Entrevista: 'Esquerda levou a sério o exemplo da Marielle', diz cientista político da UFRJ

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Entrevista: 'Esquerda levou a sério o exemplo da Marielle', diz cientista político da UFRJ

Bons resultados nas eleições legislativas são fruto de busca por espaço político, mas estratégia não é suficiente nas majoritárias, avalia Josué Medeiros.

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Eleições 2020

Parte 11


A onda de candidaturas de esquerda eleitas para as câmaras municipais no domingo parece um fruto do exemplo de Marielle Franco, avalia o cientista político Josué Medeiros, professor adjunto da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em entrevista ao Intercept.

“Me parece que a esquerda levou a sério o exemplo da Marielle. Aquilo que em 2016 foi exceção – pois foi a própria Marielle quem criou seu espaço – se generalizou. Do ponto de vista da análise política, é muito impressionante como o quadro é novo”.

No Rio de Janeiro, o Psol destronou Carlos Bolsonaro, o 02, e fez o vereador mais votado, Tarcísio Motta, e se tornou a maior bancada da Câmara ao lado de DEM e Republicanos. Em São Paulo, elegeu uma vereadora trans, Erika Hilton, triplicou sua presença e se tornou a terceira maior bancada no Legislativo municipal. Até a conservadora Curitiba elegeu a primeira vereadora negra em mais de 327 anos de história – a feminista Carol Dartora.

O bom resultado, contudo, não se repetiu nas eleições majoritárias, em que os partidos de esquerda – à exceção do Psol, ainda pequeno no poder Executivo – encolheram.

“Temos parlamentos muito permeáveis à representação de minorias. Agora, quando olhamos para a eleição majoritária, muda o quadro. Apenas representar os grupos mais organizados não basta. Você precisa ter justamente o voto do desorganizado, do senso comum”, analisa Medeiros.

“Veja a mobilização de votos que a extrema direita tem apresentado no mundo na reta final [de eleições]. Eles sabem abordar direitinho a pessoa que vai decidir na última hora, que não está prestando atenção no debate. E isso é algo que a esquerda ainda não consegue”, afirma.

Josué Medeiros é doutor em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Estuda partidos políticos de esquerda desde a graduação em história. Atualmente, é professor adjunto da UFRJ.

Conversei com Medeiros sobre a boa votação de Guilherme Boulos em São Paulo, a nova dimensão do Psol e como ficam os partidos de esquerda – e a relação deles com o PT – a partir dos resultados de ontem.

Leia os principais trechos da entrevista.

Intercept – A esquerda saiu bem das urnas nas eleições para as câmaras municipais, com a eleição de candidaturas LGBTQI, feministas, a primeira vereadora negra em Curitiba, mas foi mal nas eleições para prefeito. Como entender essa aparente contradição e o impacto disso para os partidos de esquerda?

Josué Medeiros  Para explicar o sucesso nas eleições legislativas, vale a pena lembrar da Marielle [Franco], do sucesso que ela teve em 2016 e depois do brutal assassinato dela em 2018. Me parece que a esquerda levou a sério o exemplo da Marielle. Aquilo que em 2016 foi exceção – pois foi a própria Marielle quem criou seu espaço – se generalizou. É óbvio que as militâncias dos movimentos negro, feminista, LGBTQI, vão falar ainda dos problemas estruturais que os partidos apresentam para ceder espaços a essas novas lideranças. Mas, do ponto de vista da análise política, de quem está na universidade, como eu, é muito impressionante como o quadro é novo. Há dois anos não dava imaginar que isso fosse acontecer.

É uma coisa muito positiva, que tem a ver com a representação de uma sociedade civil que é mais diversa no Sul e Sudeste e também nas capitais do Norte e Nordeste, e com os partidos querendo representar essa diversidade, querendo se conectar com isso. Essa é, inclusive, uma das maiores virtudes do sistema eleitoral brasileiro se comparado com vários outros: temos parlamentos muito permeáveis à representação de minorias. Outros países têm muitas dificuldades em incorporar essas mudanças sociais.

