Jamais vou esquecer: estava fotografando, caminhando pela praia de Japaratinga, litoral norte de Alagoas, quando vi um grupo animado em torno de um pequeno fogareiro. Um barco de madeira fazia as vezes de apoio, a música estava alta e o cheiro de churrasco tomava conta. Fiquei olhando de longe e, aos poucos, fui me aproximando.
Vi duas mulheres muito bonitas, uma com cerca de 70 anos, outra mais jovem, e acenei. Me apresentei, falei que era jornalista e pesquisadora e perguntei se poderia fotografá-las. Elas, mãe e filha, responderam que sim e deixaram que eu as registrasse ali, vestidas com seus maiôs coloridos, comendo, bebendo e celebrando com amigos e famílias.
Quando terminei, agradeci a ambas. A mais velha, mulher miúda, magrinha, respondeu: “obrigada a você por nos fotografar”.
Aquilo me marcou para sempre. A frase daquela senhora sugeria o peso que a atenção midiática tem sobre populações localizadas em setores menos prestigiados da sociedade: as perguntas sobre em que TV eu trabalhava me mostraram que elas posavam para a jornalista, não para a pesquisadora.
Desde então, passei a perceber que, para pessoas pobres, ser visto amplamente é extremamente importante, e isso faz todo sentido. Em um país com uma profunda desigualdade social como o Brasil, ser visto também está relacionado a uma condição de ser cidadã ou cidadão. Ser alguém que não merece o limbo imposto pela invisibilidade – ou por uma visibilidade distorcida. É através da tecnologia, das imagens, das redes sociais, que muita gente passa a existir, o que nos força a repensar a ideia, muitas vezes elitista, de que toda necessidade de aparição é um exercício egocêntrico, de exibição, de pura vaidade.
Lembrei o tempo todo da frase daquela senhora nos últimos dias de 2020, quando, mais uma vez, o nome do alagoano Carlinhos Maia, rapaz pobre que se tornou muito rico ao arregimentar milhões de pessoas nas suas redes sociais – cerca de 21 milhões seguidores no Instagram, 6,1 milhões no Facebook e 2,2 milhões no Twitter, dominou o noticiário de celebridades. Há alguns anos, me interesso pela relação celebridade e pobreza.
Antes, um aviso: o fato de você não saber quem é ou quem era Maia não diminui o poder que ele tem sobre uma audiência muito significativa. Celebridades, gostemos ou não, são essenciais para entender a cultura contemporânea e o que se passa na sociedade.
Basta lembrar que o quase ex-presidente da nação mais rica do mundo, Donald Trump, capitalizou sua persona através do reality show “The Apprentice” – no Brasil, o programa se tornou “O Aprendiz”. Já o atual presidente da Ucrânia, o ex-comediante Volodymyr Zelensky, fez fama como humorista. Ainda no Brasil, temos um presidente talhado para as multidões através de programas como o extinto CQC e o SuperPop e, nunca esquecer, de jornais, revistas e sites “sérios” que higienizaram sua figura ao classificá-lo apenas como um cara “polêmico”. Também não custa lembrar que há um rapaz chamado Luciano Huck de olho na presidência do país.
Maia, desde que se tornou famoso, volta e meia aparece como trend topic no Twitter ou em destaque em sites de celebridades. Nas últimas semanas, como você deve ter lido, ele realizou uma festa enorme na cidade onde nasceu, Penedo, a cerca de 160 quilômetros de Maceió. Após o encontro que reuniu centenas de pessoas, 47 delas teriam contraído a covid-19 e duas estavam na UTI.
Ao ser criticado, escreveu no Twitter: “O natal da vila vai acontecer, justamente para gerar ainda mais visibilidade para o povo da vila. Não teve ano passado. Tudo dentro da lei. Com autorização da sec de saúde, o número permitido de pessoas, bombeiro, polícia!! Testes, e desentoxicador!”.
