Mesmo que Donald Trump perca as eleições presidenciais do dia 3 de novembro, é difícil imaginar que ele seja condenado — que dirá preso — por qualquer crime.
Isso porque, em primeiro lugar, os ex-presidentes dos EUA nunca ficaram dentro de uma cela — o que não significa que todos os mandatários do Executivo tenham seguido fielmente a lei. Presidentes acumulam créditos por grandes favores, os quais eles utilizam, figurativa e literalmente, quando deixam o cargo. No extremo mais modesto do espectro, 20 amigos ricos de Ronald Reagan compraram uma mansão em Bel-Air, Los Angeles, para ele e Nancy viverem após o mandato do republicano. De forma mais significativa, ex-presidentes recebem proteção política de seus aliados, como quando Gerald Ford perdoou Richard Nixon por qualquer coisa que tivesse feito na presidência.
Presidentes acumulam créditos por grandes favores, os quais eles utilizam quando deixam o cargo.
Além de tudo que um presidente faz concretamente pelos setores que o apoiam, esses segmentos se opõem veementemente a eventuais consequências das ações de seus aliados no Executivo — por razões básicas de solidariedade de classe. Um ex-presidente responsabilizado pelo que fez sugere que as pessoas nos níveis abaixo do poder também podem enfrentar as consequências de seus atos. Mas quem está no topo da sociedade norte-americana vê responsabilidades da mesma forma que a empresária Leona Helmsley entende os impostos: são apenas para a ralé, as pessoas comuns.
Dito isso, aconteceram coisas mais estranhas do que as acusações contra Trump — a começar pelo fato de ter sido eleito presidente, por exemplo.
Trump está mais vulnerável a acusações do que os presidentes anteriores, porque pode ter se envolvido em diversos crimes não tradicionais. Com a invasão do Iraque, George W. Bush cometeu o que os julgamentos de Nuremberg classificaram de “o crime internacional supremo” de iniciar uma guerra. Mas nunca houve qualquer chance de que ele fosse punido por isso, porque toda a estrutura do poder dos EUA concorda que os presidentes americanos têm o direito de fazê-lo. O mesmo vale para a realização de milhares de ataques com drones e de torturas no mundo inteiro. Por outro lado, Trump teria se envolvido em possíveis atividades criminosas relativamente menores, que não necessariamente dizem respeito à presidência.
Atualmente, as leis federais protegem Trump de ser indiciado porque ele é o presidente. Há décadas o Departamento de Justiça considera que não pode processar presidentes durante seus mandatos — o ex-procurador especial Robert Mueller concordou e explicou que nunca teve a opção de acusar Trump porque isso seria inconstitucional. Esteja essa perspectiva correta ou não, o procurador-geral William Barr é um homem leal que nunca agiria contra o patrão.
Conforme decisão recente da Suprema Corte, Trump poderia teoricamente ser acusado de violar leis estaduais enquanto ocupa o cargo máximo do Executivo. Na prática, entretanto, isso é bem improvável.
Mas se Trump for derrotado e sair do Salão Oval, grande parte de sua proteção presidencial vai se desintegrar. Ele poderia tentar perdoar a si mesmo nos últimos meses de presidência por todos os crimes que já cometeu. Mas ninguém sabe se um presidente pode agir assim, pois nenhum tentou fazer isso antes. De qualquer forma, um eventual perdão se aplicaria somente a violações federais.
Por isso, vamos supor que Trump perca e não conceda perdões a si próprio e que os sistemas de justiça estadual e federal se mobilizem como nunca para lidar com alguém ultrapoderoso, do mesmo jeito que trata aqueles que não têm poder algum. Trump ficaria vulnerável a processos (veja a seguir) dos quais já temos notícia — e provavelmente a muitos e muitos outros que ainda desconhecemos.
