprio: Evali, sigla para “E-cigarette or Vaping product use-Associated Lung Injury” (lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico ou vaping, em tradução livre).

Até o momento, o CDC avalia que o uso de líquidos contendo tetrahidrocanabinol, o THC, substância psicoativa encontrada nas plantas do gênero cannabis, e o acetato de vitamina E, utilizado para diluir o THC, estão ligados à maioria dos casos. Ainda assim, o centro afirma que as evidências não são suficientes para descartar a contribuição de outros produtos químicos presentes nos e-cigarettes para o desenvolvimento das lesões.

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A preocupação de Maria Helena crescia ao passo que as notícias sobre as vítimas da Evali se tornavam mais frequentes. Morando em Nova Jersey, nos Estados Unidos, onde a venda dos dispositivos é autorizada apenas para maiores de 21 anos, a brasileira descobriu que Gabriel vaporou a primeira vez no banheiro da escola.

Pesquisou sobre o assunto e se deparou com a história de outros pais, igualmente assustados com a proliferação dos e-cigarettes, mais conhecidos como Juul, nas instituições de ensino. O “apelido” é inspirado no nome da fabricante dos dispositivos, a norte-americana Juul Labs Inc.

Maria Helena, que é corretora de imóveis e pediu o sigilo do sobrenome, começou a assistir a palestras para entender mais sobre os dispositivos apresentados como “uma alternativa de risco reduzido” ao cigarro convencional. Descobriu que, sem deixar o forte cheiro característico do cigarro de papel ou espalhar bitucas por aí, os dispositivos com nicotina aparecem em incontáveis e atrativos formatos.

Pacotes de salgadinho com fundo falso são esconderijos dos adolescentes para e-cigarettes nos EUA.

Durante o longo caminho percorrido, a mãe se tornou uma “investigadora”. Acompanhou de perto ações em escolas que, segundo ela, têm revistado crianças e adolescentes para evitar que escondam os e-cigarettes em blusas com espaços criados exatamente para isso, ou ainda, em pacotes de salgadinhos com fundo falso comprados pela internet com o mesmo objetivo.

“[O dispositivo] invadiu as escolas”, conta a mãe. “Mesmo que meu filho não venha um dia a fumar cigarro de papel, ele está viciado na nicotina. Seria um vício que ele não teria se o cigarro eletrônico não existisse”, prossegue Maria Helena.

Um ano e meio após conflitos frequentes em casa, foi uma insistente tosse que levou Gabriel ao hospital, no começo da pandemia. Os pais temiam que fosse covid-19, mas o jovem recebeu o diagnóstico de bronquite.  Sem saber o quanto o cigarro eletrônico impulsionou o desenvolvimento da doença, o adolescente conseguiu interromper a dependência com muito esforço.

As consequências na saúde pública causadas pelo uso do dispositivo também podem ser vistas aqui no Brasil, ainda que em uma escala menor. Segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação, de 18 de novembro de 2019 a 27 de agosto de 2020, a Anvisa, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária, recebeu sete notificações de brasileiros com Evali.

As informações mostram que, apesar de a comercialização dos Dispositivos Eletrônicos para Fumar, os DEFs, ter sido proibida pelo órgão em 2009 pelas incertezas sobre as consequências para a saúde, o uso é uma realidade no país. Diversas opções podem ser encontradas com uma rápida busca no Google.

Das sete pessoas que desenvolveram as lesões nos últimos meses, três precisaram ser internadas e duas receberam alta com sequelas. Os registros foram feitos em São Paulo, Espírito Santo, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Entre os quatro homens e três mulheres, as idades variam de 21 a 41 anos.

Esses são os casos em que médicos notificaram o atendimento e a evolução clínica dos pacientes por meio de um formulário criado pela Anvisa, o que não exclui a possibilidade de outras ocorrências não terem sido registradas. O número, por enquanto, pode ser considerado inexpressivo – mas tem potencial de aumentar rapidamente. A legalização do comércio de novos dispositivos eletrônicos é a nova fronteira da indústria do tabaco no Brasil.

NEW YORK, NEW YORK - JANUARY 27: A tobacco store advertises and sells Juul tobacco products as vaping remains popular despite health warnings, on January 27, 2020 in midtown Manhattan, New York City. (Photo by Andrew Lichtenstein/Corbis via Getty Images)

Propagandas do Juul ocupam espaço em tabacaria no centro de Manhattan, em Nova York.

