Uma pergunta capciosa sobre a controvérsia envolvendo o laptop de Hunter Biden, filho de Joe Biden, candidato à presidência dos EUA: quem tem mais culpa por dar a esse pseudoescândalo muito mais atenção do que ele merecia? O jornal New York Post, por publicar a primeira matéria duvidosa, ou a Fox News, por promovê-la em uma série de transmissões?
A resposta é: nenhum dos dois. Os maiores culpados são a família Murdoch, dona de ambos os veículos. A Fox e o Post são elementos-chave de um império midiático construído ao longo de décadas por Rupert Murdoch, de 89 anos, que atualmente compartilha a propriedade com seus seis filhos, um dos quais é presidente da principal empresa da família, a Fox Corporation. Embora o Post não tenha muito alcance para leitores fora de Nova York, a Fox é uma marca de âmbito nacional, com um fluxo de lucros que ajudou a tornar multibilionária a família Murdoch. Dado que a Fox é um “nó central” da máquina de conspirações da extrema direita, é razoável considerar que os Murdoch são a família real da desinformação nos EUA.
Os Murdoch, no entanto, atraem muito menos atenção do que os seus capatazes, os jornalistas e comentaristas estridentes que minimizaram a covid-19 e criaram todo o conteúdo delirante que ajudou a catapultar Donald Trump para a Casa Branca. Em cerca de uma dúzia de matérias publicadas a respeito da controvérsia do laptop de Biden, o New York Times só se referiu aos Murdoch em duas delas, de passagem. No Washington Post, apenas três matérias sobre o laptop mencionam os Murdoch – da mesma forma, de passagem.
Não faltam notícias sobre o conteúdo lamentável produzido pela máquina dos Murdoch, mas há excepcionalmente poucas sobre o fato de que os Murdoch estão por trás dela. Como observou no Twitter o âncora da MSNBC, Chris Hayes, logo que surgiu a primeira matéria sobre o laptop: “Numa seleção entre pessoas de países da OCDE considerados ostensivamente democracias liberais, Rupert Murdoch deve estar no alto da lista como a pessoa individualmente mais destrutiva das últimas três décadas, não é?” Mas Hayes talvez seja parte do problema. Embora ele critique a Fox com frequência, e em alguns raros casos até discuta sobre os Murdoch, na maior parte do tempo ele não menciona que a família poderia literalmente virar uma chave e estancar o veneno. Em 20 de abril, Hayes fez um segmento de 8 minutos debatendo como a Fox encorajou protestos contra os decretos de isolamento social, e na semana seguinte passou 7 minutos detalhando como a Fox minimizou a covid-19 – mas embora tenha nomeado apresentadores e convidados que disseminaram mais desinformação, o nome “Murdoch” não foi pronunciado.
Nas situações em que se dá ao trabalho de voltar o foco para os Murdoch, a imprensa normalmente faz o oposto do que deveria: ela os afaga. O exemplo mais recente apareceu este mês no New York Times, na forma de um perfil favorável do filho mais novo de Rupert, James, que atou diligentemente por anos como alto executivo e membro do conselho de administração dos negócios globais da família (cujo patrimônio inclui veículos de mídia de grande porte no Reino Unido, na Austrália e na Ásia, e nos EUA inclui o Wall Street Journal). James, que perdeu uma batalha sucessória para o irmão mais velho Lachlan, deixou sem alarde este ano seu último posto de conselheiro, e manifestou um leve arrependimento em relação ao Frankenstein criado por sua família. “Minha saída se deve a desentendimentos em relação a determinados conteúdos editoriais publicados pelos veículos de notícias da Companhia e certas outras decisões estratégicas”, escreveu em sua breve carta de demissão. O mencionado jornal o tratou, então, como herói – a matéria, elaborada por Maureen Dowd, vinha intitulada: “James Murdoch, Herdeiro Rebelde”. Em 2018, Lachlan Murdoch foi um dos convidados em uma conferência de negócios do Times, onde recebeu apenas perguntas uniformemente amigáveis do colunista Andrew Ross Sorkin, que incluíam: “Você assiste [a série] ‘Succession’?”
Não é apenas uma questão de erro ou descuido jornalístico. É uma oportunidade perdida.
Se o nome da família se tornasse tão tóxico quanto o nome Fox, eles seriam levados a promover algumas mudanças, como implementar uma política de tolerância zero com conteúdo racista e de ódio em seus veículos de mídia? A resposta mais provável é não; Rupert Murdoch, um conservador obstinado, notoriamente não se deixa afetar pelas críticas e parece apreciar o desprezo que recebe na Austrália e no Reino Unido, onde não é poupado pelos veículos de mídia que não controla.
