Uma queda de braço entre técnicos do Ibama e sua fornecedora de helicópteros, a Helisul Táxi Aéreo, pode deixar o órgão ambiental sem aeronaves neste ano. A empresa, que hoje arrenda seis equipamentos ao instituto, tem contrato até fevereiro de 2021, mas a licitação para a nova locação está suspensa há quase cinco meses.
Sediada em Foz do Iguaçu, no Paraná, a Helisul tem quase 50 anos no ramo e presta serviços ao Ibama há três décadas. Para manter um contrato que deve render mais de R$ 300 milhões em cinco anos, a empresa pressionou o Ibama e até o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, para mudar os termos da concorrência desenhada pelos técnicos do Centro de Operações Aéreas do instituto, o Coaer.
A licitação, que foi aberta no início de agosto e suspensa duas semanas depois, está sendo refeita nos moldes sugeridos pela empresa, mas ainda não foi publicada novamente. Com o atraso, o Ibama precisará de uma alternativa para ter helicópteros para combater queimadas e fiscalizar crimes ambientais na Amazônia a partir de março deste ano.
No processo, a Helisul argumentou que os técnicos elaboraram a concorrência com “exigências infundadas”, que limitavam as opções das empresas a um único tipo de helicóptero, o AW119 Koala, importado da Itália e duas vezes mais caro que o atual. A companhia aérea garantiu que poderia oferecer o dobro de aeronaves, oito em vez de quatro, se o Ibama aceitasse outro modelo: o que ela própria já fornece.
Durante o impasse, dois chefes do Coaer deixaram o cargo. O primeiro foi demitido no final de julho, depois de um longo atrito com a diretoria, e o segundo pediu demissão com dois meses no cargo. Em setembro, depois da última troca de comando, a equipe de funcionários que construiu a licitação por quase dois anos foi substituída.
Em 13 de agosto, a empresa paranaense mandou e-mail ao Ibama avisando que havia levado a Salles sua proposta de alteração da licitação. No mesmo dia, o diretor de proteção ambiental do órgão, Olímpio Magalhães, mandou suspender a concorrência devido a manifestações de cinco empresas. Quatro delas pediam esclarecimentos ou sugeriam mudanças pontuais no edital, mas só a Helisul afirmava que a aeronave pedida pelo Ibama era inviável.
Uma semana depois, Magalhães mandou a equipe técnica refazer o orçamento prevendo oito helicópteros do tipo que a Helisul já fornece. Em resposta, duas concorrentes questionaram a mudança brusca de planos do Ibama. No final de setembro, o número foi reduzido para seis aeronaves, com menos capacidade do que as desejadas pelos técnicos. Depois das reviravoltas, o Ibama pediu que as empresas enviassem uma nova proposta de preço até o dia 11 de dezembro.
Mas a nova equipe técnica, que agora é chefiada por um bombeiro do Distrito Federal, ainda terá que analisar as propostas e reabrir a licitação. Isso a menos de dois meses do fim do prazo do contrato atual, que já foi prorrogado por um ano e não pode mais se estender, já que atingiu o prazo máximo previsto pela lei.
Empresa alegou que Ibama poderia fazer ‘fazer mais com menos’ com os helicópteros que ela fornece.
Perguntamos ao Ibama por que o órgão desprezou tão rapidamente os termos da licitação elaborada pelos técnicos – e aprovada tanto pela presidência do órgão como por Salles – para abraçar a proposta da Helisul. Também questionamos se o ministro, que foi procurado pela empresa, teve algum papel nessa mudança.
O órgão negou qualquer interferência de Salles no processo e afirmou que trata o assunto “de forma técnica e na defesa do interesse público”, mas não explicou o motivo das decisões. Também não esclareceu se estima um prazo para a reabertura do pregão e se existe um plano B para manter os helicópteros no ar caso o contrato não seja assinado a tempo.
À Helisul, questionamos se a abordagem a Salles não foi uma tentativa de interferência política para fazer valer sua preferência na licitação, e se a reviravolta não significou uma vantagem da empresa sobre as concorrentes.
Em nota, a empresa afirmou que “jamais teve acesso ou interferência em processo de elaboração de qualquer edital de licitação que disputa” e que o e-mail enviado ao Ibama e a Salles foi uma mera “análise técnica”. A Helisul destacou, ainda, que toda a comunicação com o Ibama foi feita de forma institucional e “calcada no interesse público”.
‘Direcionamento explícito’
A licitação foi aberta no dia 4 de agosto. Cinco empresas enviaram dúvidas e reclamações ao Ibama logo em seguida, mas nenhuma foi tão incisiva quanto a Helisul. Em e-mail enviado no dia 12, a empresa acusou o Coaer de ter feito um “direcionamento explícito” no edital para a AW119 Koala, o que complicava a vida das empresas.
O pedido original do Ibama não nomeava um helicóptero específico, mas os empresários já sabiam desde 2019 que apenas o modelo, fabricado na Itália pela marca Leonardo, poderia atender à demanda. O problema é que o fornecedor, àquela altura, estava dedicado a uma grande encomenda da Marinha dos Estados Unidos e avisou que levaria mais de um ano para entregar aeronaves novas aos clientes no Brasil.
