O coral de vozes republicanas reverberando as alegações inventadas de uma fraude eleitoral em massa ainda não terminou. A dúvida é se isso é:
- Uma extorsão para arrecadar dinheiro para Donald Trump?
- Um estratagema para impulsionar o comparecimento republicano no segundo turno das decisivas eleições para o Senado na Geórgia?
- Um esquema elaborado para adular um narcisista com armas nucleares e convencê-lo a aceitar gradualmente a realidade de que ele é aquilo que mais teme: um perdedor?
- Uma tentativa de drenar preventivamente a legitimidade do governo Biden-Harris, cortando suas asas e usando sua ineficácia para garantir grandes vitórias republicanas nas eleições de meio de mandato?
- Uma trama real, bem pensada e coordenada para que os legislativos estaduais controlados pelos republicanos usem o pretexto da preocupação pública quanto à fraude eleitoral — preocupações fabricadas metodicamente a partir do nada por pura força da repetição de Trump e seus minions — para reivindicar um “dever” constitucional de anular os resultados eleitorais certificados de seus estados e, em vez disso, apontar delegados republicanos? Em resumo, será que o que estamos testemunhando é o prelúdio de um golpe no Colégio Eleitoral? Como David Sirota noticiou em primeira mão, um angustiante artigo de Edward Foley, especialista em lei constitucional da Universidade Ohio State, alertou sobre esse exato cenário no ano passado, explicando como legislaturas estaduais poderiam tentar reivindicar esse tipo de proteção constitucional para anular os resultados eleitorais certificados.
O que eu acho? Os itens de A a D estão definitivamente acontecendo, enquanto o risco de E ser uma ameaça real é muito pequeno. Mas pequeno é mais que nada e, considerando o que está em jogo, isso é suficiente para merecer alguma atenção.
Para ser clara, a razão pela qual um golpe mequetrefe desses continua altamente improvável nada tem a ver com a ideia risível de que os legisladores republicanos têm muito respeito pelos princípios democráticos básicos a ponto de não tentar uma tomada de poder tão descarada. São pessoas que devem seu domínio do poder estadual e, em muitos casos, suas carreiras inteiras, a esquemas abertamente antidemocráticos para redesenhar distritos eleitorais e outras ferramentas astutas para suprimir, a todo custo, a aterrorizante perspectiva de um governo da maioria. Eles continuam encontrando novas maneiras de nos dizer que não acreditam de verdade na democracia representativa, e devemos acreditar neles.
Além disso, a tática de pegar pequenas irregularidades eleitorais e inflá-las absurdamente ao nível de um roubo das eleições, justificando assim um golpe de Estado muito real, tem sido a tática de sucesso em inúmeras operações de “mudança de regime” apoiadas pelos EUA ao redor do mundo — esquemas apoiados, é preciso dizer, por republicanos e democratas.
Não diga a si mesmo que eles não seriam capazes de trazer essa tática para casa. Se o Partido Republicano se contiver, e acredito que o fará, não será por fidelidade à democracia, mas por lealdade ao mercado e ao império. Se vários governos estaduais anulassem abertamente a vontade expressa de seus eleitorados, o resultado seriam grandes protestos e agitação, como deveria ser. Diante desse tipo de incerteza na maior economia do mundo, os mercados quebrariam e o poder global dos EUA se deterioraria ainda mais. É por isso que dizem que Rupert Murdoch e outros gigantes corporativos estão tentando convencer Trump a sair da beira do precipício.
Os democratas deveriam estar nas ruas defendendo a integridade dos votos e condenando a conspiração golpista pelo que ela é.
Ainda assim, dado o tipo de caos lucrativo que os republicanos e seus doadores de campanha se acostumaram a ter com Trump, nada pode ser descartado. E, como Sirota relatou, esses não são medos abstratos: “o mais sinistro de tudo é que os legisladores republicanos Pensilvânia, Geórgia, Wisconsin, Michigan e Arizona já estão insinuando que os resultados podem ser fraudulentos, embora não tenham apresentado qualquer evidência de fraude generalizada”.
