Neste momento surreal e apocalíptico, quando a melhor repórter investigativa cobrindo a seita da morte estilo David Koresh que está na Casa Branca é a adolescente Claudia Conway, de 16 anos, no TikTok, contando tudo enquanto luta para manter sua mãe fanática por Trump sob controle, é hora de fazer um balanço dos EUA.
Terroristas fortemente armados tinham planos para sequestrar a governadora do Michigan; enquanto isso, o presidente Donald Trump, doente com covid-19 e provavelmente dopado com um coquetel de esteroides e drogas experimentais; tentou jogar a culpa nela. O presidente dos EUA chama soldados americanos que morreram na guerra de “fracassados e otários”. Uma fanática antiaborto que foi uma “serva” no People of Praise, um grupo dissidente de cristãos carismáticos, foi indicada para a Suprema Corte por um homem acusado de má conduta sexual por mais de duas dezenas de mulheres. A indicada, Amy Coney Barrett, é a convidada de honra sem máscara de um evento foco de covid-19 no Rose Garden da Casa Branca, e pode estar a apenas algumas videochamadas de derrubar o Roe versus Wade.
É aqui que estamos agora.
Quatro anos atrás, os EUA entraram na loucura de Trump. Agora estamos há tanto tempo no escuro que é difícil ver um jeito de sair disso. Trump quer nos manter assim: uma nação catatônica, eternamente à beira de um colapso psicológico.
Os traços mais perigosos de Trump são sua absoluta falta de vergonha e sua habilidade patológica de empregar a Grande Mentira — a arma do autocrata. Ele vive repetindo mentiras e teorias da conspiração, o que leva a imprensa dócil e o público confuso a falar sobre elas, e assim distrai os americanos de suas ações escandalosas e possivelmente criminosas. Ele baseou toda sua presidência em teorias da conspiração, confundindo a imprensa que vem tentando cobrir seu mandato como se ele fosse um presidente normal. Os jornalistas mais desesperados de Washington são os checadores de fatos que contam as mentiras de Trump, quando é óbvio que quase tudo que sai da boca dele é mentira. Margaret Sullivan, crítica de mídia do jornal Washington Post, escreveu este mês que “a história definidora desta era é a recusa do jornalismo mainstream em negar um megafone gigante para Trump sempre ele levanta a mão”.
Os jornalistas mais desesperados de Washington são os checadores de fatos que contam as mentiras de Trump, quando é óbvio que quase tudo que sai da boca dele é mentira.
Na era das redes sociais, quando ninguém lembra o que aconteceu cinco minutos atrás, quanto mais há cinco meses, às vezes é difícil perceber quão brutais os anos Trump têm sido. Pode ser chocante lembrar, por exemplo, que Trump sofreu impeachment pelo Congresso apenas 10 meses atrás.
Mas não precisamos encontrar um retrato de Dorian Gray escondido num armário da Casa Branca para lembrar da maldade e feiura de Trump. Saia do Twitter e Instagram por alguns minutos, relembre alguns episódios-chave de apenas seu último ano como presidente, e fica óbvio como ele envenenou virtualmente tudo que tocou, tanto na política doméstica como na segurança nacional.
Nada que Trump fez foi pior do que sua abdicação total da liderança e responsabilidade durante a pandemia de covid-19. A recusa dele em levar a ameaça a sério, particularmente sua posição agressiva contra máscaras, criou um novo estereótipo da era da pandemia: o simpatizante branco de Trump numa loja Costco, que se recusa a usar uma máscara e ataca o funcionário que pede a ele para sair.
Trump transformou um simples acessório de pano, pensado para nos proteger de uma pandemia global, no último símbolo da nossa guerra cultural atual. Ele prejudicou a credibilidade dos Centros para Controle e Prevenção de Doenças, os CDC, líderes mundiais em saúde, entregando-os nas mãos de um diretor que encara apelos crescentes para fazer algo a respeito da interferência política.
