Desde o ano passado, o governo está implementando uma megabase de dados dos cidadãos que não tem precedentes na história do país. Criado do dia para noite, sem debate público, o Cadastro Base do Cidadão é uma integração entre diferentes bases de dados do governo, que vão de CPF às informações de emprego, passando por saúde e até dados biométricos.
O processo de implementação e integração ainda está no começo, mas pelo menos 28 órgãos do governo já consultaram as nossas informações que estão ali. Entre eles, estão a Abin, a Agência Brasileira de Inteligência, o Comando do Exército e o Ministério da Justiça e Segurança Pública. As informações estão em um relatório lançado hoje pela Coding Rights, think tank focada em direitos digitais.
No ano passado, o Intercept mostrou como o cadastro, que deve reunir mais de 50 bases de dados diferentes, pode criar uma ferramenta de vigilância poderosa com um potencial devastador para a nossa privacidade – especialmente nas mãos de um governo com fortes tendências autoritárias. O Cadastro Base do Cidadão nasceu de em um decreto com o objetivo de, supostamente, “facilitar o acesso a serviços públicos”. Mas o projeto é tão abrangente que o troca-troca pode incluir até informações sensíveis e “características biológicas e comportamentais mensuráveis”, como dados biométricos. Isto é: suas impressões digitais, palma das mãos, retina, íris, rosto, voz e maneira de andar.
Pior: ele prevê poucos mecanismos para controle público dessa vigilância e sequer conversa com a Lei Geral de Proteção de Dados, a LGPD – nem a terminologia utilizada para definir dados é a mesma do projeto de lei, que entrou em vigor em agosto deste ano.
No relatório, a Coding Rights mostra que, apesar da reação da sociedade na época em que Bolsonaro assinou os decretos, o governo seguiu firme na construção da megabase. Até julho deste ano, época em que foram feitos os pedidos de informação, apenas os dados de CPFs e Receita Federal faziam parte dela. Mas outros quatro órgãos já estavam em processo de adesão: a Capes, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, a Agência Nacional de Saúde Suplementar e a própria Abin.
Na lista de órgãos públicos que já consultaram o cadastro, no entanto, o número é bem maior. São 28 órgãos, que inclue vários ministérios, como o da Mulher, Família e Direitos Humanos, Ministério da Economia e a Advocacia-Geral da União – além dos já citados Ministério da Justiça e Segurança Pública, Exército e Abin.
E essa base deve engordar. Junto com o Cadastro Base do Cidadão, o governo criou o Cadastro Nacional de Informações Sociais, o CNIS, que reúne mais de 50 tipos de informações diferentes sobre nós – registros de veículos, informações educacionais e até informações de saúde, como cadastro de gestantes e os sistemas de informação de câncer de colo do útero e de mama.
Na Estratégia de Governo Digital, lançada em abril, o governo pretende emitir identificações digitais e unificar os serviços públicos no portal Gov.br. Seu objetivo é que “no mínimo” 100 serviços públicos contem com “preenchimento automático de informações” até o final de 2020, alimentados com a megabase unificada. Só em relação ao Cadastro Base do Cidadão, o plano é que 150 serviços estejam integrados até o final deste ano. A maioria deles é de serviços de saúde, como lista de transplantes e medicamentos, mas a lista também inclui Enem e autorização para serviços de radiofusão e o Canal do Cidadão.
O relatório também manifesta preocupação com a segurança dessa megabase de dados. Imagine se ela cai nas mãos erradas? Em tese, segundo os decretos, as regras de sigilo e segurança serão definidas por um Comitê Central de Segurança de Dados, formado apenas por membros do… próprio governo.
Vindo do mesmo governo responsável pela falha do Ministério da Saúde que expôs dados de 200 milhões de brasileiros, temos razões de sobra para nos preocuparmos.
Pé no freio da oposição
Desde que o cadastro foi anunciado, deputados da oposição apresentaram seis projetos de decretos legislativos para tentar derrubar os decretos. Eles questionam a não-conformidade do projeto de Bolsonaro com a LGPD – lei que ele assinou, provavelmente sem ler direito – e o potencial de vigilância.
Para a bancada do Psol, autora de um dos projetos, o cadastro base dá margem “a um estado de vigilância e controle social, que nos remetem às memórias mais autoritárias contra as quais nos comprometemos a lutar desde a redemocratização”. Já o deputado André Figueiredo, do PDT, afirmou na justificativa do seu PL que “a centralização dos dados pessoais que o governo deseja colocar em prática pode tornar tais dados bastante vulneráveis e provocar, de modo acidental ou ilícito, a destruição, a perda, a alteração, a divulgação de dados pessoais, ou até mesmo o acesso não autorizado”.
“O Decreto em questão apresenta um risco para a proteção de dados pessoais dos cidadãos brasileiros”, afirmou em seu projeto Orlando Silva, do PCdoB, que foi o responsável por relatar a Lei Geral de Proteção de Dados.
As iniciativas, no entanto, esbarraram na pandemia. Como o Congresso priorizou pautas relacionadas à crise do coronavírus, os projetos de lei não avançaram. Enquanto isso, o governo continuou trabalhando sem ser incomodado na sua megabase.
As pesquisadoras da Coding Rights recomendam que os PLs voltem à pauta e que o governo crie um mecanismo de controle para os cidadãos sobre o uso de suas informações. Também defendem que a Abin não tem “competência para a criação e execução direta de políticas públicas” e que, por isso, não deve ter facilidade de compartilhamentos de dados. Também dizem que o Cadastro Base deve estar sob escrutínio da ANPD, a Agência Nacional de Proteção de Dados. Mas, com uma agência militarizada – três dos quatro diretores são membros do Exército – não é difícil imaginar a quem ela deve servir.
Correção: 8 de dezembro de 2020, 17h40
Os projetos apresentados pelos deputados são Projetos de Decreto Legislativo de Sustação de Atos Normativos do Poder Executivo, os PDLs, e não Projetos de Lei. O texto foi corrigido.
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