Diante dessa realidade, a abordagem de Joe Biden, descartando a negação das eleições por parte dos republicanos como uma “vergonha” em vez de uma ameaça séria, provavelmente é um caminho ruim. A estratégia republicana, se seguirem em frente, depende de legisladores estaduais apelando para uma percepção — não uma realidade — de que o público perdeu a fé nos resultados das eleições. Isso é muito mais fácil de reivindicar se as únicas pessoas gritando do lado de fora dos seus escritórios e bombardeando você com telefonemas e emails são apoiadores de Trump berrando teorias da conspiração sobre fraude eleitoral, enquanto as pessoas que veriam um desafio para resultados certificados como um golpe óbvio já seguiram em frente e não querem se incomodar com a discussão, convencidas de que os republicanos não ousariam cruzar mais uma linha da democracia.
Para ser absolutamente clara: nem deveria ser necessário falar isso. Não há qualquer evidência de fraude generalizada, e ratificar os resultados deveria ser uma formalidade. Mas se há uma lição fundamental a tirar da vitória republicana na Flórida em 2000, quando a campanha de Bush financiou protestos arranjados e a campanha de Gore pediu a seus apoiadores que ficassem em casa e confiassem no protesto, é que os tomadores de decisão ligados aos partidos são influenciados pelas guerras de mensagens que vêm das ruas. Se legisladores estaduais republicanos estiverem inclinados a ignorar flagrantemente a vontade do povo, a capacidade de alegar que ouviram a esmagadora maioria das pessoas dizendo que perderam a fé nas eleições pode ser pretexto suficiente. Lembre-se: eles não estariam procurando pela verdade, que obviamente já sabem qual é, mas sim uma desculpa ligeiramente plausível. Protestos vindos de um lado só podem fornecer isso.
É neste contexto que os democratas deveriam estar lá defendendo vigorosamente a integridade dos votos e condenando as conspirações golpistas pelo que elas são. Isso significa não apenas deixar de lado como uma “vergonha”, mas, como fez o senador Bernie Sanders, denunciá-las como “um ultraje” que está “deslegitimando nosso processo eleitoral e a democracia americana”. A população não deve esperar que os líderes democratas lhes digam que é hora de contra-atacar. Qualquer pessoa que ainda goste da ideia de votos valendo alguma coisa — independentemente de em quem votou ou mesmo se votou nessa eleição — deve considerar reservar algum tempo para fazer sua voz ser ouvida pelos legisladores nessas casas controladas pelos republicanos.
Este é um desafio de organização por razões compreensíveis. Muitas das organizações progressistas que realizaram campanhas massivas de educação e mobilização de eleitores durante o pleito estudaram de perto as lições da disputa Bush versus Gore, e estavam preparadas para se manter mobilizadas para defender o voto se a contagem estivesse próxima o suficiente para alguém roubar. Na verdade, a eleição foi muito mais próxima do que deveria, dado o reinado assassino de Trump (um assunto que já discuti em outro lugar), mas está longe de ser uma disputa tensa dependendo de algumas poucas cédulas perfuráveis. Por esta razão, a maioria dos organizadores concluiu que, desta vez, eles não precisam concentrar suas energias em evitar uma repetição de um desastre para os democratas ao estilo de Bush versus Gore.
Em vez disso, a maioria das organizações progressistas está trabalhando duro para evitar repetir um tipo diferente de derrocada do Partido Democrata: a que ocorreu entre 2008 e 2009, nos meses entre a euforia da vitória eleitoral de Barack Obama em novembro e sua posse em janeiro. Foi quando Obama se cercou de uma equipe de economistas neoliberais e banqueiros de Wall Street. E assim, apesar das promessas de campanha para “reconstruir a Main Street”, abordar as falhas estruturais do mercado e deter a crise climática, eles passaram o período de transição mapeando uma resposta irritantemente inadequada para a violenta crise financeira, que deixou na mão os trabalhadores e o planeta.