Em vez disso, o diretor dos CDC Robert Redfield continua cedendo à Casa Branca; ele enfureceu os funcionários dos CDC e especialistas externos dando quase um passe livre para o vice-presidente Mike Pence, liberando-o para ir ao debate vice-presidencial deste mês com Kamala Harris, mesmo com a Casa Branca sendo um foco de covid-19. Na segunda-feira, o Government Accountability Office, um órgão fiscalizador do Congresso, disse que vai investigar queixas de que a administração Trump está politizando tanto os CDC quanto a Administração de Alimentos e Medicamentos, a FDA.
Mike Pompeo, o lacaio de Trump, apoia a alegação do presidente de que o covid-19 é um complô da China; Trump fez Roland Freisler — desculpe, quis dizer William Barr — ameaçar abrir processos contra governadores estaduais por seus esforços para conter o vírus. Trump imitou Eva Perón na sacada da Casa Branca, arrancando dramaticamente sua máscara para enfatizar, mais uma vez, que ele só se importa com sua imagem perversa e grotesca.
Para esconder a verdade sobre seus fracassos na pandemia, Trump também está perseguindo os fiscais designados para responsabilizar sua administração por como ela está lidando com a pandemia. Em abril, Glenn Fine, inspetor geral do Pentágono, foi tirado de sua posição de comando no painel estabelecido para monitorar o auxílio de coronavírus de $2 trilhões aprovado pelo Congresso. Christi Grimm, inspetora geral do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, foi demitida em maio depois de divulgar um relatório destacando a falta de testes e equipamentos de proteção em hospitais lidando com a pandemia.
Como Trump tem se recusado a lidar de maneira responsável com a covid-19, os americanos são tratados como bestas pestilentas pelo resto do mundo, proibidos de viajar para o Canadá e boa parte da Europa. Um passaporte americano, antes invejado pelo mundo, agora é a marca de um portador da peste.
O racismo já era um cartão de visitas de Trump em sua campanha de 2016, e seus apelos racistas só pioraram desde que ele foi eleito. Ele respondeu ao movimento histórico de justiça social deste ano com retórica de ódio, chamando seus apoiadores racistas na frente de toda a nação durante seu primeiro debate presidencial, quando proclamou: “Proud Boys, recuem e se preparem”.
Acima de tudo, Trump tem respondido aos protestos do Black Lives Matter com uma guerra contra a justiça social, contra a América Azul, contra cidades e estados democratas — uma estratégia pensada para agradar eleitores brancos velhos da Flórida e Pensilvânia rurais que assistem à Fox News. Ele mandou agentes militarizados do Departamento de Segurança Interna, sua nova polícia secreta, para atacar e deter anonimamente manifestantes que ele chamou de “bandidos” nas ruas de Portland — uma ação pensada não para lidar com os protestos, mas para causar mais turbulência, para que ele pudesse explorar o caos durante sua campanha. Ele colocou agentes da Segurança Interna para espionar manifestantes em 15 cidades com drones, helicópteros e aviões; ele fez Barr dizer aos procuradores para usar acusações de sedição contra os manifestantes; fez Barr ameaçar abrir um processo contra a prefeita de Seattle por não lidar com os manifestantes com a mesma violência que o presidente queria; designou Nova York, Seattle e Portland como “jurisdições anárquicas” por causa dos protestos, e ameaçou não repassar fundos federais para essas cidades.
Trump disse que remover estátuas de confederados traidores de cidades do Sul era um ataque ao “patrimônio americano”, e prometeu bloquear qualquer esforço para mudar os nomes de confederados de bases militares dos EUA. Agora ele está envolvido num esforço pré-eleição de última hora para minar direitos eleitorais e poder político negro, fazendo advogados do Partido Republicano abrirem processos para impedir procedimentos para expandir a votação no meio de uma pandemia, e colocou um amigo político no comando do Serviço Postal dos EUA para tentar retardar a entrega de correspondências, numa tentativa perversa de dificultar a votação por correio.
A crueldade tem sido o objetivo principal da ofensiva impiedosa de Trump contra a imigração, separando pais buscando asilo de seus filhos pequenos, e jogando crianças em jaulas em centros de detenção de migrantes. O governo Trump continua com suas políticas brutais de imigração mesmo durante a pandemia; funcionários terceirizados do governo obrigam migrantes e seus filhos a comer gelo, uma tentativa de enganar checagens de temperatura que eles precisam passar para embarcar nos voos de deportação. Trump agora ameaça as “cidades santuários”, dizendo que não repassará auxílios de coronavírus se elas continuarem limitando a cooperação entre a polícia local e agentes federais de imigração.
