A reforma da pista de 2 quilômetros do aeroporto militar de Iauaretê, na fronteira do Brasil com a Colômbia, se arrasta desde 2005. A brita para a obra? Vem de uma mina em terra indígena que nem deveria existir.

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Aeronáutica explora mina de brita clandestina em terra indígena há uma década

Militares querem proteger a Amazônia – mas são responsáveis por mineração ilegal em terra de povos indígenas.

A reforma da pista de 2 quilômetros do aeroporto militar de Iauaretê, na fronteira do Brasil com a Colômbia, se arrasta desde 2005. A brita para a obra? Vem de uma mina em terra indígena que nem deveria existir.

Na terra indígena Alto Rio Negro, na fronteira da Amazônia com a Colômbia, a reforma da pista de 2 quilômetros do aeroporto de Iauaretê se arrasta desde 2005. Para substituir asfalto por concreto, material mais durável, os militares da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica, a Comara, que administra o local, extraem granito de uma mina a pouco mais de 1 quilômetro da pista. Não é incomum as Forças Armadas explorarem minas para obras, principalmente em regiões afastadas. Porém, não há qualquer registro dessa extração na Agência Nacional de Mineração, a ANM, órgão que regula a atividade, e a Constituição proíbe a mineração em terras indígenas. Ou seja, a mina que alimenta as obras do aeroporto na cidade de São Gabriel da Cachoeira é clandestina e ilegal.

A região da terra indígena Alto Rio Negro é conhecida como “Cabeça do Cachorro” por causa do formato da linha da fronteira. O território tem cerca de 80 mil km² — cinco vezes a cidade de São Paulo — e abriga mais de 26 mil indígenas de 22 etnias. Chegamos até a mina clandestina da Aeronáutica a partir de dados levantados pelo projeto Amazônia Minada, do InfoAmazonia, que monitora requerimentos de mineração dentro de terras indígenas da Amazônia.

Entramos em contato com a assessoria de imprensa da Aeronáutica, que confirmou a existência da mina – sem explicar, no entanto, como explora um local que tem a mineração proibida. Em nota, enviada em 12 de novembro, o órgão informou que o granito extraído da mina é utilizado exclusivamente na produção de brita da reforma da pista, que já gastou R$ 63 milhões em 15 anos.

Três semanas depois, em 3 de dezembro, a Aeronáutica reformulou a sua versão e nos respondeu, via Lei de Acesso à Informação, que “embora conste no site da ANM o município de Japurá/AM, a atividade é em Iauaretê”. Uma referência ao único pedido de mineração protocolado pelo órgão na região, a 108 quilômetros do aeroporto em reforma. Só esqueceram de dizer que o pedido nunca foi aceito e tem coordenadas geográficas específicas – também dentro da terra indígena Alto Rio Negro. Uma decisão liminar da Justiça Federal do Amazonas de agosto de 2019, inclusive, proíbe a mineração e mesmo a pesquisa para mineração em todas as terras indígenas da Amazônia.

Ainda segundo a assessoria de imprensa, o material extraído da mina é utilizado no “aeródromo militar de Iauaretê”, que é “estratégico e necessário ao suporte à saúde das comunidades indígenas”. Ajudar os povos indígenas da região, no entanto, não parece ser o principal objetivo dos militares. Por falta de plano e entraves burocráticos, o aeródromo ficou quase um ano e meio sem voos. Em fevereiro de 2019, o Ministério Público Federal do Amazonas apresentou uma ação civil pública contra a Aeronáutica e outros órgãos federais para garantir voos para os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os DSEIs, na região do Rio Negro.

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Uma denúncia feita por servidores dos DSEIs apontava que voos estavam proibidos em nove aeródromos da região, incluindo o de Iauaretê, de 6 de dezembro de 2018 até 31 de dezembro de 2020. Os aeródromos estavam fechados na Agência Nacional de Aviação Civil, a Anac, por falta de Plano Básico de Zona de Proteção — documento que estabelece, por exemplo, qual área próxima do aeroporto é exclusiva para voos e não permite construções. Ou seja, Aeronáutica, Ibama, Funai e Anac fecharam pistas usadas para atendimento de saúde indígena, em regiões onde o acesso por estrada é inexistente e por rio pode demorar dias, por uma simples pendência burocrática.

A denúncia ressaltava a necessidade de atendimento aéreo a povos indígenas, principalmente em casos de emergências médicas como “picadas de cobra, paradas cardíacas, partos prematuros ou com complicações, risco de vida infantil”.

