Assédio moral a professores civis em academias militares e a funcionários civis no Ministério da Saúde. Adesão ao olavismo. Participação ativa na política. Ameaças aos poderes Judiciário e Legislativo. Militarização da segurança pública, da educação, do meio ambiente e da saúde. Revisionismo histórico. Elogios a torturadores e ditadores. Retorno da censura e intimidação a opositores do governo. Ameaças de novo AI-5 e de nova intervenção militar. Negacionismos da ciência, dos direitos humanos e da pandemia. Aparelhamento do estado. Desrespeito à Constituição Federal. Esses são alguns dos temas que vemos diariamente nos jornais envolvendo integrantes das Forças Armadas brasileiras. Mas por que nossos militares perpetuam ideologias retrógradas e cenários conspiratórios em pleno século 21? Por que é tão difícil fazê-los funcionar sob o regime democrático respeitando-o?
Um dos caminhos para responder às indagações acima é compreender como se formam, se estruturam e operam as Forças Armadas no Brasil. Neste texto, o diagnóstico que apresentamos é que não é possível pensarmos um fim para o “espírito interventor” de nossos militares sem uma reforma profunda do setor de segurança brasileiro.
O fim da Guerra Fria, no início dos anos 1990, trouxe um incentivo para o que, na literatura acadêmica, convencionou-se chamar de “Reforma dos Setores de Segurança”. O mundo, afinal, era outro. A débâcle do bloco socialista a partir da queda do Muro de Berlim, o fim da União Soviética e o triunfo do modelo de democracia liberal marcaram os estágios finais do que Samuel Huntington chamou de Terceira Onda nos processos de democratização. As ameaças tradicionais de outros estados passaram a dar lugar ao que Mary Kaldor denominou de “novas ameaças”, conflitos marcados principalmente por envolver combatentes não militares contra forças armadas tradicionais.
A agenda das reformas dos setores de segurança – que em alguns lugares assumiu a forma da chamada Revolução dos Assuntos Militares, a RAM – veio como forma de adequar as forças militares e policiais a esta nova realidade das “novas ameaças”. Sua pauta era direcionada, em especial (mas não exclusivamente), às novas democracias de então, países que haviam feito há pouco a transição de regimes autoritários para democráticos, que incluíam a antiga zona de influência soviética, África, Ásia e também a América Latina.
Os incentivos externos, do fim da Guerra Fria, e os domésticos, das transições para democracias, impulsionaram a reestruturação de grande parte das Forças Armadas do mundo no fim do século 20 e início do 21. Dentre os muitos pontos estimulados estavam a redefinição das doutrinas militares, diminuição de contingentes e do orçamento para as defesas nacionais, investimento em modernização e digitalização tecnológica das Forças Armadas e mudanças substantivas na educação e instrução de militares.
Havia um incentivo para que as academias militares se abrissem para as ciências, assim como para uma maior participação de civis nos assuntos de defesa nacional. E, por fim, havia incentivos para que as novas democracias desenhassem instrumentos de controle constitucional dos militares, para que estes não voltassem a intervir nos rumos políticos naqueles países que haviam há pouco saído de ditaduras militares.
‘Nosso modelo de transição para a democracia, muito mais do que uma exigência da sociedade, foi guiado pelos coturnos’.
Essas reformas avançaram rapidamente em grande parte do mundo – parte da América do Sul inclusa –, mas o Brasil manteve uma indesejável autonomia no setor castrense. Mais uma vez, fizemos uma “revolução” para não mudar nada. Em uma jabuticaba (amarga) política, nosso modelo de transição para a democracia, muito mais do que uma exigência da sociedade, foi guiado pelos coturnos, mais especificamente por um setor distensionista do mundo das armas. Isto significa que a “transição lenta, gradual e segura”, como resumida pelo ditador Ernesto Geisel, nos legou uma autonomia militar que impossibilitou a reforma do setor de segurança brasileiro, enquanto grande parte do mundo repensava e redefinia os papéis, funções, doutrinas e emprego de suas forças armadas.