Agora, quando olhamos para a eleição majoritária, muda o quadro. Apenas representar os grupos mais organizados não basta. Você precisa ter justamente o voto do desorganizado, do senso comum, daquele e daquela que só vão prestar atenção [nas campanhas] nos últimos dias [antes da eleição].

Veja a mobilização de votos que a extrema direita tem apresentado no mundo na reta final [de eleições], como a gente viu aqui em 2018, nos Estados Unidos com Donald Trump tendo 10 milhões de votos a mais [que em 2016], com Crivella crescendo na reta final aqui no Rio. Eles sabem abordar direitinho a pessoa que vai decidir na última hora, que não está prestando atenção no debate. E isso é algo que a esquerda ainda não consegue.

‘Quando olhamos para o mapa das eleições para as prefeituras, o resultado foi ruim para toda a esquerda’.

Mirar o cidadão apolítico…

Exatamente. Porque essas pessoas têm suas opiniões, também, estão insatisfeitas, incomodadas, desiludidas. A questão é que a vocalização delas não vai para os canais com que estamos acostumados, que é de representação via sociedade civil organizada, ou via opinião pública nas redes sociais. É uma outra forma e uma outra temporalidade para se manifestar, que a extrema direita está interpretando muito bem, e o campo progressista não consegue ainda entender. Mesmo na universidade, há muita gente boa estudando sem ainda compreender exatamente o fenômeno.

Dá pra dizer que o Psol passa a ocupar hoje, principalmente em São Paulo, o lugar que o PT ocupou no final dos anos 1980 e início dos anos 1990, tanto pelo tamanho quanto pelo eleitorado forte na classe média? São momentos comparáveis?

O PT sempre teve votos na periferia de São Paulo, desde 1982. Isso é impressionante. É correto falar que o PT era um partido de classe média nos anos 1980, mas tinha um pé na periferia muito consolidado, fazia ali 30% dos votos em toda eleição. Aí chega a Marta Suplicy [prefeita de São Paulo entre 2001 e 2004] e [a aprovação do PT na periferia] dá um salto, graças às políticas públicas que ela implantou na região. Vem o lulismo, dá um salto. Isso ainda falta ao Psol.

O resultado do Boulos já foi muito impressionante. Pelo que vi, ele teve 20% nas zonas periféricas. É bastante voto, mesmo, para um partido que não tinha essa cultura, e com o PT tendo um candidato. É preciso analisar com cuidado e ver se, na periferia, a soma de votos de Boulos e Tatto iguala o que era o PT historicamente desde os anos 1980. Acredito que sim.

Se Boulos vence [o segundo turno], com certeza ocupou o espaço. A eleição da [Luiza] Erundina [como prefeita de São Paulo em 1988] foi fundamental para posicionar o PT na cidade de São Paulo. E, se experiência de governo não foi tão exitosa assim, tanto que [o PT] perdeu a eleição [em 1992], posicionou o partido, criou uma marca que o Psol não tem ainda, porque nunca governou. Hoje, a marca do Psol é legislativa, com muita aceitação, respeito, legitimidade, para ocupar o papel de fiscalizador. Enquanto não tiver o que mostrar na gestão, fica capenga para ocupar plenamente o lugar que o PT já tinha no final dos anos 1980.

Desde a saída de cena de Leonel Brizola que o PT reinou soberano na esquerda, era o líder natural dela Os bons resultado de Boulos em São Paulo e do Psol nas eleições legislativas ameaçam essa liderança?

Em primeiro lugar, quando olhamos para o mapa das eleições para as prefeituras, o resultado foi ruim para toda a esquerda. PT, PCdoB, PSB, PDT, todo mundo perdeu prefeituras. Só o Psol aumentou, de duas para quatro. Então aí já fica difícil para o PT sustentar o discurso de que é o líder natural do campo. Se houver a vitória do Boulos, e do Edmilson [Rodrigues, candidato do Psol em Belém] no Pará e da Manuela [D’Ávila em Porto Alegre], mesmo que com apoio do PT, tratam-se de quadros que não são do partido. E não há como o PT dizer que a [eventual] vitória se deve a ele.