Após alegações de órgãos federais sobre quem seria o responsável por solicitar a documentação, a magistrada Jaiza Maria Pinto Fraxe, da Justiça Federal no Amazonas, acatou o pedido liminar do MPF em 6 de março, menos de um mês após a apresentação da ação, e ainda criticou duramente a União: “É inadmissível que, em pleno século XXI, duas estruturas de poder público não se comuniquem entre si para solucionar uma simplória burocracia capaz de efetivar a saúde dos povos que formam a identidade da população brasileira”, escreveu a magistrada.

Uma cratera para a Aeronáutica chamar de sua

Imagens do Google Earth comprovam que até 2004 a região da mina explorada pelos militares estava intocada. O próximo registro da área no aplicativo é de 2016, mostrando o local já completamente alterado, com uma cratera de pouco mais de 100 metros de diâmetro e 4 metros de profundidade. Foi desse local que saiu a brita para os 800 metros de pista que já estão concretados, restando ainda 1,2 km.

Ibama e Funai são mencionados em notas divulgadas pela Aeronáutica como facilitadores de acordos com os índios. Mas lideranças locais nos contam que a história não é bem assim. Eles reclamam de atropelos e que não são ouvidos pelos militares e nem mesmo pela direção da Funai.

Iauarete-2020

Assim como não há registro da mina, tampouco há qualquer plano de manejo do dano ambiental causado. Pesquisador dos povos indígenas do Rio Negro, Geraldo Andrello, professor de antropologia da Universidade Federal de São Carlos, visita o distrito de Iauaretê quase todos os anos e questiona a inação do governo.

“Lembro que já fui algumas vezes na região e há uma mina sendo explorada. Se a utilizaram por tantos anos, o mínimo que se espera é que a Aeronáutica tenha um plano de recuperação ambiental da área”, diz o pesquisador, que também é membro do Conselho de Gestão Estratégica do Programa Rio Negro e sócio-fundador do Instituto Socioabiental.

Há 15 anos, a intenção inicial da Aeronáutica era explorar uma formação rochosa na Serra do Bem-Te-Vi. As 22 etnias indígenas que vivem na região se surpreenderam ao saber da intenção dos militares: no local está localizada a Cachoeira do Iauaretê, declarada Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan por ser considerada sagrada pelos indígenas. “Não soube se houve qualquer tipo de consulta, mas essas obras do governo nunca funcionam no tempo devido para o debate. Precisamos entender que na concepção dos índios todos esses lugares são habitados por entidades. É como se alguém chegasse na sua casa e mexesse em tudo”, diz Andrello.

Depois de protestos e da atuação de ONGs e do Iphan, a Aeronáutica mudou o alvo de lugar. Mesmo assim, a área escolhida, a 1 km da pista, continuou dentro da terra índigena.

No dia 4 de novembro, enviamos questionamentos à ANM sobre a mina sem registro explorada pelos militares no distrito de Iauaretê e sobre o requerimento protocolado pela Aeronáutica em Japurá, em 2014, para extração de granito a 108 quilômetros do aeroporto. Não obtivemos retorno da agência até a publicação desta reportagem.

À espera do príncipe

De mais de 3 mil requerimentos de mineração sobrepostos a terras indígenas da Amazônia identificados pelo Amazônia Minada, 83 têm a terra indígena Alto Rio Negro como alvo principal – quase a metade em busca de ouro. O único pedido formal da Aeronáutica para extrair granito na região, no distrito de Japurá, foi feito em 19 de março de 2014. A última movimentação processual ocorreu cinco dias depois, com indicação de que o pedido está “situado em área indígena”.

No sistema da ANM não há qualquer sinalização de aprovação ou rejeição do pedido que tem como alvo uma área do tamanho de quase cinco campos de futebol: 4,9 hectares. Sob condição de anonimato, um oficial militar que já trabalhou na região garantiu que, pela distância, a retirada de pedra do local indicado no processo na ANM seria inviável economicamente. Pelo jeito, a solução encontrada foi explorar uma área indígena sem consultar o órgão regulador do setor de mineração e atropelar a Constituição.

Em resposta a um pedido de Lei de Acesso à Informação, a agência informou que processos negados são retirados do sistema. Então, apesar de estar parado, o requerimento ainda está vivo e pode um dia se tornar uma grande mina em meio a terra indígena. É o que o MPF já chamou de “requerimentos Bela Adormecida”, que aguardam apenas uma lei que libere a mineração nessas áreas.

Em fevereiro deste ano, o governo Bolsonaro se propôs a ser esse príncipe encantado. O projeto de lei 191/2020, de autoria do Executivo, prevê a possibilidade de exploração de mineração em terras indígenas. Esse interesse de órgãos públicos em explorar o subsolo de regiões protegidas pela Constituição não é novidade. Há dezenas de pedidos ativos ligados ao setor público, alguns protocolados na década de 1970. Porém, o apoio escancarado do presidente transforma cada requerimento em uma ameaça ainda maior para os povos indígenas.

