Um tsunami inundou o Brasil no momento em que publicamos a reportagem sobre o julgamento de estupro de Mariana Ferrer. Tanto o texto quanto o vídeo invadiram timelines, telejornais, mesas-redondas, locais de trabalho e casas. A expressão “estupro culposo” viralizou, Anitta se manifestou, assim como a ministra Damares Alves, o ministro do STF Gilmar Mendes, o apresentador Ratinho, o Craque Neto, clubes de futebol. O Brasil parou nesta semana para falar de estupro, consentimento e injustiça.
Estava ali, resumido naquela expressão, o sentimento que tantas mulheres já viveram ou temem viver: o de serem, sempre elas, as responsáveis pela violência que sofrem. “Foi estuprada porque provocou” é uma frase corrente quando se debate essas terríveis denúncias. Que bom que o jornalismo ainda pode contribuir com o debate público.
No dia da publicação, conforme a reportagem ia sendo compartilhada, uma crítica emergiu, vinda sobretudo de juristas e jornalistas. Eles colocavam em dúvida o uso da expressão “estupro culposo”, que não consta nas alegações do Ministério Público (que pediu absolvição do réu, André de Camargo Aranha) e nem na sentença do juiz, que endossou a tese exótica do MP. Que fique muito claro aqui: nós nunca dissemos que essa expressão estava nos autos.
Mas a situação nos fez parar para conversar. O que vem abaixo é o resumo dessa reflexão.
Nós, os editores da reportagem, usamos no título da matéria a expressão “estupro culposo” entre aspas, justamente para mostrar ao leitor que estávamos diante de uma ideia nova, criada a partir da tese do promotor – e acatada pelo juiz – como explicaremos mais adiante.
Veículos de imprensa usam aspas para marcar neologismos e expressões figuradas o tempo todo. A Veja usou aspas nesta semana nesse espírito: “‘Profecia’ de Bernie Sanders viraliza nas redes sociais”. “As aspas podem ser empregadas também para ressaltar uma palavra ou expressão fora do contexto habitual”, como diz o Manual de Redação do Estadão.
Os exemplos são vastos. Em fevereiro, o Estadão publicou o seguinte: “Eduardo Bolsonaro ‘dá banana’ para deputadas que defendem jornalista atacada pelo presidente”. Mais uma vez, aspas como recurso retórico, no sentido figurado. Lembra das “pedaladas fiscais”? Em 2016, o Congresso derrubou a presidenta em cima de uma expressão amplamente cravada em manchetes sem qualquer valor jurídico formal. Um exemplo do G1: “Dilma diz que todos os governos anteriores fizeram ‘pedaladas fiscais‘”.
É claro que esses casos não se comparam entre si. Mas é fato que o debate sobre “estupro culposo” esquentou em alguns círculos pelo fato de jornalistas também usarem aspas em títulos para sinalizar o uso literal de uma expressão. É uma confusão oculta da imprensa: uma hora a aspa é figurativa, outra hora é o oposto – literal. O leitor não fica perdido porque o contexto costuma desfazer a potencial confusão. Nós mesmos já usamos desse expediente. Não antecipamos que, desta vez, haveria confusão. Mas isso não é desculpa e não diminui nossa responsabilidade com o público. Se parte dele se incomodou neste caso, precisamos considerar e ajustar. A responsabilidade da boa comunicação é, sempre, do emissor. Somos nós os versados na arte de se fazer entender.
Às vezes, o jornalista não erra fatos, mas erra por falta de clareza. Foi o nosso caso. Usamos as aspas para sinalizar o espírito figurado, mas parte da audiência interpretou como uso literal da expressão, como se tivéssemos copiado e colado ela dos autos do processo. Erramos ao não deixar ainda mais claro no corpo do texto que a expressão “estupro culposo” não estava nos autos, mas era uma interpretação do que defendeu o promotor em suas alegações finais. Deixamos de considerar, também, que boa parte das pessoas lê apenas a manchete. Quando percebemos que essa segunda leitura estava se tornando polêmica, alteramos o texto às 21h45 de terça-feira – e sinalizamos isso no rodapé da matéria, como qualquer veículo sério deve fazer.
Enquanto isso, o “estupro culposo” havia ganhado vida própria, levando a reportagem a ser o centro canalizador do debate que realmente importa: a segurança das mulheres. Indignadas, milhões delas viram ali, naquela expressão, o resumo do horror que antes não conseguiam explicar. Como registrou o escritor Sérgio Rodrigues, “a figura juridicamente inexistente do ‘estupro culposo’ provocou uma confusão inicial, antes de se revelar esclarecedora. (…) Colou porque faz uma paródia sucinta da misoginia estrutural brasileira”. O jornalista Reinaldo Azevedo usou outra figura retórica para definir: o “estupro por merecimento”.