O pouco que experimentamos de reforma no Exército, Marinha e Aeronáutica, foi, em linhas gerais, por iniciativa dos próprios militares. E, naturalmente, apenas nos setores que lhes eram objeto de interesse. Em larga medida, foram questões ligadas à modernização tecnológica e reaparelhamento das Forças, mas nada direcionado à atuação, instrução, tamanho dos contingentes ou, mais particularmente, às ideologias da caserna brasileira.
Até mesmo iniciativas indesejadas pelas Forças Armadas, como a criação do Ministério da Defesa em 1999, acabaram tendo uma dócil acomodação onde, a despeito da extinção de quatro ministérios militares, não se conseguiu construir uma direção política e implementar um efetivo controle civil democrático sobre os militares.
Sem um amplo, democrático e inclusivo debate que refunde nossas Forças Armadas, seguiremos destinados a, de tempos em tempos, repetirmos nossa história. Mais do que formar militares comprometidos com a democracia, é preciso termos uma visão crítica sobre nossa própria história e o papel das Forças Armadas nela, que não apenas seja laudatória, mas que possibilite uma real reflexão sobre o papel dos militares em um país socialmente mais justo, inclusivo e menos desigual como desejamos.
É inadmissível a aceitação, explícita ou implícita, da atuação dos militares como reguladores da vida política e social. É igualmente inaceitável que a caserna promova, endosse ou se valha de operações psicossociais (OPSi) para promover doutrinas revisionistas sobre a história do Brasil e as atuações passadas, presentes e futuras dos militares no cenário doméstico do país.
É impensável em uma democracia sólida que o presidente, um ex-militar, e o vice-presidente, um general da reserva, elogiem um notório torturador condenado pela justiça, ainda mais subvertendo o conceito universal de direitos humanos. Também é imprescindível um programa que contemple a direção política numa sociedade democrática sobre esse instrumento fundamental de força do Estado chamado Forças Armadas.
Elencamos aqui então nove propostas que, longe de esgotar a discussão, podem contribuir para abrir um debate público acerca de uma agenda para uma reforma do setor de segurança brasileiro:
De uma coisa estamos certos. Um país como o Brasil, com quase 17 mil quilômetros de fronteiras secas, cerca de 8 mil quilômetros de litoral e um imenso espaço aéreo, além de fazer divisa com mais dez nações, não pode prescindir de Forças Armadas na tarefa de proteção e defesa de seu território, de suas riquezas, além de serem fundamentais na definição do papel que quer ocupar no sistema internacional.
No quadro atual, nossos militares nem desejam repetir a aventura de 1964 porque eles estão ganhando tudo sem precisar de golpe. Gozam de um elevado grau de autonomia e influência e com seus programas estratégicos, em larga medida mantidos em um contexto de restrição orçamentária, ao lado de suas aposentadorias precoces, soldos generosos e outras sinecuras garantidas a partir da reestruturação das carreiras militares implementadas no primeiro ano de governo.
Contudo, trata-se de um jogo perigoso, no qual não está garantido que os militares não sairão chamuscados do governo Bolsonaro e com possíveis severas sequelas para as Forças Armadas como um todo (os números de pesquisas recentes já mostram isso) – como disse o então ministro do Superior Tribunal Militar, o STM, o general Peri Bevilaqua (posteriormente aposentado compulsoriamente pelo AI-5): “Quando a política entra por uma porta do quartel, a disciplina sai pela outra”.
Não exibe sua melhor forma uma democracia onde os cidadãos sabem de cor o nome dos generais pelo que fazem na política e não na guerra. Urge a nós, de diferentes gerações, mas antes de tudo informados pelo firme compromisso democrático, revertermos esse quadro, sepultando definitivamente o “Partido Militar” que não deve ter lugar em uma sociedade diversa, plural e desenvolvida.
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