Documentos obtidos com exclusividade pelo Intercept mostram que a Taurus modificou “sorrateiramente” armas vendidas às forças policiais brasileiras. Os defeitos causados pelas mudanças ocasionaram diversos acidentes e até mortes. Laudos do Exército e uma ação do Ministério Público da Paraíba e da justiça de Goiás escancaram o hábito da empresa de alterar armas sem avisar as Forças Armadas e seus compradores.
Segundo o MP paraibano, que desde 2017 investiga falhas em armamentos da empresa no estado, a empresa “dolosamente, modificou” as armas e “a execução dos projetos (…) sem a autorização do Exército Brasileiro, com objetivo nebuloso e incerto”. A pedido dos promotores, as forças armadas analisaram 1.759 armas apreendidas na fábrica da Taurus no Rio Grande do Sul.
Devido à legislação sobre produtos controlados, que proíbe a importação de armamentos sem a autorização do Exército, os militares e as polícias brasileiras são obrigadas a comprar armas da Taurus, o que os torna clientes “cativos” da empresa. Esta mesma normativa prevê que, para produzir armamento, é preciso apresentar o projeto da arma ao Exército. Aprovado, pode ir para produção. Qualquer modificação deve ser reavaliada e aprovada.
O que mostram os laudos
Para testá-las, o Exército avaliou se as armas e todas as suas peças batiam com o modelo que havia sido aprovado para produção e registrado no Relatório Técnico Experimental do Exército, o ReTex, documento de registro que cada produto controlado aprovado tem. Nos testes as peças são chamadas de “peça do testemunho”.
Com base na ação do MP da Paraíba, os militares também examinaram armas das PMs de Goiás e do Paraná. Casos de defeitos em armas da empresa compradas pelas policiais militares do Rio e de São Paulo também foram citados no relatório.
O Exército concluiu que a “empresa realizou modificações (…) contrariando o anteriormente aprovado em Relatório Técnico Experimental (ReTEx)” e que a Taurus não tem provas de que as mudanças verificadas “estavam autorizadas pelo Exército”.
Apesar de ter o certificado ISO-9001, que atesta qualidade na gestão, a visita técnica dos militares constatou à época que o sistema de qualidade da empresa é “falho na busca e entendimento das reais necessidades de seus clientes institucionais (Órgãos de Segurança)”. Segundos os militares, ele também não possuía política de pós venda e de recebimento de feedback, além de apresentar falhas no controle e permitir a modificação de produtos sem autorização. O certificado foi emitido pela alemã Tuv Nord Certifications, que não retornou os meus questionamentos sobre os problemas apontados pelo Exército.
A Taurus apresentou uma proposta para o término amigável deste processo administrativo e assinou – negando culpa a cada parágrafo – um Termo de Ajustamento de Conduta com o Exército, em 10 de outubro de 2017. A empresa e os militares se comprometeram, dentre outras coisas, a estabelecer um plano de recompra das pistolas PT-840.
Qual foi a multa para a empresa? Apenas R$ 2.500, preço que não paga nem as pistolas mais baratas da marca, vendidas em média por R$ 4 mil cada.
PRF comprando gato por lebre
Após ter problemas com os modelos de pistola PT 24/7 da Taurus, a PRF resolveu testar a pistola PT-840 antes de compra. O modelo foi aprovado e comprado. Mas as armas passaram a apresentar defeitos assim que chegaram às ruas. A PRF então fez um relatório detalhado sobre todo o processo de aquisição, incluindo os testes e as diferenças entre as armas vendidas e a as adquiridas. O documento, a que tivemos acesso, foi enviado pelo Departamento de Polícia Rodoviária Federal ao deputado federal Eduardo Bolsonaro, e deixa claro que a Taurus mentiu à corporação. Antes de ser parlamentar o filho 03 do presidente era policial federal e hoje é um dos principais lobbystas da categoria no Congresso.
Diante dos relatos de falhas apresentados pela PT-840, instrutores que haviam participado dos testes avaliaram as armas compradas e notaram “pequenas diferenças entre as armas entregues e a arma testada”. A Taurus, segundo o documento, foi informalmente questionada por um dos policiais que haviam testado e aprovado o modelo e afirmou que “a versão testada era de importação para o público americano” e que possuía peculiaridades para aquele público, mas “nada que interferisse na qualidade”, confirmando que a PRF foi ludibriada. Testou um modelo, mas as armas entregues eram diferentes.
No fim, a PRF levou gato por lebre, e o resultado foi dor de cabeça e gasto desnecessário de dinheiro público. Foi feito recall em 1.200 armas (em média, cada pistola sai por R$ 4 mil).
Assim como a PRF, outras corporações se viram na mesma situação. É o caso da Polícia Civil de Goiás. Em agosto, a justiça de Goiás determinou que a Taurus trocasse 704 pistolas devido a problemas. Na decisão, a juíza afirmou que “sem conhecimento/autorização do Exército Brasileiro, a requerida [Taurus] realizou alterações no projeto da pistola modelo PT 24/7 PRO DS e assumiu o risco de comercializá-la para aparelhar diversas polícias”. As alterações também foram atestadas pelas Forças Armadas e incluíam modificações na trava do gatilho das pistolas e no sistema de segurança das armas, como mostra um dos laudos dos militares a que tivemos acesso:
Há solução?