O natal da vila vai acontecer, justamente para gerar ainda mais visibilidade para o povo da vila. Não teve ano passado. Tudo dentro da lei. Com autorização da sec de saúde, o número permitido de pessoas, bombeiro, polícia!! Testes, e desentoxicador!
— Carlinhos Maia (@Carlinhosmaiaof) December 18, 2020
É sobre ele, sua ex-pobreza e o que significa essa “visibilidade” da vila que quero falar.
Penedo tem 63 mil habitantes, apenas 30% deles em residências com esgotamento sanitário adequado e 50,5% da população com rendimento mensal de até meio salário mínimo. É gente com pouquíssima possibilidade de um dia realizar uma festança com presença de famosos ou de presentear alguém com uma BMW conversível no valor de R$ 700 mil, mimo de Carlinhos para o marido, Lucas Guimarães.
Há até pouco tempo tão pobre quanto seus conterrâneos, Maia surge como uma superpessoa que, hoje, não precisa passar pelos constrangimentos cotidianos de quem conta moeda para pagar os boletos e fazer a feira do mês. Mais ainda: não precisa necessariamente de um estado que o proteja, nem a ele, nem a sua família, nem muitos daqueles que moram na hoje midiatizada vila onde viveu. Ali, boa parte dos vizinhos e familiares se tornou também personagem dos stories de Maia, e muitos lucram com isso.
Gente que tenta não exatamente viver, mas viralizar.
Quando já se tornara conhecido como o “rei do Instagram”, Maia postou vídeos da casa à beira-mar que deu de presente para Virgílio e Maria. Chorava. Finalmente realizava o sonho da mulher que o adotou, uma costureira negra e surda, que, assim como milhões de mulheres pobres brasileiras, sonhava com as carícias necessárias do conforto.
Em 2018, o rapaz divulgou uma cirurgia nos olhos que pagou para ambos. No texto, dizia: “com meu trabalho, consegui fazer a cirurgia que meus pais precisavam, sem ser pelo SUS! Tive condições de pagar a ‘saúde’ com dignidade dos meus anjos! Mas tenho fé que um dia isso será direito de todos”.
Não fica claro se o direito desejado para todos é o de um SUS melhorado (nos últimos anos, o processo é de desmonte) ou a conquista do dinheiro que, ele sim, vai garantir a dignidade.
Ao oferecer diariamente dezenas de registros dessa abastada vida para milhões de pessoas – principalmente através desse recurso Stories, na qual foi, em 2018, vice-campeão de visualizações no mundo, perdendo apenas para celebridade norte-americana Kim Kardashian –, Maia reforça um poderoso discurso contemporâneo: o da meritocracia.
O vencer por si, a saga heroica de quem “veio de baixo” e conquistou o sucesso – traduzido aqui por uma Ferrari, uma cobertura, uma viagem a Nova York – não é algo comum apenas nas redes do alagoano. Pelo contrário: o humorista é a ponta de um iceberg formado por muita gente, vídeo, selfie e desejo.
Milhares de pessoas em busca de um lugar ao sol através de aparições nas redes. Gente que tenta não exatamente viver, mas viralizar.
É aí que mora a perversidade da coisa: no país no qual 60% das trabalhadoras e trabalhadores ganha menos de um salário mínimo mensal, país com recorde de quase 15% da população desempregada, a busca pelo sucesso através das redes parece ser (e é) um viável meio de mobilidade social, uma chance de sair de uma condição que nossa concentração de renda e salários baixos, nosso desinvestimento em saúde e educação, produzem e reproduzem historicamente.
Assim, se vender, tornar-se empresa, fazer do próprio corpo e da própria vida ativos rentáveis, é cada vez mais comum entre aqueles que o mercado classifica como classes C, D, E. Se entre elas virar jogador de futebol já foi a possibilidade mais rápida para uma vida boa, ser influencer, ser célebre, é agora ainda mais democrático: você não precisa jogar bola, não precisa cantar, não precisa atuar, não precisa nem mesmo ser rico.