Enquanto o novo gabinete estava sendo montado e sua agenda gravada em pedra, qualquer pessoa que levantasse preocupações sobre para onde esse trem obviamente estava indo foi prontamente instruída a baixar a voz e “dar uma chance ao cara” — o mantra daqueles meses fatídicos. Meses que foram desperdiçados com narrativas fantásticas sobre o plano imaginário de longo prazo do presidente, histórias que colocaram Obama como um herói progressista que estava apenas temporariamente apaziguando os deuses famintos do mercado para ganhar tempo para sua agenda popular transformadora que sempre estava a ponto de ser iniciada.
Desde o dia da eleição, a atitude dominante em relação a Biden entre os grupos que se organiza pela justiça racial, econômica e climática tem sido: ‘não dar uma chance a esse cara’.
Ela nunca veio. A janela política (e a torneira do Federal Reserve) aberta pelo colapso de Wall Street acabaria se fechando, e a lógica da austeridade logo se abateu novamente. A diferença racial da riqueza aumentou. O planeta queimou. Os arquitetos desses crimes não enfrentaram consequências. Só quando uma nova onda de movimentos muito mais independentes e confrontadores surgiu no segundo mandato de Obama — Occupy Wall Street, Black Lives Matters, os Dreamers, redução de investimento em combustíveis fósseis, Não à Keystone XL, Standing Rock — começamos a ver algum progresso real. Mas nada que o governo fez correspondeu à escala das crises que enfrentou e que só se aprofundaram desde então.
Fico feliz com os fatos de que os movimentos militantes nascidos no segundo mandato de Obama, que se aprofundaram durante os anos de Trump, aprenderam claramente com os erros cometidos no período de transição 2008-2009. Desde o dia da eleição, a atitude dominante em relação a Biden entre os grupos que se organizam pela justiça racial, econômica e climática tem sido: “não dar uma chance a esse cara”. Organizações que trabalharam incansavelmente por meses para votar em Biden nem mesmo tiraram um fim de semana de folga para comemorar. Em vez disso, elas imediatamente revelaram planos detalhados descrevendo todas as ações executivas que um governo Biden-Harris poderia tomar nos primeiros 100 dias: desde o alívio imediato da dívida estudantil a generosos “resgates econômicos do povo” como parte da resposta à covid-19, até a altamente detalhada Plataforma de Ação Executiva de Justiça Climática da Frontlines, apoiada por uma coalizão de grupos poderosos e publicado pelo think tank Demos.
Mais ambiciosa foi uma campanha lançada recentemente pelo Movimento Sunrise e pelos Justice Democrats, que enfoca não apenas o que o novo governo pode fazer, mas também quem deveria ser nomeado para fazê-lo. Citando a afirmação precisa do presidente eleito de que os eleitores “nos deram um mandato para agir sobre a covid, a economia, as mudanças climáticas, o racismo sistêmico”, os grupos expuseram sua própria visão do que significaria para Biden realmente cumprir esse mandato de alto risco e resolver essas crises que se sobrepõem.
Ela começa, argumentam, com a criação de um novo “Escritório de Mobilização Climática da Casa Branca”, modelado a partir das mobilizações de toda a sociedade na Segunda Guerra Mundial. A pessoa liderando esse escritório teria amplos poderes para colocar todo o governo em situação de emergência e coordenar a ação entre as diferentes agências, de modo que cada parte do governo — da habitação à saúde — avançasse rapidamente um processo de descarbonização baseado na justiça. Em vez de tratar a ação climática como competência restrita da Agência de Proteção Ambiental e do Departamento de Energia, “o Escritório de Mobilização Climática irá incorporar profundamente esta missão em todos os nossos gastos, regulamentos, políticas e ações”.