Foto: Andrew Lichtenstein/Corbis via Getty Images

Um ‘futuro sem fumaça’

Desde 2018, a Philip Morris International, dona das marcas Marlboro e L&M, segue vangloriando-se de produzir um “Futuro Sem Fumaça”, nome de sua campanha institucional internacional. Ao desenvolver o que chama de “portfólio de produtos sem fumaça”, a maior companhia de tabaco do mundo defende que os produtos de “risco reduzido” substituam cigarros de papel “tão rapidamente quanto possível”. A frase é repetida por Mirek Zielinski, presidente de ciência e inovação da PMI.

Argumentando que a combustão do cigarro comum é a grande responsável pela produção dos altos níveis de substâncias químicas que fazem mal à saúde, a campanha apresenta o IQOS, seu dispositivo de tabaco aquecido. Ele inclui uma lâmina eletrônica, que aquece uma vareta de tabaco e libera um vapor com o sabor do produto. Embora esteja na mesma categoria de dispositivo eletrônico para fumar, os DEFs, o IQOS é diferente dos demais produtos – contém tabaco em vez de nicotina líquida. Os chamados “sticks” compatíveis com ele são produzidos principalmente pela Marlboro HeatSticks.

Assim como outros dispositivos eletrônicos, a venda do IQOS não é regulamentada no Brasil – por enquanto. Um dos primeiros movimentos da empresa para emplacar seu novo produto no Brasil aconteceu em 2017, quando a ex-governadora do Paraná, Cida Borghetti, na época ainda vice de Beto Richa, visitou as fábricas da Philip Morris na Itália com Fernando Vieira, diretor de assuntos corporativos da empresa, para conhecer as alternativas ao cigarro convencional.

Em 2018, a Anvisa realizou um painel técnico-científico para discutir a autorização da venda dos dispositivos, com a participação de pesquisadores nacionais e internacionais, entidades envolvidas na redução do tabagismo e da indústria. Após duas audiências públicas no ano passado, nas quais, ao fim, a agência recebeu mais de 350 documentos classificados como evidências técnico-científicas, e que estão sendo analisados por um grupo de pesquisadores externos, o tema foi incluído na Agenda Regulatória 2017-2020. As etapas culminarão na elaboração de um relatório de análise do impacto regulatório, a ser aprovado pela diretoria do órgão, que pode aprovar a comercialização do produto.

A Philip Morris argumentou que a Anvisa ‘deveria se ater à regulamentação, e não realizar políticas públicas’.

Entre fevereiro e outubro de 2019, funcionários de alto escalão da Anvisa se sentaram seis vezes com executivos da Philip Morris. O tema das reuniões? Novos produtos de tabaco no Brasil. Na pauta de uma reunião feita em 19 de setembro de 2019 na sede da Anvisa, consta que “a empresa relata dificuldade de realizar procedimentos junto à Anvisa supostamente por entraves desarrazoados da área técnica. A empresa alega que a Anvisa deve se ater à regulamentação, e não realizar políticas públicas”.

Em outro encontro com os diretores da agência em 11 de junho do mesmo ano, consta na ata a necessidade de regulamentar o tabaco aquecido. “A preocupação da empresa é no sentido de que a atuação regulatória possa se proceder considerando todos os aspectos envolvidos, não só as pressões externas ou políticas públicas para o setor”.

Enquanto a Anvisa era pressionada, jornais estampavam publieditoriais para convencer as pessoas sobre a segurança do tabaco aquecido, em uma campanha chamada “Precisamos Falar”. Logo na primeira linha do site, já fora do ar, a empresa assumia: “Parar de fumar é sempre a melhor opção, é a única sem risco”, diz o texto, seguido por uma ponderação. “Ainda assim, milhões de adultos continuam fumando. É urgente o debate sobre alternativas de risco reduzido”.

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Design limpo e preço salgado: dispositivo da Philip Morris custa a partir de 99 euros no mercado europeu – o equivalente a mais de R$ 700.

Foto: Reprodução/Philip Morris International

O site da campanha elencava os elementos associados ao “ritual do consumo de tabaco”, e defende que isso é mantido com o IQOS – sem o cheiro forte e a fumaça. Apesar de a empresa negar, a sigla é amplamente entendida como um acrônimo para I Quit Ordinary Smoking (eu parei de fumar cigarro comum, em tradução livre).

