* Essa reportagem passou três dias indisponível aos leitores (entre 11h42 de domingo, 15 de novembro, e 17h10 desta terça, 17 de novembro) devido à censura determinada pelo juiz Alexandre Henrique Novaes de Araújo da justiça eleitoral do Amazonas a pedido do deputado Ricardo Nicolau. Fomos atrás e te contamos aqui o que levou a essa decisão.
O deputado estadual Ricardo Nicolau viu na pandemia de covid-19 uma oportunidade de antecipar em meses a campanha eleitoral para a prefeitura de Manaus. Sua família é dona da maior rede de hospitais privados do Amazonas, a Samel, que ficou responsável pela administração do Hospital de Campanha Municipal Gilberto Novaes, montado às pressas em abril por meio de uma parceria público-privada com a prefeitura de Manaus. Assim que a doença começou a se espalhar pelo estado, o deputado do PSD se licenciou do cargo para se “dedicar integralmente ao combate ao coronavírus na função de diretor da Samel“. Antes de a unidade ser desativada, em junho, Nicolau aproveitou o acesso privilegiado ao interior do hospital de campanha para gravar imagens que hoje são usadas na sua propaganda eleitoral.
Nas imagens, que aparentam ter sido filmadas por profissionais, o candidato aparece vestido de branco, visitando pacientes, como se fosse um dos médicos do local – dando a entender que foi o responsável pelo tratamento das centenas de pacientes que passaram pelo hospital. A estratégia fez Nicolau subir nas pesquisas e ter a chance de disputar o segundo turno para a prefeitura de Manaus. Ele começou a campanha em quarto lugar, com cerca de 5% dos votos, mas na última pesquisa do Ibope, divulgada no dia 11 de novembro, já aparece em terceiro, com 14%, tecnicamente empatado com o segundo colocado David Almeida, que tem 18%.
A propaganda também pode configurar irregularidade eleitoral. Há ao menos dez processos em curso contra o candidato movidos por seus adversários no pleito, citando o uso que ele tem feito da Samel e de sua atuação no hospital durante a campanha.
Quatro dessas ações caíram no gabinete da juíza eleitoral Margareth Rose Cruz Hoaegen. Duas delas ainda precisam ser analisadas, mas ela já mostrou qual deve ser o seu entendimento ao determinar que “tal conduta não se revela como apta a desequilibrar a corrida eleitoral”. Ela julgou dois processos: um movido pela campanha do candidato à prefeitura Alfredo Nascimento, do PL, e outro pela campanha do também candidato e ex-governador Amazonino Mendes, do Podemos. Ambos questionam o uso do nome do grupo Samel e das imagens filmadas dentro do hospital público de campanha por Nicolau alegando que se trata de abuso do poder econômico ou propaganda ilegal. Nas decisões, Hoaegen diz que “a associação do candidato à empresa de saúde [Samel]” é inegável, mas não é um problema já que “a empresa de saúde faz parte da trajetória do candidato, de modo que explorar suas realizações como meio de demonstrar sucesso profissional faz parte das plataformas de campanha”.
Na ação movida pela campanha do adversário Nascimento, também foi denunciado que o banco de dados da Samel estava sendo usado por Nicolau, devido aos vídeos com depoimentos de pacientes que haviam se internado no hospital de campanha. A juíza entendeu que “o candidato pode estar utilizando de dados constante no banco de informações” e proibiu que ele enviasse “mensagens eletrônicas ou correspondências por meio físico e ligações telefônicas destinadas a eleitores constante daquele cadastro”. Nicolau nega que tenha usado dados privilegiados dos pacientes.
Em um dos vídeos veiculados no horário eleitoral gratuito no dia 12 de outubro, uma mulher que ficou internada no hospital de campanha por causa da covid-19 diz que o “doutor Ricardo Nicolau deu muito apoio”. “Todo dia ele passava lá. Eu me sentia mais confiante de ver a pessoa que montou o hospital fazer aquilo por amor”, disse. Relatos parecidos de outras pessoas e que fazem referência ao “doutor” também foram usados nos programas.