Em setembro, o Ministério de Minas e Energia ainda apresentou o Programa Mineração e Desenvolvimento, que tem como uma de suas metas “promover a regulamentação da mineração em terra indígena” até 2023. A deputada Joênia Wapichana, da Rede de Roraima, apresentou um projeto de decreto legislativo para sustar os efeitos desse trecho do programa do MME, que segue parado no Congresso.

De olho no subsolo das aldeias

Há uma fila de empresas – e outros órgãos públicos – interessados na liberação da mineração em terras indígenas. Os pedidos se mantém ativos por anos, às vezes décadas, esperando a canetada que afinal liberará a exploração. E o troca-troca de executivos entre setor público e privado escancara os interesses em lucrar com os minérios na região.

A Petrobras, por exemplo, é uma das instituições com dinheiro público interessadas em minerar solo indígena. A empresa de economia mista protocolou em 2005 na ANM três requerimentos de silvinita, minério de onde é extraído o potássio para fertilizantes, na terra indígena Paraná do Arauató, no Amazonas, estado que abriga a maior reserva do minério de potássio no mundo.

A empresa pública Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais, a CPRM, órgão responsável pelo planejamento geológico do Ministério de Minas e Energia, é outro órgão federal com requerimentos em terras indígenas.Entre 1975 e 1985, a empresa fez 12 pedidos em áreas de povos indígenas do Amazonas, Pará e Roraima para pesquisar diversos tipos de minério, de ouro a nióbio. Mesmo depois de tanto tempo, todos esses pedidos continuam tramitando na ANM.

O Ministério de Minas e Energia também tinha como secretário Nacional de Energia, até outubro de 2019, Ricardo de Abreu Sampaio Cyrino. Ao deixar o ministério, ele foi trabalhar na iniciativa privada e, atualmente, é presidente da Atiaia Energia S.A.. Focada na produção de energia solar e eólica e na instauração de pequenas centrais hidrelétricas, a empresa tem dois requerimentos de pesquisa de argila na terra indígena Tirecatinga, de Mato Grosso. Ou seja, depois de deixar a pasta que luta pela regularização da mineração no subsolo de aldeias, ele foi para uma empresa interessada em minerar o subsolo de… aldeias.

Gestões estaduais não ficam de fora desse interesse pelas riquezas em subsolo de áreas indígenas. A Companhia de Desenvolvimento de Roraima, empresa pública responsável pela concessão de licenças de mineração no estado, protocolou 29 requerimentos na ANM entre 1980 e 1984. Um processo é na terra Raposa Serra do Sol, que em 2009 ganhou as manchetes de jornais nacionais após os ministros do STF decidirem pela sua demarcação contínua e retirada de ocupantes não indígenas. Os outros 28 pedidos minerários estão em área Yanomami, terra que concentra 502 casos, entre todos os 3.211 processos minerários em terras indígenas da Amazônia.

Militares e minérios

Já a relação da Comissão de Aeroportos da Região Amazônica com a mineração é antiga. Desde a década de 1980, os militares exploram granito na pedreira de Moura, no município de Barcelos, no Amazonas. Segundo a Aeronáutica, o material é usado “para a construção das obras de infraestrutura aeroportuária em boa parte da região amazônica”. Diferentemente da mina em São Gabriel, ela não fica em terra indígena, mas também acumula irregularidades.

Além da Comara, pelo menos outras três mineradoras exploravam a pedreira de Moura: Britamazon Indústria Comércio e Mineração Ltda, Ita Mineração Ltda e Geonorte Geologia do Norte Ltda. Em 2016, o Ministério Público Federal ajuizou uma ação civil pública contra o órgão da Aeronáutica e as três empresas. Segundo o MPF, todos descumpriram licenças ambientais e causaram danos ao meio ambiente “em decorrência da extração mineral irregular de brita”.

Em decisão liminar de setembro de 2016, o juiz federal Emmanuel Mascena de Medeiros determinou a paralisação das atividades no local. O magistrado citou relatório de fiscalização do Instituto de Proteção Ambiental do Amazonasque identificou, entre outras irregularidades, a dispensa de rejeitos do processo de britagem em curso d’água.

No ano passado, o vice-presidente da Comara, coronel aviador Steven Meier, visitou a Britamazon, em Barcelos. Apesar de a empresa de mineração desrespeitar regras de órgãos ambientais, o coronel assina um texto publicado no site da Comara definindo a visita como importante para “avaliar os processos, sua produção em larga escala e absorção das técnicas na área de mineração”. Ele também afirma que a empresa “sobressaiu-se no mercado” e que visitá-la foi de “grande valia”.

Esta reportagem faz parte do Amazônia Minada, projeto especial do InfoAmazonia com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund e do Pulitzer Center.

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