‘O PT do Rio elegeu vereadora a Tainá de Paula, jovem, negra. Qual papel ela terá na construção partidária aqui no estado? Eu chutaria que nenhum’.

Podemos imaginar qual o rumo do PT, que saiu mal das urnas, perdeu votos e está bastante desgastado junto à classe média desde o mensalão, no curto e médio prazos? 

Infelizmente, essa resposta está na cabeça do Lula. O PT tinha uma dimensão democrática interna muito forte, que foi se perdendo. Coloco como marco dessa mudança no funcionamento do PT a escolha da Dilma [Rousseff] pelo Lula [como candidata a presidente em 2010]. Nada contra ela, mas o fato dela ter sido indicada, em vez de disputar uma prévia, mudou a composição orgânica do partido. Quando um candidato disputa uma prévia num partido como o PT, que tem muita militância, ele precisa fazer compromissos, alianças no bom ou no mau sentido, programáticas ou pragmáticas. A Dilma chega só pelo Lula. Com isso, se passa a naturalizar o ‘dedaço’, que o cacique vai indicar [as candidaturas]. Isso vai asfixiando o partido, não tem muito jeito.

Qual a minha hipótese? Que o exemplo da América do Sul irá impactar o Lula e que ele faça uma estratégia parecida com a na Argentina e na Bolívia. Cristina Kirchner desistiu para apoiar uma candidatura mais moderada, e o Evo [Moralez] fez a mesma coisa. E tudo indica que o Rafael Correa vá fazer a mesma coisa no Equador em fevereiro do ano que vem. À medida que essas estratégias vão dando certo, causam impacto nas lideranças [da esquerda] no Brasil, sobretudo no PT, que tem muito contato com esses partidos.

Então tenho a expectativa de que essa onda contamine a cabeça do Lula e dos dirigentes do PT para uma atuação, pensando em 2022, diferente de afirmar a suposta e natural liderança do partido [na esquerda] no processo.

Lula hoje é dono inquestionável do PT. Isso prejudica até mesmo a ascensão de novas lideranças no partido, não? 

Acho que sim. Tudo passa muito por ele. No Rio, Benedita da Silva fez uma campanha linda, resgatou parte da história da esquerda na cidade que vinha se perdendo pelos erros do próprio PT, mostrou que não era só a tradição que o Psol representa que é viva por aqui. Foi uma candidatura importante, mas Benedita tem 78 anos, não aponta para o futuro.

O PT do Rio elegeu vereadora a Tainá de Paula, uma liderança extraordinária, jovem, negra. Qual papel ela terá na construção partidária aqui no estado? Eu chutaria que nenhum, infelizmente. Vou acompanhar o mandato dela, mas não vejo o partido se abrir. Talvez a gente encontre várias Tainás no PT em vários estados com a mesma característica: não conseguem fazer o partido se modificar por conta desse caciquismo que se estabeleceu.

Mas vamos ver como essas lideranças se organizam. A política tem isso de bonito: não se tira das novas lideranças o espaço que elas conquistam espaço. O caso da Marielle, do começo da nossa conversa, é exatamente esse. O próprio Lula, quando queria voltar em 2014, a Dilma não deixou. É outro exemplo disso.

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Guilherme Boulos é o primeiro líder de esquerda de fora do PT a chegar a um segundo turno em condições de vencer sem ter atacado o PT nesse processo. Ao mesmo tempo, ele será também, depois de muito tempo, um candidato de esquerda em São Paulo que não será alvejado com acusações de corrupção. Com esse capital político em duas frentes distintas, é prematuro ou já é possível prever que Boulos desponta como a nova liderança da esquerda no Brasil? 

Não acho prematuro, mas acho melhor falar de novas lideranças. Manuela, Boulos, [Marcelo] Freixo, apesar de não ter disputado aqui, Flávio Dino. Todas essas lideranças têm uma característica que para mim é chave para o futuro: a disposição de construir um caminho para a esquerda que vai além do PT mas que não é contra o PT. Que vai além do PT, mas com o PT. Ciro [Gomes] quer ir além do PT, mas contra o PT. Não vai conseguir.