No e-mail enviado ao Ibama, que a Helisul também fez chegar a Salles, o superintendente da empresa Humberto Biesuz tentou dar o caminho das pedras ao Ibama: disse que o órgão poderia “fazer mais com menos” se optasse pela marca Airbus, que a empresa já fornece ao Ibama.
Três servidores do Ibama dizem que a licitação está praticamente ganha para a Helisul.
Os técnicos rebateram. Em nota emitida no dia 14, afirmaram que a Helisul ignorava as necessidades de fiscalização do Ibama e insinuaram que a sugestão de aumento de aeronaves era um plano para lucrar mais. “Do ponto de vista da contratada [a Helisul], que receberia por aeronave e horas de voo, faz sentido, porém, para este contratante público, não seria a solução adequada”, diz a nota assinada por três servidores.
O Ibama nega que Salles tenha feito qualquer interferência na licitação. Mas o fato é que a posição da Helisul prevaleceu: o helicóptero desejado pelos técnicos foi esquecido, e o órgão mandou a unidade técnica fazer um novo pedido conforme a sugestão da empresa. A medida provocou a reclamação de duas concorrentes nos autos do processo.
A ordem partiu do diretor de Proteção Ambiental, Olímpio Magalhães. Trata-se de um coronel da reserva da Polícia Militar cuja nomeação, ao lado de outros ex-policiais com cargos no Ibama, foi considerada irregular pelos técnicos do Tribunal de Contas da União, por falta de qualificação. O caso ainda será julgado pela corte.
Em atividade desde 1972, a Helisul tem um histórico de proximidade com o poder, especialmente no Paraná. Em 2015, o ex-governador paranaense Beto Richa e Eloy Biesuz, um dos sócios da empresa, foram condenados a indenizar o governo estadual em R$ 2 milhões pela contratação de um avião e de um helicóptero sem licitação em 2011.
Três servidores do Ibama avaliam, em condição de anonimato, que a licitação está praticamente ganha para a Helisul. Na última consulta de preços, em novembro, eles apresentaram um orçamento mais baixo do que todos os concorrentes. Em 25 de novembro, a empresa informou ter comprado mais duas aeronaves da marca Airbus – o mesmo modelo que quer empurrar para o Ibama.
Cobertor curto
O helicóptero é uma ferramenta fundamental para fiscalizar crimes ambientais em um território do tamanho do Brasil. O contrato de arrendamento das aeronaves é, de forma disparada, o mais valioso do Ibama: rendeu R$ 302 milhões à Helisul de 2010 a 2015 e renderá mais R$ 266 milhões até fevereiro.
Prevendo um processo demorado e complexo, o Coaer começou a preparar a atual licitação ainda no governo Temer, em novembro de 2018. Depois de pedir sugestões ao Prevfogo, unidade que combate incêndios, e à Coordenação-geral de Emergências Ambientais, a equipe concluiu que a aeronave atual está defasada e precisa ser trocada por um modelo maior e mais rápido.
Em maio de 2019, o Coaer chamou os empresários interessados para uma reunião e apresentou seus planos. Em julho, por e-mail, pediu a 12 empresas uma estimativa de preço. A partir das simulações, os técnicos calcularam que o contrato custaria R$ 82,56 milhões por ano para seis helicópteros: cinco comuns e um bi-turbina, uma demanda dos fiscais do órgão para operações em alto-mar.
Redução da frota ‘impactará de maneira considerável’ a capacidade do Ibama na Amazônia.
Com o passar dos meses, porém, a realidade orçamentária deixou o pedido mais humilde. Primeiro, abriram mão do bi-turbina e o valor baixou para R$ 60,5 milhões anuais. Já em maio de 2020, quase um ano depois, o cálculo foi refeito mantendo as cinco aeronaves, mas o preço saltou para R$ 73,4 milhões, principalmente devido à alta do dólar.
No final de junho, contudo, o Ministério do Meio Ambiente mandou avisar que o orçamento do Ibama para 2021 será de apenas R$ 210 milhões (uma queda de 21% em relação a 2020) e que, desse montante, só R$ 88,4 milhões caberiam à Diretoria de Proteção Ambiental, que cuida da fiscalização e do combate ao fogo. Ou seja, os R$ 73,4 milhões previstos para os helicópteros comeriam, sozinhos, 83% de todo o orçamento anual da diretoria. Era impraticável.
Depois de tentar, sem sucesso, convencer a chefia a lutar por um aumento na fatia do orçamento devido à importância dos helicópteros, os técnicos refizeram os cálculos para apenas quatro aeronaves, duas a menos do que hoje. Mas deixaram um alerta: a redução da frota “impactará de maneira considerável a capacidade operacional do Ibama, em especial nas ações na Amazônia Legal”.
Mas não houve conversa: a estimativa foi fechada em quatro helicópteros, por R$ 63,9 milhões ao ano, e Salles autorizou a licitação em 29 de julho de 2020. Cinco dias antes, o chefe do Coaer, Everton Almada Pimentel, foi demitido do cargo e substituído por Júlio César de Andrade Rocha, um capitão de Mar e Guerra da Marinha.
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