Mas, se for pobre, é de bom tom que faça graça dessa pobreza, pois adoramos rir da cara dela, às vezes preta, às vezes desdentada. Foi isso o que o então pobre Carlinhos, quando entendeu a lógica, fez.
Antes, gravava seus vídeos na casa de uma amiga em melhores condições econômicas, como se morasse ali. Ninguém dava muita bola para o rapaz, até que ele colocou no ar um vídeo mostrando a mãe com touca na cabeça, a casa meio depauperada, as panelas amassadas. Tirava onda de uma realidade que também o envergonhava, como já revelou. O material fez sucesso e ele investiu mais ainda nesse “nicho”, a “pobreza engraçada”, comum em programas humorísticos e novelas.
No dia 8 de outubro de 2020, já famoso após explorar o ambiente e as pessoas que um dia o envergonharam, ele postou uma foto encostado em uma Ferrari vermelha agradecendo a marca de 19 milhões de seguidoras e seguidores. Terminou a publicação dizendo: “obrigado Deussssss – a FAVELA VENCEU”.
O divino e o esforço pessoal: as ferramentas que Maia sozinho, afirma aquela imagem, usou para “chegar lá”. Simultaneamente, 9 mil famílias que vivem em Penedo e estão inscritas do Cadastro Único, sistema de dados sobre pessoas em vulnerabilidade social, dependem de cestas básicas para sobreviver. Ao mesmo tempo, a miséria come a vida das centenas de famílias da favela do Sururu de Capote, em Maceió.
A percepção do sucesso apenas por mérito, comum entre celebridades, faz com que movimentos coletivos em busca da melhoria de uma vida também coletiva sejam esvaziados, desestabilizados – é cada um por si e o selfie contra todos. O desinvestimento no SUS, por exemplo, é realidade desde 2016, com a aprovação do teto de gastos. Mas mobilizar uma questão como essa não rende muito likes e, consequentemente, não atrai seguidores, empresas e patrocinadores.
É claro que pessoas célebres não produzem esse movimento sozinhas, mas com a ajuda de suas enormes audiências, um corpo heterogêneo que este ano – aleluia – também se posicionou contra o discurso da vida perfeita dos famosos enquanto a pandemia levava vidas lá fora.
No entanto, está claro que exibir as provas do sucesso intercaladas com a “vida simples”, o apartamento de luxo e a vila de casas humildes, rende muito mais. Se a fórmula vier acompanhada por uma polêmica, melhor ainda: Maia conseguiu incríveis novos 500 mil seguidores após a festa. Não importava, para mercado e parte da plateia, se ele estava ferindo um importante pacto social, o de não promover aglomerações em nome da saúde coletiva.
Importava que ele estivesse visível, que sua vida de sucesso combinada com um estilo popular passassem pelos Stories.
Importava dar “visibilidade” para a vila, algo que será rentabilizado, mesmo se no final uma ou outra pessoa vá parar na UTI sem condições de respirar sozinha. Essa conta absurda vai ganhar o apoio de muita gente: se foi assim, mostrando-se, que o agora filho prodígio de Penedo conseguiu riqueza, então que passe o trator.
A mesma lógica rege as ações de outro ex-pobre, Neymar. Em plena pandemia, o jogador da Seleção Brasileira de Futebol e do Paris Saint-Germain celebrou o Ano-Novo com mais de uma centena de pessoas em uma festa fechada. A mesma lógica rege os muito ricos que engarrafaram o aeroporto de Trancoso, Bahia, com seus jatinhos. Lá fora, estávamos nós, passando o dedo em nossas telas, desejando ser alguém na vida. Desejando ter dignidade.
Em algum momento, espero, vamos perceber que dignidade não se traduz exatamente na Ferrari, em milhões de seguidores ou no apartamento à beira-mar. Ela começaria, arrisco dizer, no não tão simples ato de estar vivo.
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