Mas não podemos ter certeza disso até que “Murdoch” seja ouvido com tanta frequência quanto “Fox”. Haveria, no mínimo, uma maior consciência entre os americanos de que a autoridade que controla a Fox News não é uma redação de jornalistas, mas uma família de bilionários. Os seis filhos de Murdoch talvez não compartilhem do seu apreço por ser insultado e responsabilizado pelo que a família causou aos EUA.
Os filhos de Murdoch de três casamentos incluem Prudence, a mais velha, que nunca desempenhou um papel nos negócios da família; Elisabeth, que trabalhou por pouco tempo com o pai, mas teria se afastado quando ficou claro que ele não pretendia indicar uma mulher como sucessora; Lachlan, o filho mais velho, que compartilha do posicionamento político reacionário do pai e é o eleito; James, um centrista que foi levado a comentar delicadamente sobre os problemas na Fox depois de perder a disputa sucessória; e duas filhas adolescentes, Chloe e Grace. De acordo com as descrições disponíveis de um “trust” secreto registrado pelos Murdoch em Nevada, que não está sujeito à fiscalização pública, os quatro filhos mais velhos controlam metade das cadeiras do conselho de administração de uma empresa limitada do tipo LLC que supervisiona o patrimônio da família, e a outra metade é controlada por Rupert (as filhas adolescentes não possuem assento no conselho, embora sejam proprietárias de ações em valor equivalente às de seus irmãos.)
Movimentos de racismo e ódio não são impulsionados por histrionismo visual, apenas. Eles exigem plataformas e recursos.
Não há sinal de que os filhos de Murdoch, à exceção de Lachlan, efetivamente compartilhem de seus posicionamentos de direita. Vários deles dão apoio financeiro a organizações culturais ou filantrópicas de natureza liberal. James e sua esposa já fizeram até mesmo doações para a campanha presidencial de Joe Biden. Mas não há tampouco qualquer indício de que alguém da sua prole tenha tomado medidas sérias para alterar o conteúdo racista e de ódio produzido por suas propriedades midiáticas. Os filhos de Murdoch receberam bilhões em dividendos e distribuições de lucro sem protestos ou consequências.
Infelizmente, o costume da mídia de afagar os Murdoch (nem sempre, mas na maior parte do tempo) tende a só ser percebido e apontado por um pequeno círculo de observadores do jornalismo. Jay Rosen, um importante analista de mídias, professor de jornalismo na Universidade de Nova York, recentemente criticou o New York Times por publicar o perfil suave de James Murdoch. “A única coisa que quero ler sobre a família Murdoch envolve angústia, arrependimento, ou acusação formal”, escreveu Rosen no Twitter. [James Murdoch] fazia parte do conselho da empresa que é dona da Fox News. Não há como haver maior realização formal de cumplicidade do que isso.”
Quando Margaret Sullivan, normalmente uma crítica onisciente no Washington Post, conseguiu escrever uma matéria em março sobre os perigos da Fox News sem qualquer menção aos Murdoch, um professor de jornalismo da Universidade de Columbia, Bill Grueskin, observou gentilmente no Twitter: “‘Rupert Murdoch poderia salvar vidas se forçasse a Fox News a dizer a verdade sobre o coronavírus’ seria um bom título para essa oportuna coluna de @sulliview”. O verdadeiro título da coluna, sem Murdoch, era “É hora – mais do que hora – de levar a sério o papel destrutivo da Fox News na América”.
A pergunta final é simples: por que existe esse buraco na cobertura sobre os Murdoch?
Jornalistas, como todos nós, são atraídos por objetos brilhantes. É muito fácil e satisfatório simplesmente amontoar o desprezo sobre os rudes comentaristas estridentes da TV, e não olhar para além deles. Apresentadores como Sean Hannity e Tucker Carlson, tão obviamente absurdos e perigosos, são alvos convidativos e bem dispostos. Expor suas mentiras está indiscutivelmente correto – não devemos esperar nada menos do que isso de uma organização jornalística. Mas os movimentos de racismo e ódio não são impulsionados por histrionismo visual, apenas. Eles exigem plataformas e recursos, o que significa que exigem também pessoas ricas aptas e dispostas a financiar o maquinário da guerra da informação.
Os Murdoch não são bobos. Mesmo os mais novos normalmente são espertos o suficiente para permanecerem nos bastidores e manterem a aparência de cidadãos razoáveis. Quando enfrentam reclamações sobre seus empregados delirantes, minimizam os danos ou dão a entender que também estão fartos, mas que seria inadequado ou arriscado interferir. Eles doam dinheiro para causas dignas e liberais. Eles se apresentam como homens e mulheres responsáveis com quem temos apenas uma discordância civilizada – não como facilitadores essenciais do fascismo.
Tradução: Deborah Leão
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