A campanha argumenta que seu dispositivo eletrônico reduz em até 95% a formação de substâncias nocivas em comparação com a fumaça do cigarro. O site também tem um abaixo assinado e uma seção de “perguntas frequentes”. Por exemplo, “Por que a Philip Morris simplesmente não para de vender cigarros?”. “Se parássemos hoje, todos perderiam: o consumidor migraria para outras marcas ou para o mercado ilegal, o Estado não arrecadaria e nós não conseguiríamos oferecer produtos de risco reduzido em função de uma proibição regulatória”, ela mesma responde.

Com a discussão na Anvisa, a “Precisamos Falar” ocupou espaços patrocinados nos maiores jornais do país ao longo do ano passado. Além de O Globo, só no Estúdio Folha, da Folha de S. Paulo, são nove matérias sobre as “benesses” do tabaco aquecido que apresentaram duras críticas à proibição – com direito a banner da campanha brasileira e o logo da “Futuro Sem Fumaça” no topo dos conteúdos patrocinados.

O Estadão também publicou conteúdo patrocinado na mesma linha. Fernando Vieira, diretor de Assuntos Externos da Philip Morris Brasil, chegou até mesmo a publicar um artigo em defesa do tabaco aquecido na coluna política de Fausto Macedo.

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Conteúdo híbrido do Estúdio Folha pode confundir o leitor: publicidade assemelha-se à notícia, dando credibilidade para o conteúdo que divulga o produto da empresa.

O site “Precisamos Falar” foi registrado pela agência Llorente y Cuenca, que alega não ter feito a campanha. “Vamos lá… a LLYC faz assessoria de imprensa para a Philip Morris Brasil. Quem criou a campanha ‘Precisamos Falar’ foi a agência de publicidade deles. A LLYC apenas registrou o site”, afirmou Daniela Augusto, diretora de engajamneto do consumidor na companhia.

A Llorente y Cuenca não é somente uma empresa de assessoria de comunicação. A própria empresa tem diversos conteúdos reafirmando o poder da influência das corporações no governo e diz ter uma equipe especializada em lobbying. Segundo a LLYC, “o lobby é uma prática intrínseca à democracia”. No início do ano passado, a agência foi contratada pela Philip Morris para cuidar das relações públicas de produtos de risco reduzido.

A lei brasileira é rígida: proíbe todas as formas de propaganda envolvendo cigarro, permitindo somente a exposição dos produtos de tabaco para a venda em estabelecimentos comerciais. A comercialização deve estar sempre acompanhada de advertências sanitárias.

Por isso, para João Lopes Guimarães Jr., advogado, ex-promotor de Justiça do Consumidor do Ministério Público em São Paulo, a “Precisamos Falar” é ilegal. “A pretexto de incentivar um debate sobre ‘alternativas melhores’ para o fumante interessado em abandonar o tabagismo, a empresa divulgou mensagens capazes de confundir o público e induzi-lo ao erro a respeito do produto. Ora, o tabaco aquecido é produto cuja propaganda comercial é proibida no Brasil por resolução da Anvisa”, diz.

Ele acrescenta que o Código de Defesa do Consumidor também foi desrespeitado, porque a campanha não foi veiculada de forma que o consumidor identifique como publicidade.

“É uma das coisas mais cruéis que já vi”, nos disse Maribel Suarez, coordenadora do Centro de Estudos do Consumo da Universidade Federal do Rio de Janeiro e especialista em consumo e comportamento. Ela critica o fato de que, para anunciar o tabaco aquecido, a empresa estigmatize os fumantes. “Aquele que é teu algoz, que ganha dinheiro com seu consumo, diz que você é um pária. Que está em uma situação da qual precisa ser retirado por meio de outra promessa”.

Após meses no ar e 6 mil assinaturas, o abaixo-assinado em defesa da liberação do produto que constava na campanha foi suspenso por determinação da Anvisa. A agência também classificou a propaganda como irregular. “A notificação enviada determinou a suspensão da propaganda e não somente do abaixo-assinado”, disse a Anvisa ao Intercept por meio de sua assessoria de imprensa. Questionada sobre a razão de o pedido ter sido descumprido, já que a campanha permaneceu no ar por meses após a recomendação, a Anvisa não respondeu.