Embora o candidato insista em dizer, nos seus programas eleitorais, que tem “mais de 30 anos que trabalho dentro do hospital” e que montou “em quatro dias um hospital de campanha com 180 leitos” a maior trajetória de Nicolau passa longe da área da saúde. Seu primeiro cargo foi como vereador de Manaus, aos 21 anos. Hoje, aos 45, ele está no quinto mandato como deputado estadual e já foi presidente da Assembleia Legislativa do Amazonas. Antes da pandemia, o agora candidato não era diretor da Samel, mas passou a ostentar o título desde que se licenciou do cargo de deputado no começo da pandemia. Ele tampouco é médico e sequer possui ensino superior completo, como consta no site do TSE. A roupa branca que usa nos vídeos de campanha enquanto visita leitos de pacientes não passa de figurino.
Por meio da assessoria de comunicação, Nicolau insiste que “desde muito jovem” acompanhava o pai, que é médico, nos hospitais da família e que “nunca informou ou deu a entender que é médico e que “sempre usou branco no dia-a-dia, mas jamais jaleco”.
A magistrada que permitiu que o deputado continuasse usando a marca da Samel em suas propagandas na televisão é também grande amiga de Jeanne Nicolau, esposa do seu irmão, Luís Alberto Nicolau, ele sim diretor-presidente da Samel. Fotos de redes sociais mostram que a juíza Hoaegen e a cunhada de Nicolau fazem parte de um grupo de amigas que se reúnem em festas de aniversário e restaurantes. Em uma foto postada pela magistrada em janeiro de 2018 em seu instagram, ela diz que está “festejando a linda e queridíssima Jê”, referindo-se a cunhada do candidato Nicolau, Jeanne. Seu perfil é fechado, mas nós tivemos acesso a um print da postagem. Jeanne e a juíza estiveram também juntas em eventos de fim de ano em ao menos cinco ocasiões entre 2014 e 2019, segundo imagens do Instagram da juíza ou de amigas dela a que tivemos acesso. Em 2019, a festa foi na casa da magistrada. Outra foto mostra também a juíza na comemoração do aniversário de Jean Cleuter, irmão de Jeanne, advogado de Nicolau, e segundo maior doador individual da campanha do deputado. Ele doou R$ 250 mil para a campanha de Nicolau, atrás apenas da doação do irmão do candidato, que doou R$ 1 milhão. Entramos em contato com o TRE e a magistrada, que não nos responderam até a publicação desta reportagem.
Advogado especialista em direito eleitoral e coordenador de comunicação da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, Luiz Eduardo Peccinin, explica que existem muitas formas de um candidato abusar do poder econômico. Uma delas é se utilizar da estrutura financeira ou empresarial para se beneficiar eleitoralmente. “Se for comprovado que ele [Ricardo Nicolau] se aproveitou do acesso que tinha aos atendimentos [no hospital municipal de campanha], isso pode se configurar abuso do poder econômico e pode levar à cassação do mandato e à decretação de inelegibilidade”, afirma.
Ricardo Nicolau também exagera quando diz que montou o hospital de campanha de Manaus. A unidade que tratou pacientes na fase mais crítica da epidemia no estado, é fruto de parcerias público-privadas entre a prefeitura da capital e várias empresas além da Samel, como a Moto Honda da Amazônia, que construiu o refeitório, e o Instituto Transire, que doou um tomógrafo no valor de R$ 3 milhões. A população também ajudou, fazendo doações para uma conta da prefeitura criada somente para este fim.
A ação movida contra Nicolau pela campanha do ex-governador e também candidato a prefeito Amazonino Mendes, do Podemos, considera que o grupo Samel está fazendo publicidade da rede durante o horário eleitoral gratuito. Em um dos programas exibidos, o candidato mostra o prédio do novo Hospital da Samel, em fase final de construção. O vídeo ainda traz a história do Grupo Samel, com direito a depoimentos do seu fundador Luiz Fernando Nicolau, pai do candidato, e do diretor-presidente e irmão Alberto Nicolau. Essa publicidade de mão dupla beneficia o candidato, por fazê-lo parecer um grande gestor que constrói obras importantes para a cidade, e a Samel, que ganha espaço de propaganda gratuita.
A juíza Sanã Nogueira Almendros de Oliveira, coordenadora da propaganda eleitoral em Manaus, ao julgar uma das ações contra Nicolau, movida pela campanha do adversário David Almeida, do Avante, proibiu a veiculação da marca da Samel nos programas eleitorais do candidato. Ela justificou que “a promoção de marca ou produto, mesmo que seja feita inadvertidamente, deve ser rechaçada”. Contrariado, o candidato pediu a suspeição da magistrada, alegando que ela está sendo parcial e “é a única que rema contra a maré, sendo que esta maré trata-se da legislação eleitoral”.