Falhas e acidentes com armamento da Taurus não são novidade nem mesmo para a justiça, onde ações seguem se arrastando. O juiz auxiliar José Gutemberg Gomes Lacerda, da 5º Vara de Fazenda Pública da Paraíba, extinguiu o processo “sem resolução do mérito” – ou seja, sem decidir sobre o conteúdo da demanda – em dezembro de 2019, uma vez que existe processo semelhante no MPF de Sergipe. O MP da Paraíba recorreu em janeiro e pediu “a reforma da sentença originária”, para que a ação prossiga.
O processo em Sergipe a que o juiz se refere é de 2016 e pede recall de dez modelos defeituosos de pistolas da Taurus, o fim do monopólio da empresa no país e uma multa de R$ 40 milhões por dano moral coletivo. Mostramos no Intercept ainda em 2016 casos de vítimas no Brasil e nos EUA das armas que disparavam sozinhas da empresa e a tentativa de abertura sem sucesso de parlamentares de abrirem uma CPI para investigar esses casos. Naquele mesmo ano houve uma audiência pública na Câmara dos Deputados, na qual vários policiais mostraram suas sequelas e cobraram ações aos deputados. O que esses documentos mostram é que não se tratam de defeitos, mas modificações feitas propositalmente pela empresa.
Foi nessa época que o Ministério Público da Paraíba resolveu abrir investigação sobre a qualidade das armas utilizadas pelas forças de segurança no estado. A Ação Civil Pública que se seguiu à investigação constatou que “resta evidente que esta empresa realizou modificações em componentes, inclusive em dispositivos de segurança, de, pistolas calibre .40, S&W, 24/7 e PT840”. A Taurus não negou as modificações. Ora disse serem para melhoria, ora aprovadas pelo Exército. Mas o MP foi categórico e disse que eles “não comprovam que as modificações realizadas pela empresa estavam autorizadas pelo Exército”.
Após a publicação da reportagem, a Taurus nos respondeu por e-mail que “não foi citada sobre a ação judicial mencionada” e que “a ação foi encerrada pelo juiz” , ignorando que isso ocorreu porque existia outro processo semelhante em curso contra a empresa. Ainda segundo a Taurus, “o fornecimento de armas pela Taurus às Polícias da Paraíba sempre se pautou pelo respeito à legislação aplicável e ao Regulamento de Produtos Controlados”.
O setor de armas no Brasil é uma grande caixa preta. O jogo de empurra e o “deixa disso” põem todos a mercê de um mercado pouco fiscalizado e com quase nenhum incentivo para entrar na linha. Para se ter uma noção disso, o valor somado de todas as multas aplicadas pelo Exército – o órgão responsável por fiscalizar os produtos da empresa – à Taurus, nos últimos 10 anos foi de irrisórios R$ 4.500.
Vale frisar que a culpa não é do Exército. A lei que estabelece os valores das multas de produtos controlados fiscalizados pelos militares prevê valores baixíssimos para infrações e não estabelece nenhum mecanismo de atualização monetária. Essa medida nunca foi revista por deputados – mesmo por aqueles que dizem defender os direitos dos policiais, como Eduardo Bolsonaro, ou direitos humanos.
No caso da Paraíba, o Exército listou uma série de ações administrativas contra a Taurus que vão de suspender a produção de pistolas, como as 24/7 e as pistolas de calibre .40, S&W, modelos PT 840 e PT 840P, passando pelo recolhimento de armas já no mercado, até a constituição de um grupo de trabalho para estudar possíveis soluções em âmbito nacional. Algo semelhante foi feito pelo MPF de Sergipe, que pediu, além da suspensão de alguns modelos de armas, o fim do monopólio da Taurus.
Para Natália Pollachi, a gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, especializado em políticas públicas de segurança, isso indica que o Exército tem recursos insuficientes para fazer uma fiscalização satisfatória. “Isso se torna ainda mais preocupante diante do cenário atual de fragilização das regras de controle de armas e munições, que inundam o Exército de novas demandas, e de fortes incentivos à abertura de mercado e à instalação de novas indústrias no país”, pontua Pollachi.
As Forças Armadas bem que tentaram melhorar isso um pouco. No início deste ano, o Exército publicou normas para aprimorar a fiscalização, mas o presidente Jair Bolsonaro revogou estas portarias. O general que assinou as medidas foi exonerado e saiu do cargo defendendo as medidas. O Exército admitiu mais tarde que revogou normas por pressão do governo e das redes sociais. Agora, o MPF investiga a decisão de Bolsonaro, que vai contra o que é defendido por órgãos de controle, e cobra o restabelecimento das portarias.
Atualização – 25 de novembro, 11h15
O texto foi atualizado com a posição da Taurus, enviada após a publicação da reportagem.
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