Já a Philip Morris Brasil alega que o conteúdo é de comunicação institucional. “Estamos em total legalidade com a comunicação realizada, sendo que todas as solicitações feitas pela Anvisa na plataforma foram realizadas à época, o que inclui a suspensão da petição aberta para manifestação dos brasileiros em relação ao tema”, afirma a nota enviada ao Intercept.

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Ilustração: FIEDLER para o Intercept Brasil

Da ciência aos adolescentes

Em outra frente de atuação – desta vez de olho em pesquisadores –, a Philip Morris também patrocinou eventos acadêmicos como o Fórum de Mudança de Hábitos e Redução de Danos à Saúde, em 2017, e o Congresso Brasileiro de Cardiologia de 2019. Com foco no público da área de saúde, a empresa fez nos eventos palestras com os temas “Novo cenário: efeitos cardiovasculares do sistema de aquecimento de tabaco em comparação a continuar fumando cigarros”, enaltecendo os benefícios do tabaco aquecido para a área médica.

A estratégia é global. Junto com a mudança institucional, a Philip Morris criou a Foundation for a Smoke Free World (Fundação Futuro Sem Fumaça, em tradução livre), com sede em Nova York, uma organização “independente” e sem fins lucrativos que visa desenvolver pesquisas e fortalecer ações globais contra os impactos à saúde causados pelo tabagismo. O investimento na fundação é de 80 milhões de dólares anuais pelos próximos 12 anos. A independência é só fachada: todo o dinheiro vem da Philip Morris.

Da doação anual de US$ 80 milhões, US$ 6,46 milhões foram destinados às bolsas de pesquisa em 2018 e US$ 7,59 milhões em comunicação e relações públicas. Segundo a revista científica The Lancet, que publicou um artigo sobre o financiamento da instituição, ainda foram contratadas empresas de comunicação com vínculos de longa data com a indústria do tabaco. Uma delas é a Ogilvy Public Relations Worldwide – que, segundo os autores do artigo, atua tanto para promover o tabaco quanto para ocultar os danos à saúde.

Em março deste ano, a PMI estimou que aproximadamente 10,6 milhões de adultos usaram IQOS – mas seu foco é o público jovem.

Lançado em cidades da Itália e do Japão em 2014, o IQOS hoje está disponível em 57 países. Segundo um artigo publicado em fevereiro pela Southeast Asia Tobacco Control Alliance, a PMI dribla as legislações locais que restringem o uso do cigarro tradicional com base no mesmo discurso da ausência de fumaça que tenta emplacar no Brasil.

No Japão, por exemplo, onde o IQOS ganhou 16% do mercado de tabaco apenas quatro anos após lançado, é proibido fumar em ambientes fechados. No entanto, o uso do tabaco aquecido é liberado.

Em março deste ano, a PMI estimou que aproximadamente 10,6 milhões de adultos usaram IQOS – mas seu foco é o público jovem.

A empresa criou cafés e lounges próprios, os “IQOS Friendly Places”, onde é possível usar tabaco aquecido livremente e os cardápios oferecem bebidas com os mesmos sabores dos chamados “heatsticks”, as varetas aquecidas. Esses espaços já funcionam na Romênia, Ucrânia, Rússia, República Checa e Espanha.

Na Rússia, a PMI chegou a fazer uma ação com jovens influenciadores, que utilizavam a hashtag “IQOSambassadors” para vender o vape – uma delas tinha 21 anos. O caso foi denunciado em uma reportagem da Reuters e a campanha acabou suspensa. A reportagem também revelou que a empresa fez ações semelhantes no Japão, Itália, Suíça, Rússia e Romênia.

Analisando a publicidade da empresa por 10 meses, pesquisadores da Universidade de Stanford constataram que as campanhas têm, em geral, artistas, músicos e influenciadores, com as hashtags #iqos, #iqosfriends, #iqosstories, and #iqoslovers, e mostram pessoas jovens, atraentes e felizes com os aparelhos nas mãos. Outros anúncios mostram surfistas e corredores, associando o produto a um estilo de vida saudável. “Esses modelos são frequentemente retratados segurando um IQOS como se fosse um objeto precioso”, detalha o relatório.