A legislação, lembra o advogado Peccinin, diz que a propaganda eleitoral não pode ser utilizada para fins comerciais, assim como um candidato não pode relacionar a sua campanha ou conectar suas propostas a uma empresa porque “o serviço prestado pela empresa e toda a sua estrutura favorece o candidato”.
Surpreende que a própria Samel tenha se prontificado a administrar o hospital municipal de campanha, doando medicamentos e funcionários, sem ganhar nada em troca. Como mostramos em maio, o hospital particular da rede que atendia pacientes com a covid-19 cobrava até R$ 100 mil adiantado para fazer uma internação na UTI. Para a campanha de Amazonino, o interesse do adversário ficou evidente poucos meses depois. “Analisando retroativamente o suposto bomsamaritanismo”, diz um trecho da ação movida pela coligação do adversário Amazonino Mendes, “o que verdadeiramente ocorreu fora a tentativa de construção de capital político a partir do sofrimento das vítimas da pandemia”.
A Samel tentou, inclusive, pegar de volta os equipamentos que havia doado ao hospital de campanha. Segundo a empresa, o objetivo era levar o material ao estado de Roraima, onde instalou outra unidade de saúde para tratar pacientes com a covid-19 gratuitamente. A prefeitura de Manaus se recusou a entregá-los. O diretor-presidente do grupo e irmão de Ricardo Nicolau, Alberto Nicolau, disse que era “absurdo” o bloqueio dos aparelhos cedidos pela Samel e pela Transire” e que iria acionar a justiça. Por e-mail, a prefeitura de Manaus informou que uma decisão judicial determinou que materiais e equipamentos doados pelas empresas fossem devolvidos.
Questionei o candidato sobre a comprovada amizade da juíza Hoaegen com membros da sua família, o que levanta suspeitas quanto às decisões favoráveis a ele. Por e-mail, a assessoria de comunicação de Nicolau respondeu que “sugerir ou acusar uma juíza de tomar uma decisão para privilegiar uma campanha é algo complexo do qual o ônus da prova é de quem acusa”. E acrescentou que o candidato “não produziu qualquer propaganda comercial dentro do horário eleitoral” e que “divulga a montagem do hospital de campanha porque são fatos que fazem parte da trajetória da empresa”. Ele alega que “a história da Samel se confunde com a história de Ricardo Nicolau”.
O mais pobre dos candidatos
Nicolau é um dos candidatos com menor patrimônio declarado à justiça eleitoral. O candidato diz que possui apenas dois carros nos valores de R$ 27 mil e R$ 69 mil e uma empresa de construção com capital de R$ 200 mil.
Em outubro, Nicolau moveu uma ação contra o jornalista Dante Graça, a Rede Calderaro de Comunicação, o Facebook e o Twitter para que fosse excluída uma matéria jornalística publicada no site e no jornal A Crítica e compartilhada nas duas redes sociais. O texto dizia que Nicolau havia chegado ao debate promovido pela afiliada da Band do estado no dia 1º de outubro “a bordo de um Jeep Compass, SUV de luxo que tem preço inicial de R$ 128 mil”, um valor bem maior do que os veículos declarados como bens.
O candidato alegou que era evidente o “intuito de prejudicar sua imagem”, e a juíza Mônica Cristina Raposo lhe deu razão. Na censura à reportagem, ela determinou “a imediata remoção do artigo” e a publicação do direito de resposta do candidato não apenas no site e nas redes sociais do grupo de comunicação, mas também no perfil pessoal do jornalista Graça. Por mensagem, o jornalista me disse que vai recorrer ao pleno do Tribunal Regional Eleitoral.
Apesar do baixo patrimônio declarado, Nicolau é o candidato que mais pretende gastar com a campanha. Até agora ele contratou R$ 5,5 milhões em despesas, de acordo com a prestação de contas parcial disponível no DivulgaCand. Ao todo, Nicolau já recebeu oficialmente mais de R$ 3 milhões, contando com as doações do seu advogado Cleuter, do irmão Alberto Nicolau e do diretório do seu partido.
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