Fraude fiscal
Trump tem sido extraordinariamente evasivo quando se trata de apresentar suas declarações de impostos. Também afirmou que qualquer sondagem de suas finanças por Mueller cruzaria uma “linha vermelha”. Agora sabemos que há uma razão para tanta ansiedade. As leis tributárias dos EUA oferecem tantas possibilidades para que os bilionários — especialmente os que estão ligados ao setor imobiliário — não paguem impostos, sem violar leis, que é preciso se esforçar muito para cometer uma evasão fiscal. Mas Trump parece ter estado à altura desse desafio.
Fraudes fiscais parecem uma tradição familiar para Trump.
Fraudes fiscais parecem uma tradição familiar para Trump. Em 1992, os Trump abriram uma empresa, da qual são proprietários Donald, seus irmãos e um primo que aparentemente não fez nada, exceto injetar dinheiro do império imobiliário do pai do presidente, Fred Trump, nos bolsos da empresa. Isso permitiu que Fred desse milhões de dólares em presentes aos filhos sem precisar pagar qualquer imposto.
Todos os potenciais crimes desse caso já prescreveram. Mas uma recente investigação do New York Times sobre as declarações fiscais de Trump revelou que ele pode ter desenvolvido estratégia semelhante para passar dinheiro a seus filhos sem pagar impostos. Sua empresa deduziu US$ 747.622 em “taxas de consultoria” para projetos de hotéis em Vancouver e no Havaí. Enquanto isso, uma empresa de consultoria da qual Ivanka Trump é coproprietária pagou exatamente o mesmo montante a Donald, embora ela fosse funcionária da empresa de Trump. Outros milhões em honorários de consultoria foram destinados a pessoas desconhecidas. Se Ivanka e seus irmãos eram realmente os destinatários desse dinheiro, podemos estar diante de um caso de fraude fiscal: nos EUA, é ilegal obter esse tipo de receita de uma empresa na qual você trabalha.
O New York Times também descobriu uma potencial conduta criminosa na relação de Trump com uma enorme propriedade que ele possui no condado de Westchester, Nova York, nas imediações da cidade. Trump alegou que se trata de uma propriedade para investimento, e não uma residência pessoal, o que lhe permitiria pagar impostos relativos ao imóvel como despesas de negócios. Mas há poucas evidências de que a propriedade seja um investimento de Trump.
Há também a questão do peculiar empréstimo de US$ 50 milhões de Trump para si mesmo e se o presidente declarou pagamentos como despesas de negócios — e muito mais que já está em domínio público. Provavelmente, uma investigação estadual ou federal exaustiva revelaria ainda mais sobre o comportamento fiscal de Trump.
Tudo isto porque Michael Cohen — o ex-advogado do presidente que já se declarou culpado de múltiplas acusações de evasão fiscal — disse recentemente que Trump “pode, em breve, ser o primeiro presidente a ir da Casa Branca diretamente para a prisão”.
Fraude junto a bancos e seguradoras
Cyrus Vance Jr., promotor distrital de Manhattan, investiga atualmente o que seu escritório chama de uma “possível conduta criminosa extensa e prolongada na Organização Trump”. Para além das questões fiscais, Vance parece estar investigando se Trump forneceu declarações falsas sobre a sua situação financeira a bancos e seguradoras visando receber empréstimos com taxas de juros e encargos reduzidos. Em determinadas circunstâncias, isso seria ilegal.
Violações de financiamento de campanha
A lei de financiamento de campanha é complexa e confusa na melhor das hipóteses, e mais ainda quando envolve comprar o silêncio de (supostas) amantes. Os US$ 130 mil recebidos pela atriz pornô Stormy Daniels são certamente uma contribuição para a campanha de Trump. Mas também era totalmente legal que Trump doasse o dinheiro que quisesse para a sua candidatura de 2016, graças a uma decisão de 1976 da Suprema Corte. O “cala boca” dado a Daniels poderia ser aceitável se o próprio Trump tivesse enviado o dinheiro aos advogados dela e informado o propósito do pagamento em suas declarações (e aí ele poderia se safar dessa classificando o repasse como “despesas legais”, ou algo do tipo).
A lei de financiamento de campanha é complexa e confusa na melhor das hipóteses, mais ainda quando envolve comprar o silêncio de (supostas) amantes.