Por mais qualificado que seja, por mais que tenha uma visão de Brasil muito bem elaborada, tentar ir contra um partido com a capilaridade, a ponta social e a simbologia do PT é não chegar a lugar nenhum. Você fica mal posicionado [na esquerda]. O PT tem que fazer parte do ir além do PT.

Se fala muito da necessidade de uma autocrítica do PT. A resistência do partido em fazer esse processo o torna de alguma forma um aliado indigesto? Os resultados de ontem, por outro lado, podem aumentar a pressão por uma espécie de refundação dentro do PT, que sabemos que existe?

Em primeiro lugar, acho a posição que me parece majoritária no PT de tratar o tema da corrupção apenas na base do ‘golpe da direita’ é insustentável. É uma posição que atenta contra a própria história do partido, contra as virtudes que o partido apresentou em suas experiências de governo. Para um partido que almeja ser governo, é preciso dar respostas concretas aos problemas da população, e a corrupção é um problema concreto da população.

Você pode até ter a interpretação de que a corrupção só é um problema concreto ‘por causa da direita, que consegue fazer uma lavagem cerebral na população’ – eu não concordo com nada disso. Mesmo assim, o fato da corrupção ser um problema concreto te joga o desafio de ter uma resposta. Não tem jeito. Se você vai ter uma resposta para a saúde, para a educação, a segurança pública, mas não para a corrupção, vai chegar lá na reta final de um segundo turno polarizado e vai perder porque vai faltar esse elemento.

‘O Psol passa a imagem de ser uma federação de grupos, mandatos e interesses. Precisa tratar desse problema’.

Mas não acho que o PT seja um aliado indigesto. O partido tem uma história com virtudes, experiências, uma certa base social e militante que ajudam qualquer campanha que queira ser vitoriosa no Brasil. Acho inclusive que Boulos seria mais forte no segundo turno se já tivesse tido o apoio do PT no primeiro turno e com isso uma onda de mobilização. Cada partido tem suas virtudes e seus problemas. Numa aliança, todos trazem algo que vale a pena.

Os líderes do Psol de certa forma têm o privilégio de ter assistido aos erros cometidos PT. Como evitar cometer os mesmos erros que o PT cometeu no processo, inclusive na excessiva centralização de comando?

Acho que o Psol neste momento não corre o risco de excessiva centralização porque não tem organicidade. Olhando analiticamente, a imagem que o partido passa é a de uma federação de grupos, de mandatos, de interesses.

O PT sempre teve organicidade. É muito diferente neste aspecto.

Exatamente. O PT conseguiu fazer que a diversidade não descambasse numa federação durante muito tempo. Hoje, em vários lugares, o PT é só uma federação. O caso de São Paulo é bem ilustrativo: a federação impôs a candidatura de Tatto e não retirou por nada.

Mas o Psol não tem organicidade em lugar nenhum. Precisa tratar desse problema. O Psol teria muito a contribuir com a nossa democracia se apresentasse à esquerda brasileira uma estratégia de ampliação de alianças diferente daquela que o PT implementou. O PT fez alianças por dentro do sistema político, sem quase nenhum limite. O Psol poderia apresentar um debate diferente. Por exemplo: como se aliar com partidos de centro-esquerda, como Rede, PT, de modo programático, fazendo alianças anteriores às eleições. O PT fez alianças após chegar ao poder.

Um exemplo: no estado do Rio, Niterói tem um prefeito progressista, Rodrigo Neves, do PDT, que fez uma das melhores gestões da pandemia no Brasil. Mas o Psol não apoiou o sucessor dele, lançou um candidato próprio só para marcar posição, que fez 10% dos votos. E talvez estivesse aí o nó para pedir o apoio de Marta Rocha a Freixo no Rio e viabilizar uma aliança que não aconteceu. Falo nisso como hipótese. Mas essa seria, em minha opinião, um tipo de aliança bem diferente das que o PT fez pela governabilidade. Levaria em conta programa, visão de cidade. Mas o Psol precisaria votar por abrir mão da candidatura em Niterói, fazer esse debate. Mas não faz, ainda. Enquanto não fizer, vai ficar difícil ocupar o espaço do PT.

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