A expressão do Intercept sintetiza com perfeição como a justiça brasileira trata muitos casos de estupro. Todos os elementos e provas estão dados, mas o juiz entende que a mulher não merece justiça porque ela não foi ainda mais explícita sobre não dar consentimento durante o episódio. A expressão capturou um sentimento coletivo silenciado e deu voz a quem sequer sabia como falar.
“Como pesquisadora em antropologia jurídica especialista em violências contra meninas e mulheres, foi com pesar, mas não com surpresa que recebi a reportagem e a discussão decorrente acerca do ‘estupro culposo’. Em diversas situações ao longo de quase dez anos de pesquisas de campo entre profissionais do sistema de justiça, ativistas por direitos, legisladores e mulheres em situação de violência, encontrei falas, usos e retóricas que colocavam em prática a ideia de ‘estupro culposo’”, escreveu na Marie Claire Beatriz Accioly Lins, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Núcleo de Estudos Sobre os Marcadores Sociais da Diferença da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Branca Vianna, idealizadora e apresentadora do ótimo podcast Praia dos Ossos, que recupera o julgamento do assassinato de Ângela Diniz, resumiu bem o caso de Mariana Ferrer: “É muito raro um caso de estupro em que você tenha tantos elementos quanto os que Mariana conseguiu reunir. Ela foi na polícia, tem o exame de corpo de delito, o DNA, mensagens para amigos e, mesmo assim, ele não foi condenado. Isso é muito assustador. Toda mulher tem medo de estupro e a maioria já passou por ao menos um momento na vida em que sentiu esse medo real. Com essa sentença, o medo aumenta muito”.
Em casos de estupro, é sólida a tese, nos tribunais, de que a palavra da vítima tem alto valor de prova. Um acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina (justamente o estado onde ocorreu o caso de Mariana) utilizado como precedente em outros julgamentos da mesma Corte diz: “No crime de estupro, geralmente praticado na clandestinidade, a palavra da vítima, quando isenta de ódio ou com o intuito de prejudicar o réu, assume relevante valor probatório, pois é ela quem melhor pode indicar o fato, em seus mínimos detalhes, e identificar o agente repressor”, escreveu o desembargador Roberto Lucas Pacheco, em 2014. Mariana Ferrer tem sua palavra e suas provas, mas ainda não tem um julgamento justo.
O caso teve dois promotores. O primeiro, Alexandre Piazza, considerou que havia indícios suficientes para que Aranha respondesse pelo estupro de uma mulher vulnerável, que não tinha condições de consentir. Além da palavra de Mariana, há provas que sustentam a acusação – exame de DNA, rompimento de hímen, sangue, mensagens e o depoimento do motorista de Uber que a levou para casa. No meio do processo, Piazza deixou o caso. O novo promotor, Thiago Carriço de Oliveira, ao assumir, divergiu do colega e disse que o acusado não tinha como saber se Mariana estava apta ou não a dar seu consentimento.
Caso a tese do primeiro promotor prevalecesse, Aranha poderia ser condenado por estupro de vulnerável. Já na tese de Carriço, se um eventual estupro existiu, foi sem dolo. Escreveu Carriço: “Se a confusão acerca da idade pode eliminar o dolo [em caso de relações com menores de 14 anos que pareçam ter mais idade do que isso], por que não aplicar-se a mesma interpretação com aquele que mantém relação com pessoa maior de idade, cuja suposta incapacidade não é do seu conhecimento?”. Sem o elemento do dolo, Aranha foi absolvido por insuficiência de provas.
A história causou espanto à promotora Valéria Scarance. “Nos meus processos, nunca me deparei com essa tese de que o réu não sabia que a vítima estava vulnerável no momento do ato”, disse ao HuffPost. Coordenadora do Núcleo de Gênero do Ministério Público de São Paulo, ela completa: “Há alguns julgados em que o réu alega que não sabia que a vítima era menor de 14 anos, por exemplo, mas em outros casos de vulnerabilidade, nunca vi”. Para dar solidez à sua tese, Carriço cita dois autores da área. Um deles é Rogério Greco, ex-procurador de Justiça, pastor evangélico e membro da Anajure, que tem apoio de Bolsonaro e já contou com Damares Alves em seus quadros. Greco debate a legalização da tortura no Brasil.
Capturar um sentimento popular com apenas duas palavras está na raiz do que fazemos todos os dias no Intercept: investigar, informar e interpretar. Grande parte da imprensa muitas vezes se limita a reproduzir aspas literais de autoridades. Esse jornalismo também tem seu espaço, mas nós remamos em outra direção.
Buscamos mastigar o que está por trás do vocabulário técnico, da linguagem burocrática, muitas vezes esculpida para complicar a leitura e esconder as reais intenções das autoridades atrás de um sofisticado jogo de palavras. Quem se mobilizaria para ir às ruas – haverá protestos em muitas cidades neste final de semana graças ao caso exposto por nós – se reportássemos que André Aranha foi inocentado por coisas como “erro de tipo, do artigo 20 do Código Penal”?