A dor de cabeça crônica da presidência de Donald Trump tem sido uma evidência conclusiva de que a Rússia interferiu na campanha presidencial de 2016 para ajudá-lo a vencer, e que Trump e sua equipe fizeram tudo que podiam para colaborar com Moscou. Ele buscou mais interferência estrangeira para a campanha de 2020, quando tentou pressionar oficiais ucranianos para fabricar provas falsas contra Joe Biden. Suas ações criminosas na Ucrânia finalmente levaram a seu impeachment na Câmara.
Para distrair dessas verdades, Trump e seus capangas espalharam muitas mentiras. Eles rotularam a investigação Trump-Rússia como uma farsa; disseram que o presidente estava sendo vítima de uma “caça às bruxas” liderada pelo advogado especial Robert Mueller; afirmaram que um mitológico “estado profundo” estava atrás dele; incentivaram teorias da conspiração doentias, incluindo a de que um funcionário democrata assassinado, não a inteligência russa, foi responsável pelos e-mails e documentos democratas hackeados; e divulgaram a mentira descarada de que foi a Ucrânia, não a Rússia, que interferiu na eleição de 2016, e que essa intervenção deveria ajudar Hillary Clinton, não Trump.
A nova falsidade deles mais uma vez envolve Biden, Ucrânia e um notebook misteriosamente descoberto numa loja de conserto de computadores, e entregue ao jornal New York Post graças ao amigo íntimo de Trump, Rudy Giuliani. A matéria do New York Post era tão detestável que pelo menos um repórter se recusou a assiná-la. A comunidade de inteligência dos EUA já tinha alertado a Casa Branca de que Giuliani tem sido alvo de uma operação da inteligência russa para disseminar desinformação sobre Biden, e o FBI está investigando se a história estranha sobre o notebook de Biden é parte de uma campanha de desinformação russa. Esta semana, um grupo de ex-oficiais de inteligência publicou uma carta dizendo que a história do notebook de Giuliani tem as marcas registradas clássicas de desinformação russa (eu separei a verdade das mentiras de Trump sobre Biden e a Ucrânia num texto ano passado).
Enquanto Trump repete teorias da conspiração, ele demite qualquer um que tenta falar a verdade. Em fevereiro, imediatamente depois de ser absolvido de seu julgamento de impeachment pelo senado republicano, o presidente demitiu Gordon Sondland, embaixador americano na União Europeia, e o tenente-coronel Alexander Vindman, membro do Conselho de Segurança Nacional. Os dois testemunharam contra Trump no processo de impeachment na Câmara. Vindman, que depois se aposentou do exército, foi vítima de uma “campanha de bullying, intimidação e retaliação” do presidente, afirmou o advogado do militar.
Em abril, Trump também demitiu Michael Atkinson, inspetor geral da comunidade de inteligência, que disse ao Congresso que um informante anônimo da CIA tinha feito uma queixa sobre Trump e a Ucrânia. O alerta de Atkinson ajudou a desencadear os procedimentos de impeachment. Como um dissidente soviético a caminho do gulag, Atkinson fez um apelo aos informantes da inteligência para não desistir diante dos expurgos stalinistas de Trump: “Por favor, não deixem que os eventos recentes silenciem sua voz”.
Steve Linick, inspetor geral do Departamento de Estado, foi demitido em maio, enquanto investigava alegações de que o secretário de Estado Pompeo e sua esposa tinham pedido a funcionários do Departamento de Estado para fazerem serviços pessoais para eles. Ele também estava investigando como Trump declarou ilegalmente uma “emergência” para contornar a necessidade de aprovação do Congresso para vender armas para a Arábia Saudita.
As únicas investigações governamentais que Trump quer são contra seus inimigos, e ele ficou muito feliz quando o inspetor geral do Departamento de Justiça lançou um inquérito sobre a investigação do FBI sobre seus laços com a Rússia — mas ficou furioso quando o inspetor geral concluiu, em dezembro passado, que, apesar de alguns erros, o FBI tinha motivos suficientes para abrir a investigação original, e que os oficiais do FBI não agiram com vieses políticos. Para apaziguar o presidente, Barr teve que distorcer as descobertas do relatório, para tentar fazer parecer que ele era mais contundente do que realmente era.
