Domingo, 3 de janeiro de 2021. Enquanto todos os estabelecimentos comerciais do estado de São Paulo permaneciam fechados por conta da fase vermelha do plano de contenção da covid-19, o entorno da faculdade Uninove, no bairro da Barra Funda, em São Paulo, se transformou em uma aglomeração. Ambulantes disputavam espaço nas calçadas com os milhares de médicos que foram ao campus fazer a prova do processo seletivo de residência médica 2021 da Faculdade de Medicina da USP, a FMUSP.
Segundo a própria faculdade, quase 8 mil candidatos se inscreveram para a prova. Os 7.982 que tiveram coragem para comparecer passaram cerca de cinco horas dentro de salas fechadas fazendo a prova de múltipla escolha. Alegando a possibilidade de aglomeração e difusão do novo coronavírus, um grupo de candidatos chegou a entrar com uma representação no Ministério Público do Estado de São Paulo contra o processo seletivo – não adiantou. O órgão foi contrário ao pedido e permitiu a realização do exame.
A aplicação do concurso, garantiu a FMUSP, seguiria “todas as recomendações e medidas vigentes no Estado de São Paulo” para a “prevenção do contágio e ao combate do novo coronavírus”. Voltada para médicos formados que desejam se especializar em determinadas carreiras, a prova era necessária para preencher as mais de 600 vagas ofertadas pela faculdade.
Luiz* era um deles. Médico residente em outra universidade pública, ele atua no combate à pandemia desde seu início. Desde novembro, o médico notou um aumento substancial no número de casos de covid-19 que estava atendendo. Por isso, se sentiu desconfortável para participar do processo seletivo da faculdade.
“Estou dividido”, ele disse quando perguntei, às vésperas do concurso, se iria prestar a prova. “Se não participar, perderei a chance de tentar seguir minha formação médica em uma instituição que a princípio eu respeitava. Se eu participar, entretanto, estarei me expondo a uma aglomeração a que, desde o início da pandemia, não me expus”.
Momentos antes da realização do exame, uma grande quantidade de candidatos e ambulantes tomou conta das calçadas. Ali, não havia qualquer protocolo de distanciamento. A entrada no prédio estava sujeita à medição de temperatura, que foi aferida no braço dos candidatos. O primeiro erro estava ali: a técnica, amplamente adotada para tentar conter o temor de que a medição na testa causaria consequências à saúde, vai contra uma norma técnica da Anvisa, porque pode acarretar erros de leitura.
Dentro do prédio, tampouco havia medidas de distanciamento entre os candidatos nas escadas rolantes e fixas, nos contou Luiz, que escolheu prestar o exame. Para sanitização, a FMUSP disponibilizou álcool em gel na entrada de cada uma das salas, que tinham mais de 30 candidatos e não respeitavam o distanciamento mínimo de 1,5 metros entre eles. “Não sei se havia álcool em outros lugares”, falou o candidato. “Para mim, não estava visível”.
São Paulo vive um recrudescimento no número de casos confirmados e de mortes por coronavírus. Em dezembro de 2020, foi registrada uma súbita elevação de 57% no número de mortes no estado em relação a novembro. O índice vinha em queda desde julho. Com números alarmantes, o governo Doria voltou atrás no plano de reabertura gradual e delimitou que “apenas serviços essenciais” poderiam funcionar nos dias 1, 2 e 3 de janeiro.
Cinco dias antes da aplicação da prova, o Centro de Contingência do Coronavírus do Estado de São Paulo, grupo de 20 especialistas que acompanha a pandemia e atua em conjunto com o governo do estado, havia publicado a “Carta Pela Vida“. No documento, o grupo pediu que medidas de proteção pessoal e distanciamento social fossem adotadas por todos em um esforço coletivo para salvar vidas. “Boa parte das pessoas que transmitem o coronavírus é assintomática, por isso festas, encontros sociais e aglomerações devem ser evitados neste momento. A ação consciente de todos neste período do ano é parte vital na contenção da propagação do vírus”, reforçou o grupo. Segundo os pesquisadores, “a transmissão da doença retornou com força”.
Questionada pelo Intercept, a FMUSP diz ter submetido ao Centro de Contingência “os protocolos para a realização da prova, com todos os procedimentos aplicáveis para assegurar o seu bom andamento, preservando a saúde e a integridade dos envolvidos”.
Perguntamos, então, ao Centro de Contingência sobre a realização do evento. Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde disse que a FMUSP apresentou um protocolo seguro para a ocasião. “Todas as normas sanitárias, como uso de máscaras e o distanciamento social, devem ser impreterivelmente respeitadas durante a realização da prova e em qualquer ambiente da unidade”, destacou o texto. Isso não aconteceu. Pedi à Faculdade de Medicina para detalhar seus protocolos. A Faculdade de Medicina da USP ignorou o e-mail.
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