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Propagandas coletadas pelos pesquisadores de Stanford mostram o apelo romântico da indústria.

Imagem: Reprodução/Universidade de Stanford

Há ainda anúncios que dizem explicitamente que o IQOS “mudará seus beijos” e outras peças que implicam que, se a pessoa ama algum fumante, seja ele pai, mãe ou cônjuge, deveria encorajá-lo a usar o dispositivo.

Os anúncios apareceram em veículos como Cosmopolitan, Vogue, Vice, Pink, Focus e Daily Mirror. O estudo identificou ainda que 270 eventos de diversos tipos, incluindo shows, exposições, desfiles de moda, festivais de gastronomia e vinho, festivais de cinema e eventos esportivos foram patrocinados pelo IQOS. Entre eles, havia até atividades do Dia do Estudante em Tel Aviv, em Israel, obviamente voltadas para o público jovem.

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Segundo os pesquisadores, o Dia do Estudante, evento musical em Israel, contou até com um estande com venda do produto.

Imagem: Reprodução/Universidade de Stanford

No Brasil, não é possível identificar influenciadores patrocinados pelas fabricantes, mas a atuação da comunidade pró-vape é assídua nas redes sociais. Ao digitar palavras-chave como “cigarro eletrônico” ou “vaping” no Instagram ou no YouTube, centenas de perfis de usuários aparecem, com conteúdo de análise e indicação de produtos. Em relação ao tabaco aquecido, o outro dispositivo eletrônico, há menos conteúdo. Mas, a partir do exemplo internacional, a ação de marketing protagonizada pela “Precisamos Falar” pode ser um pequeno spoiler do que vem por aí enquanto o processo regulatório durar.

Alvos da moda

“O que me levou a fumar o cigarro eletrônico foi a modinha. Experimentei e achei gostoso”, nos disse Gabriela Todesco, de 26 anos. Após uma viagem aos EUA, a jovem comprou os aparelhos, mas, com o tempo, percebeu que a facilidade do dispositivo a fazia fumar ainda mais.

“O tabaco, por exemplo, tenho que bolar. Não fumo na minha sala, no meu quarto. O Jull eu fumava o tempo inteiro. Assistia um filme e fumava. Senti que estava dependente, mas, logo que perdi o último, decidi não comprar mais”, conta. Nos EUA, a Jull – hoje líder de venda de cigarros eletrônicos –  já adquiriu espaços publicitários até mesmo em websites voltados para o público infantil e adolescente, como os da Nickelodeon, do Cartoon Network e da revista Seventeen.

O modus operandi não é novo. Em 2018, a pesquisadora Maribel Suarez, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, participou de um estudo feito em 40 países, incluindo o Brasil, que identificou uma ação da Souza Cruz nas redes sociais. Com a hashtag #TasteTheCity (saboreie a cidade, em tradução livre), fotos e posts feitos por influenciadores em festas e eventos culturais estavam ligados ao cigarro da marca Dunhill. Em nenhum momento há uma associação direta entre a hashtag e a Souza Cruz, dona da marca Dunhill – mas os cigarros apareciam sutilmente nas postagens.

No festival Meca Inhotim de 2016 e de 2017, por exemplo, havia um camping para influenciadores convidados que postavam fotos com maços Dunhill acompanhados pela hashtag.

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A Souza Cruz afirmou, à época, que a participação nos eventos se deu exclusivamente em regime de comercialização de produtos e que a empresa não utiliza mídias sociais em atividades de marketing, direta ou indiretamente.

Para Suarez, a criação de hashtags e ações com influenciadores digitais promovem a ideia de um estilo de vida “descolado”, associado ao cigarro tradicional – e agora, também, aos novos dispositivos. É uma das formas do chamado “marketing sorrateiro”, em que os receptores da mensagem não têm consciência de que determinado conteúdo faz parte de uma ação promocional – um artifício velho conhecido da indústria do tabaco, alvo de proibição na publicidade em vários países.

A história se repete

Nas décadas de 1940 e 50, a indústria tabagista sustentava que o cigarro não fazia mal. Depois, que os cigarros com filtro seriam menos nocivos à saúde. Então, os cigarros lights e ultralights apareceram. Nenhuma das opções de fato eram alternativas sem danos à saúde. Agora, é a vez da alta tecnologia, que expõe o usuários a novas substâncias tóxicas.