Barr também mexeu os pauzinhos para que John Durham, um procurador federal maleável, conduzisse a investigação especial sobre a comunidade de inteligência lidando com caso Trump-Rússia. Durham disse que não vai divulgar suas descobertas antes da eleição, quase com certeza porque não encontrou muito que pudesse excitar a base de eleitores de Trump (outra investigação especial pensada por Barr para perseguir os inimigos de Trump — sobre se oficiais da administração Obama “desmascararam” identidades de americanos em relatórios de inteligência — acabou de ser abandonada).
Depois de ficar claro que Durham não divulgaria um relatório antes da eleição, Trump, de maneira previsível, surtou sobre Barr ter fracassado em prender Barack Obama e Joe Biden. Mas parece que o presidente esqueceu quanto Barr já fez para perseguir seus inimigos, enquanto protegia a ele e seus amigos. Uma das ações mais descaradas de Barr para proteger Trump veio em setembro, no caso de E. Jean Carroll, que processou Trump por difamação por negar publicamente que ele a assediou sexualmente numa loja de departamentos nos anos 1990. Barr agiu para bloquear o caso de difamação dela, criando o argumento absurdo de que Trump estava agindo em seu papel oficial de presidente e chefe do governo quando disse que não assediou Carroll, acrescentando que “ela não faz meu tipo”. Essa medida permitiria que o Departamento de Justiça substituísse o governo como o réu no caso em vez de Trump, bloqueando assim o processo de Carroll.
Na verdade, Barr tem feito tanta vista grossa para a corrupção e crimes de Trump e seu círculo, que o gabinete de procuradoria-geral do estado de Nova York acabou tendo que tomar o lugar do Departamento de Justiça ausente.
A procuradora-geral de Nova York, Letitia James — agora a coisa mais próxima que o país tem de um verdadeiro procurador-geral — abriu um processo em agosto acusando oficiais de alto escalão da Associação Nacional de Rifles, a NRA, de usar fundos do grupo ao longo de décadas de fraudes, drenando 64 milhões de dólares da organização sem fins lucrativos em apenas três anos. Ela também está investigando a Organização Trump, por supostamente inflar de maneira ilegal o valor de suas ações.
Ainda assim, as ações dos acólitos de Trump às vezes são tão descaradas que é difícil mesmo para procuradores federais ignorá-las. Em agosto, Steve Bannon, o ex-estrategista chefe de Trump e um de seus capangas mais visíveis na campanha de 2016 e nos primeiros dias de seu mandato, foi preso no iate de uma bilionário chinês, acusado de roubar milhões de dólares de americanos num esquema para levantar fundos online para construir um muro na fronteira com o México.
Seria tirar um grande peso dos ombros se livrar de Donald Trump e seus comparsas, mas só isso não será suficiente. Mesmo se Trump não for reeleito, a podridão dentro do Partido Republicano — particularmente seu racismo profundo — não vai desaparecer em breve. Com ou sem Trump, os EUA estão numa luta até a morte de uma geração entre defensores da identidade branca do que resta do Partido Republicano, e defensores de uma sociedade mais diversa, principalmente os democratas.
Usando a Suprema Corte, o Senado e o Colégio Eleitoral, Trump e o Partido Republicano estão tentando construir defesas contra uma demografia em mutação. Esses mecanismo permitem que o partido controle os estados certos para continuar no poder, mesmo se o partido não representa a maioria nacional. O objetivo do Partido Republicano é a hegemonia política que vem do controle estratégico de estados-chave; isso explica um tuíte recente do senador republicano do Utah, Mike Lee, onde ele apontou que “não somos uma democracia”.
Essas são as mesmas ferramentas que o sul escravocrata usou na década de 1850 para tentar impedir a ascensão política da maioria do norte e meio oeste, que estava começando a se voltar contra a escravidão. Essa foi a decisão da Suprema Corte no caso Dred Scott em 1857 que gerou uma enorme frustração no norte do país.
Mas tudo isso também levou à ascensão de Abraham Lincoln.
Tradução: Marina Schnoor
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