Buscando evitar os contratempos da era Obama, eles também pedem que o Gabinete seja composto por um grupo diferenciado de lutadores sociais, “sem vínculos com empresas de combustíveis fósseis ou lobistas corporativos”. Eles até divulgaram suas escolhas para um Gabinete Biden dos sonhos, completo com um vídeo engenhoso imaginando seus candidatos favoritos sendo empossados. A lista completa está aqui, mas os destaques incluem: Bernie Sanders para secretário do Trabalho, a senadora Elizabeth Warren para secretária do Tesouro, a deputada Barbara Lee como secretária de Estado, a deputada Deb Haaland como secretária do Interior, o procurador-geral de Minnesota Keith Ellison para o Departamento de Justiça, a deputada Rashida Tlaib para a pasta de Habitação e Desenvolvimento Urbano, a deputada Pramila Jayapal para Saúde e Serviços Humanos, e o economista Joseph Stiglitz para diretor do Conselho Econômico Nacional.
De certa forma, todo o exercício é uma decepção — um vislumbre tortuoso do governo que poderíamos ter sob a presidência de Sanders. Na melhor das hipóteses, talvez duas dessas escolhas do movimento tenham uma chance de passar pelos guardiões de Beltway executando a transição Biden-Harris — e mesmo isso é altamente improvável.
Mas isso não torna essa tentativa agressiva de mover os padrões uma perda de tempo. O fato de que o Sunrise e os Justice Democrats foram tão rápidos em capitalizar o comparecimento recorde de jovens nas eleições e ir para a ofensiva com sua visão de uma administração transformadora mostra como este momento é diferente de 2008. Os grupos que se mobilizaram para derrotar Trump têm toda a intenção de permanecer mobilizados e empurrar Biden a ir além em todas as fases.
Isso é muito bom. E embora não nos dê o Gabinete que seria de Bernie, já está produzindo alguns resultados modestos. Cada nomeação de nível de gabinete será fortemente examinada quanto aos laços com a indústria, o que já está acontecendo com as equipes de transição de Biden e estava longe de ser o caso para Obama. E embora Biden provavelmente nunca use o termo “New Deal Verde”, há indicações claras de que a visão de uma abordagem holística e abrangente para a crise climática já está moldando os contornos do novo governo.
Enfrentar nossa era de crises sobrepostas exige esse tipo de foco, que alinhe todas as partes do governo na missão urgente de simultaneamente achatar a curva nos casos da covid-19 e nas emissões de gases de efeito estufa, ao mesmo tempo em que sistematicamente reduz as desigualdades raciais e de gênero e cria milhões de empregos com salário capaz de manter uma família e baixa produção de carbono. Um bônus adicional: um governo que pode dar às pessoas aquele tipo de propósito comum crescente, que é expansivo o suficiente para ter um papel significativo para todos que o desejam, também está em melhor posição para começar a curar as rupturas políticas que estão destruindo o país. Juntar pessoas em uma causa comum que salva vidas e cria empregos pode até ser mais eficaz, eu diria, do que as várias sugestões de que todos nós saiamos de casa para ouvir ativamente um eleitor irritado de Trump.
Mas o que dizer dos rumores persistentes de uma transição perfeita para um “segundo mandato de Trump”, ouvido mais recentemente do consultor comercial Peter Navarro? Infelizmente, não podemos fingir que eles não estão acontecendo. Depois de escrever sobre a necessidade de Biden ser pressionado tanto pelo crescente Squad dentro do Congresso quanto por movimentos do lado de fora, Will Dana, ex-editor-gerente da revista Rolling Stone, apontou para as contínuas (e cada vez maiores) tentativas de deslegitimar a própria eleição e respondeu: “vamos nos concentrar em garantir que teremos um presidente Biden com o qual nos decepcionar”.
A verdade, como sempre, é que temos que fazer tudo: impedir que os republicanos roubem uma eleição que perderam e impedir que os democratas desperdicem um mandato que eles ganharam.
Tradução: Maíra Santos
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