“É uma ‘alternativa’ que não passa de um ledo engano. Isso tudo sempre fez parte de uma jogada da indústria, que foi desafiando os consumidores para que continuassem consumindo produtos com a ilusão de que eles causassem menos mal”, nos disse Silvana Turci, pesquisadora do Centro de Estudos sobre Tabaco e Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.

Ela também lembra que a Philip Morris não está sozinha nessa empreitada de convencer o mundo que os dispositivos eletrônicos não fazem mal à saúde. A British American Tobacco, proprietária da Souza Cruz no Brasil, lançou o vaporizador ISwitch em 2018. O dispositivo eletrônico da fabricante de marcas como Dunhill e Lucky Strike carrega uma lâmina de aço inoxidável fina. A holandesa Fontem Ventures, subsidiária do grupo Imperial Brands e fabricante do cigarro eletrônico Blu, também já manifestou publicamente o interesse nas potencialidades do mercado brasileiro.

Para a pesquisadora, há ainda outra ameaça à saúde pública com o vape. Assim como Gabriel, filho de Maria Helena, que aos 15 anos nunca havia entrado em contato com a nicotina, os produtos potencializam a criação de um nova geração de fumantes, principalmente de jovens e adolescentes, por causa de seus saborizantes. Exatamente por isso, alguns estados dos EUA, como Oregon, Michigan e Washington, já restringiram a comercialização dos aditivos de sabor.

‘Não há um estudo de longo prazo com vários perfis de população que mostrem que esses produtos realmente ajudam na cessação do tabagismo.’

“Crianças e jovens que nunca imaginaram botar um cigarro na boca, pelo apelo tecnológico que esses produtos têm, acabam se interessando e se tornando novos fumantes. E é essa a estratégia da indústria”, diz a pesquisadora. Ela teme que a estratégia global das empresas traga consequências às políticas de saúde antitabagistas do Brasil, referência internacional na área. Em 1989, 34,8% da população brasileira acima de 18 anos fumava; em 2019, esse número caiu para 9,8%.

Na opinião de Stella Martins, médica especialista em dependência química com certificação em Controle do Tabagismo pela universidade Johns Hopkins, nos EUA, os argumentos divulgados pela indústria do tabaco de que os dispositivos eletrônicos ajudariam os fumantes a abandonarem o vício são apenas parte de uma estratégia para continuar vendendo.

“Não há um estudo de longo prazo com vários perfis de população que mostrem que esses produtos realmente ajudam na cessação do tabagismo. E, se assim fosse, eles não teriam que ser colocados como produtos de risco reduzido, mas, sim, produtos para o tratamento do tabagismo”, argumenta a pesquisadora, autora do livro “Cigarro eletrônico: o que sabemos?”, com uma série de revisão de estudos sobre o tema.

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Embora alguns estados americanos tenham banido a venda de sabores para o vape, produtos continuam sendo propagandeados por lá.

Foto: Robyn Beck/AFP via Getty Images

O “uso duplo” dos produtos também já havia sido considerado provável pelo Comitê Científico Consultivo sobre Produtos de Tabaco do FDA em 2018. Eles concluíram que os fumantes provavelmente se tornariam usuários duplos de IQOS e cigarros convencionais a longo prazo, processos que ocorreram no Japão e na Coréia do Norte. Outro estudo, da European Respiratory Society, mostrou que entre 60% a 80% dos usuários de vape continuam fumando o cigarro comum.

Por causa disso, segundo o pneumologista Luiz Fernando Pereira, coordenador da Comissão Científica de Tabagismo da Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia, as pesquisas citadas pela Philip Morris para justificar campanhas partem de uma realidade muito diferente da brasileira. “É bem típico de um país que não conseguiu chegar ao nível do Brasil, que tem um programa estruturado para reduzir o consumo do tabaco”, diz o médico.

“O fumante que não consegue parar de fumar só está nessa situação por uma exposição à droga fornecida por eles”, nos disse Zila Sanchez, livre-docente do Departamento de Medicina Preventiva da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Para a pesquisadora, ao tentar se afastar do papel de vilã e desviar-se da perda de clientes dos últimos anos, a criação de uma clientela cativa de jovens é o norte da empresa para garantir lucros nas próximas décadas.