Em vez disso, Trump usou Michael Cohen como intermediário, o qual não poderia doar legalmente mais de US$ 5.400 à campanha do atual presidente. O envolvimento de Cohen somado a potenciais infrações relacionadas poderia criar um risco legal para Trump.
Ainda mais grave é a questão de uma doação do então candidato Trump, no valor de US$ 10 milhões, à própria campanha, em 28 de outubro de 2016, pouco antes das eleições daquele ano. À época, surpreendentemente com poucos recursos, Trump recebeu um pagamento incomum de US$ 21 milhões de um hotel de Las Vegas do qual é coproprietário com um amigo e apoiador político. Se o pagamento não foi legítimo, poderia constituir uma contribuição ilegal para a campanha. Além disso, de acordo com um novo relatório da CNN, Mueller e o Departamento de Justiça investigaram durante anos se esses 10 milhões poderiam ter sido fornecidos por um banco egípcio, mas o inquérito foi encerrado em julho sem quebra do sigilo fiscal e bancário do presidente.
Suborno
Trump atua no mundo inteiro, incluindo em países onde o setor imobiliário é um negócio ainda mais sujo do que nos EUA — nações em que os subornos são normalmente aguardados e pagos. No entanto, graças à Lei de Práticas de Corrupção no Exterior, é ilegal que americanos participem dessas negociatas, o que leva empresários a reclamarem que ficam em desvantagem. Andrew Weissmann, um dos promotores mais experientes de Mueller, afirma em um novo livro que, como a investigação de Mueller não se aprofundou nas finanças de Trump, “não sabemos se ele pagou propinas a funcionários estrangeiros para garantir um tratamento favorável aos seus interesses empresariais”.
Homicídio por negligência
O ex-procurador federal Glenn Kirschner argumenta que Trump pode e deve ser processado pelo crime de homicídio por negligência devido à forma como lidou com a pandemia de covid-19. Seria, no mínimo, controverso, mas Kirschner é uma pessoa séria que atuou no gabinete da procuradoria federal para o distrito de Columbia por 24 anos, no qual atuou como chefe do departamento de homicídios.
Obstrução de justiça
Embora Mueller acreditasse que presidentes não podem ser acusados enquanto são mandatários, seu relatório final enfatizou que “um presidente não tem imunidade após sair do cargo”. Foi por esta razão, escreveu ele, que “realizamos uma investigação factual exaustiva, a fim de preservar provas enquanto as memórias estivessem frescas e as documentações disponíveis”.
Depois de o relatório de Mueller ter sido publicado, mais de mil ex-procuradores federais declararam que, se Trump não fosse presidente, a conduta descrita por Mueller “resultaria em acusações múltiplas por obstrução da justiça”. É difícil imaginar que um eventual governo Biden decida processar um ex-presidente. Por outro lado, a candidata democrata a vice, Kamala Harris, disse em 2019 o que faria se eleita presidenta: “creio que [o Departamento de Justiça] não teria escolha e que eles deveriam” acusar Trump de obstrução de justiça.
Novo impeachment
Por último e talvez mais importante, Trump poderia ser novamente impedido. Embora o impeachment seja sobretudo um processo político, essa possibilidade deve ser mencionada. Se Trump for condenado pela Justiça, seria muito mais provável que a Câmara dos EUA votasse novamente pelo impedimento e que, ao contrário da última vez, o Senado confirmasse a decisão.
Curiosamente a Constituição dos EUA não diz em nenhum momento que um presidente não pode ser impedido após o mandato. Um processo de impeachment nesse cenário não seria mera vingança, e sim uma sábia medida preventiva. A punição prescrita pela Constituição no caso de condenação pelo Senado é de “desqualificação para manter e desfrutar de qualquer cargo de honra, confiança ou lucro nos Estados Unidos”. Em outras palavras, impedido pela Câmara e pelo Senado norte-americanos, Trump nunca mais poderia concorrer à presidência.
Tradução: Ricardo Romanoff
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