Na última quarta-feira, jogadores de PSG e Istambul abandonaram o campo em protesto contra um ato racista de um dos árbitros. João Amoêdo, o principal nome do partido Novo, escreveu um tweet exaltando a atitude dos jogadores. Logo no dia seguinte, o seu partido demonstrou que, na prática, a teoria é outra. A Câmara aprovou um projeto que ratifica o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo.
É um tratado da OEA que define obrigações dos países membros no combate, prevenção, proibição e punição de atos de racismo, discriminação e intolerância. O único partido a se opor à ratificação foi justamente o Novo que, vejam que beleza, é o que tem mais brancos e menos pretos do Brasil. A sigla foi a única que orientou seus deputados a votarem contra o tratado. Nem o PSL, partido que deu vida à extrema direita que assombra o país, teve coragem de fazer o mesmo.
Acusado nas redes de ser um partido racista, o Novo se defendeu com justificativas aparentemente técnicas, mas racistas na essência. Os deputados do partido questionaram a obrigatoriedade de o estado brasileiro adotar políticas afirmativas que, segundo eles, são inúteis para o combate da desigualdade. Ora, está comprovado pelos números que as cotas raciais implantadas há 16 anos foram fundamentais para a entrada de pretos nas universidades — segundo o IBGE, atingimos pela primeira vez um percentual de 50,3% de alunos que se declaram pretos ou pardos. Ainda é um passo pequeno para a diminuição da desigualdade racial, mas o sucesso da medida é inegável. Articulistas de direita como Reinaldo Azevedo e Joel Pinheiro, que antes eram contra as cotas, mudaram de opinião ao atestarem a sua eficácia na prática. Não é preciso ser de esquerda para verificar a eficiência das cotas na promoção da igualdade racial. Basta ser intelectualmente honesto.
O sucesso das cotas é tão inequívoco que há que ser muito ingênuo para não enxergar o caráter racista daqueles que se recusaram a não ratificar o tratado. O fato é que o partido mais branco do país se colocou frontalmente contra uma medida que possibilita a entrada de pretos em espaços de poder na qual brancos são absoluta maioria. Se isso não são as forças do racismo estrutural operando para garantir a hegemonia dos brancos, o que mais poderia ser?
Marcel Van Hattem, um conhecido combatente do “racismo contra brancos”, foi um dos deputados mais aguerridos contra a ratificação do tratado. Loiro dos olhos verdes e filho de holandês, ele tem largo histórico na luta em defesa da branquitude.
Em 2010, quando ainda não era político, Van Hattem protagonizou um bate-boca com uma estudante negra da UNB em uma audiência pública sobre as cotas raciais na Câmara. Ignorando a existência do sistema de cotas sociais, o rapaz afirmou: “Por que o branco pobre não tem o direito de usar as cotas? A nós, brancos, não pode ser imputada uma dívida que é histórica. Temos de olhar para a frente.”
Quatro anos depois, já como deputado estadual do Rio Grande do Sul, Van Hattem ainda se mostrava assíduo nas questões raciais. Num debate no Facebook, o deputado foi xingado entre outras coisas de “branquelo de merda”, o que considerou um “xingamento racista” e o levou a abrir um B.O. Van Hattem acredita na existência do racismo contra brancos no Brasil, o chamado racismo reverso, essa peça de ficção criada por brancos que querem justificar o boicote à luta antirracista.
Nenhuma das razões apresentadas para impedir a ratificação param de pé. Uma delas é o fato de que países como EUA não assinaram o tratado. O deputado foi às redes perguntar se Obama, um apoiador e beneficiário das cotas raciais, seria racista por não ter ratificado o tratado. Apesar de ser formado em relações internacionais, Van Hattem recebeu essa aula grátis de um professor de Direito da USP:
Cuidado, deputado. EUA historicamente resistem a tais convenções por razões de política externa, em qquer tema (nem a Convenção de DH ratificaram). Obama é fruto da era das cotas e apoiou-as como presidente. Cruel insinuar que ele se opõe a cotas pelas mesmas razões que o Novo. pic.twitter.com/PUt4LeJT5a
— Rafael Mafei (@RMafei) December 11, 2020
O líder do Novo na Câmara, Paulo Ganime, contestou as críticas do professor de direito internacional Thiago Amparo em relação aos deputados que não assinaram a ratificação. Amparo escreveu um fio no Twitter — não deixe de ler —, rebatendo ponto a ponto todas as justificativas estapafúrdias apresentadas pelos deputados do Novo. Não houve tréplica dos deputados brancos.
Amado Dep. @pauloganime (NOVO), deve ser difícil para você aceitar que negros(as) saibam ler, mas eu sou professor de direito internacional na FGV. Sim, eu li o tratado em votação hoje.
— Thiago Amparo (@thiamparo) December 9, 2020
Novo, um partido de homens brancos ricos
Depois do surpreendente desempenho nas urnas em 2018, o Novo fracassou nas últimas eleições municipais. Um dos motivos foi a dificuldade que a legenda teve em lançar um bom número de candidatos. Foram apenas 30 concorrentes, tendo sido eleito apenas um. Isso se deve ao fato do partido se recusar a fazer coligações, abrir mão do fundo eleitoral e fazer processo seletivo para escolher candidatos. “A estratégia de crescimento é sustentável”, afirmou o presidente do partido para dourar o fracasso.
Graças a essas limitações impostas por ele mesmo, o Novo continua se mantendo como um partido de homens brancos ricos do sul e sudeste do Brasil. Segundo a revista Veja, entre os seus candidatos da última eleição, 21% eram empresários, 83,9% tinham ensino superior completo e 80,8% eram brancos. Dos 30 candidatos a prefeito, 29 eram homens, 24 eram de sul e sudeste e 20 têm patrimônios superiores a 1 milhão de reais. Nem parece um partido, mas um clubinho de homens brancos ricos que quer fazer política sem se misturar com a “gentalha”. O boicote à ratificação do tratado internacional contra o racismo está, portanto, dentro do que se espera do Novo. É um partido que abriga políticos reacionários que fazem esse tipo de piada racista:
O tweet foi apagado, mas o pensamento do Novo no debate em torno das questões raciais permanece intacto.
Os pretos estão subrepresentados em todos os partidos brasileiros. Não é uma exclusividade do partido dos ricos. A diferença é que o Novo não só ostenta a maior porcentagem de brancos em seus quadros, como se tornou a sigla que mais se opõe à luta antirracista. O Novo vai se consolidando como um dos partidos mais reacionários do país, disputando com partidos bolsonaristas com os quais é alinhado.
Para os brancos muito ricos da estirpe de João Amoêdo, o racismo se resume a ofensas raciais. Eles se indignam com ofensas raciais contra um jogador na Europa, mas não são capazes de apoiar medidas antirracistas. Registre-se que Amoêdo não se arrependeu por ter votado no candidato que fez a seguinte afirmação após visita feita a um quilombo: “O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que ele nem serve mais para procriar”.
O Novo acredita que o racismo estrutural é uma grande balela, uma ideologia esquerdista que atravanca o bom andamento do setor produtivo do país. O partido rejeita o rótulo de racista, mas qual seria o nome adequado para classificar um clubinho de brancos que sistematicamente se opõe às demandas políticas e sociais dos pretos?
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