Stella Martins ressalta um aspecto ainda mais grave coberto por um discurso tecnológico e sedutor: milhares de pessoas que usam o vape estão, na verdade, se submetendo a uma série de outras substâncias tóxicas que representam ameaças tão ou mais graves do que as do cigarro comum. Estima-se que a vaporização do e-cigarette possa atingir 350ºC – o que segundo Martins, é uma temperatura alta o suficiente para induzir reações e mudanças físicas nos compostos, formando outras substâncias potencialmente tóxicas.

“Para formar o vapor do cigarro eletrônico é preciso uma substância chamada propilenoglicol. Essa substância, quando aquecida, se transforma em outra, que é o formaldeído, cancerígeno da classe 1 da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer”, explica.

Outro alerta: há, também, a liberação de aerossóis com acetaldeído, outro possível carcinógeno; com acroleína, substância gerada pelo aquecimento do glicerol, que causa irritação na cavidade nasal e danos no revestimento dos pulmões, e nitrosaminas, uma classe de carcinogênicos específicas do tabaco.

A presença das substâncias tóxicas do cigarro eletrônico, que também são liberadas no tabaco aquecido, está registrada em uma publicação baseada em mais de 80 referências científicas levantadas pela organização Tobacco Free Kids, sediada nos Estados Unidos. Pesquisadores da Grécia também descobriram que emissões de produto incluem carbonilas, substâncias que surgem durante a combustão de produtos orgânicos, o que dá indícios de que o tabaco seja queimado, mesmo que em menor quantidade.

Frankie Paulino, of Chicago, uses his vaping device at Dearborn and Jackson in Chicago, Monday, Sept. 16, 2019. Paulino believes excessive vaping is bad and prefers the mint flavor. (Antonio Perez/Chicago Tribune/Tribune News Service via Getty Images)

A fumaça do vape, propagandeada como menos danosa é, segundo várias pesquisas científicas, fator de risco para agravar a covid-19.

Foto: Antonio Perez/Chicago Tribune/TNS via Getty Images

Risco eminente

A doença respiratória desencadeada pelo novo coronavírus, que já infectou mais de 36 milhões de pessoas no mundo, apresenta complicações ainda mais graves entre fumantes. Quem fuma tem risco até 14 vezes maior de se infectar e desenvolver a forma grave da doença – risco que se estende aos usuários de narguilé e vape.

Pesquisadores da Universidade de Stanford, nos EUA, publicaram em agosto um estudo com a descoberta de que os jovens usuários do dispositivo eletrônico ou de outros tipos de vaporizadores têm de cinco a sete vezes mais probabilidade de serem infectados na pandemia do que aqueles que não os usam.

Os motivos são parecidos aos que comprometem a saúde dos fumantes do cigarro tradicional: a vaporização diminui a imunidade no trato respiratório. A pesquisa teve participação de 4.351 pessoas, com idades entre 13 e 24 anos.

Questionamos a Philip Morris sobre a ausência de comprovação científica de sua tese de que o produto é seguro e pode ser usado como alternativa de menor risco ao tabaco. A empresa disse que uma série de estudos internacionais sobre o aquecimento do tabaco está disponível em seu site e foi apresentada à Anvisa, “que, como órgão regulador, é, no Brasil, a instituição mais habilitada e capacitada para analisar o tema”.

Após uma grande pressão do setor, o IQOS teve venda autorizada em abril do ano passado pelo Food and Drug Administration, o FDA, nos Estados Unidos. Ao conceder autorização para comercializar o dispositivo, no entanto, o departamento fez a ressalva de que o tabaco aquecido tem um potencial de vício em nicotina semelhante ao dos cigarros convencionais.

Neste ano, a gigante do tabaco recebeu chancela do FDA para indicar que IQOS é um “produto de risco modificado”. A medida autorizou a comercialização com a afirmação de que o dispositivo “reduz significativamente a produção de compostos químicos nocivos e potencialmente nocivos”.

Correção: 20 de outubro de 2020, 14h30
A reportagem afirmava que o IQOS é um tipo de vape. Na verdade, trata-se de outro tipo de tecnologia – mas, assim como o vape, também da categoria “dispositivo eletrônico para fumar” (conhecido pela sigla DEF), sob a mesma regulamentação. O texto foi corrigido e alterado para maior clareza.

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