Sem o termo “estupro culposo”, o debate jamais teria chegado aonde chegou. A sentença de absolvição de Aranha, aliás, já tinha sido manchete na imprensa quase um mês atrás, e não se viu mobilização nenhuma. A história, quando dada pelo Intercept, furou todas as bolhas. Por causa da leitura perspicaz da repórter Schirlei Alves, conseguimos desvendar um mecanismo de opressão sofisticado levado a cabo por pessoas poderosas que mantém estruturas opressoras e arcaicas. Essa é uma das missões do Intercept Brasil.
Para o jurista Lênio Streck, a sentença deve ser anulada: “Como referi, o problema deste caso é outro, porque há uma nulidade incontornável: a forma como foi submetido o ‘interrogatório’ da vítima. Digo interrogatório porque me pareceu, naquele momento, que ela é que estava sofrendo todas as agruras do processo penal na condição de acusada.” Ele chamou o caso de “estupro moral”, em linguagem obviamente figurada.
A imprensa tradicional, que faz por esporte ignorar a maior parte das nossas denúncias, entrou no barco. A Folha não hesitou em colocar “estupro culposo” numa manchete. O Jornal Nacional também encampou a expressão.
A história também viralizou, é claro, porque o vídeo é revoltante. As imagens são inapeláveis: o advogado de Aranha humilha Mariana na tentativa de mostrar que, se seu cliente passou do sinal vermelho, foi porque ela pediu ao usar roupas sensuais em fotos. Retratamos isso ao compilar os momentos mais marcantes do nojento ataque do advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho durante o depoimento de Mariana, que durou, ao todo, 45 minutos.
Mas tudo que gera dezenas de milhões de visualizações incomoda e cria debates colaterais. O Ministério Público de Santa Catarina, na defensiva, ficou incomodado com as cobranças públicas sobre a letargia do promotor Thiago Carriço de Oliveira diante das agressões à Mariana. O MP nos acusou, falsamente, de manipulação do vídeo, dizendo que Carriço, na íntegra da filmagem, “apresenta inúmeras outras interrupções” contra as investidas truculentas do advogado. Vamos deixar essa mentira de lado e nos ater aos fatos.
Durante os 45 minutos em que Mariana Ferrer é humilhada pelo advogado, Carriço só se manifesta aos 34 minutos e 39 segundos. Nesse momento, ele intervém – não para defender Mariana –, mas para chamar sua atenção. Alega o promotor Carriço, inclusive, que a audiência “estava indo bem”. O promotor segue, repreendendo Mariana por ela ter questionado a qualidade da perícia de seu caso. E, acrescenta Carriço, o processo de Mariana é “o único processo de réu solto que está sendo examinado durante a pandemia”, insinuando privilégio. O juiz lhe agradece. Se o MPSC vê isso como interrupção para defender Mariana, há algo de errado.
Se existe algum tipo de reclamação que pode ser feita, essa sim, é de que não colocamos todas as agressões a Mariana em nosso resumo. O Estadão publicou ainda outros momentos de humilhação quando obteve a íntegra do vídeo – e não encontrou nenhuma reação enérgica de Carriço contra o advogado. Porque isso simplesmente nunca existiu naquele dia.
A repercussão que o texto e o vídeo tiveram pode ajudar a mudar os rumos do caso e da legislação brasileira.
Um grupo de deputadas, revoltadas com o video, quer criar uma lei para tornar crime a “violência institucional”, exatamente como no caso de Mariana Ferrer. Outra vítima de estupro que também diz ter sido ofendida pelo advogado Gastão da Rosa alertou à Veja que o país precisa aproveitar a discussão em torno do caso para humanizar o sistema de acolhimento às vítimas de estupro. “Isso acontece com muitas Marianas. Após o estupro, meu exame de corpo delito foi feito por um homem. Na delegacia, a psicóloga me perguntou se eu tinha sentido um orgasmo. Depois, perguntou por que eu estava chorando quando soube que o meu hímen havia sido rompido. Eu era só uma criança de 13 anos”.
Em meio a tanta dor, traz alento perceber a união formada em torno dessa ideia simples e poderosa: se uma mulher for estuprada, jamais será sua culpa, e muito menos podemos consentir com a tese de que alguém pode cometer um ato sexual sem ter plena certeza de que a mulher consentiu. Não existe estupro culposo.
Ao longo dos anos, a antiquada legislação dos anos 1940, que sempre tratou mulheres como pessoas de segunda classe, foi sendo aperfeiçoada com inovações como Lei Maria da Penha (2006), Estupro de Vulnerável (2009), Lei do Feminicídio (2015) e Importunação Sexual (2018). Nada disso existia nos códigos, mas os códigos devem refletir a vida lá fora, e não o contrário. Quando o jornalismo informa e, ao mesmo tempo, vocaliza um sentimento social a ponto de provocar transformação, ele está vencendo. Ao menos o jornalismo do Intercept. Ou, como sempre dizemos por aqui: se não incomoda ninguém, não serve pra nada.
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