No dia 19 de fevereiro de 2014, o mundo da tecnologia foi surpreendido com uma notícia bombástica: o Facebook anunciou, de supetão, a compra do aplicativo de mensagens WhatsApp. A transação chocou pela cifra altíssima: US$ 22 bilhões no total, número mais de 20 vezes maior do que a empresa havia pago pelo Instagram quatro anos antes. Tudo isso por um app que, até então, não dava lucro.
É claro que Mark Zuckerberg não havia gasto seu dinheiro porque achava o aplicativo útil ou simpático. Ele estava de olho nos 450 milhões de usuários da plataforma, que estava em franco crescimento, e no potencial de negócios e integração que essa base poderia dar ao Facebook, então com 1,2 bilhão de usuários. “Estamos animados para tornar o mundo mais aberto e conectado”, disse Zuckerberg, naquele discurso de relações públicas padrão. O Facebook prometeu que o funcionamento dos aplicativos continuaria sendo independente e os criadores do WhatsApp garantiam que nunca sustentariam o app com publicidade.
Hoje sabemos que era mentira. Em 2016, a empresa começou a compartilhar informações com o Facebook, mas usuários poderiam optar por não fazer isso. Dois anos depois, Brian Acton, cofundador do WhatsApp, que havia ido trabalhar no Facebook depois da compra, rompeu com a rede social. O assunto “integração” foi uma das razões. Ele era contra a monetização por anúncios, principal modelo de negócios do Facebook, e acabou deixando sua parte no negócio para atrás por discordar do rumo que o WhatsApp vinha tomando. Em uma entrevista para a Forbes, ele explicou por que aderira à campanha #DeleteFacebook e chegou a declarar que é um “vendido”: “eu vendi a privacidade dos meus usuários em troca de um benefício maior”.
No começo do ano seguinte, a integração entre os apps foi confirmada.
Corta para 2021. O WhatsApp se tornou parte cotidiana da sua vida pessoal e do seu trabalho, e você está vendo repetidamente a mensagem de que deve aceitar a atualização na política de privacidade da empresa. Ela te obrigará a aceitar o fato de que, para usar o app, suas informações serão compartilhadas com o Facebook – ainda que você não esteja na rede social. Entre as informações compartilhadas, estão o nome de perfil, número de celular, localização, mensagens e mídias não entregues, dados de status, pagamentos e dados de interações dos usuários, como volume e frequência de mensagens e acesso a grupos. (Se você quer saber mais, recomendo esse texto aqui). Você tem até 8 de fevereiro para decidir. Não aceitou? Será obrigado a parar de usar o WhatsApp.
A não ser que entidades e a recém-criada Autoridade de Proteção de Dados brasileira, a ANPD, responsável por fiscalizar abusos, façam alguma coisa aqui no Brasil. E ela pode fazer, dizem especialistas como Bruna Santos, da ONG Data Privacy Brasil. Na Europa, onde vigora a General Data Protection Regulation, a GDPR, uma lei de proteção de dados mais restritiva, o WhatsApp vai operar com outra política de privacidade, já que o compartilhamento de informações está proibido.
E o Brasil, teoricamente, não está muito atrás. A Lei Geral de Proteção de Dados, em vigor desde o ano passado, estabelece que o usuário deve ter controle sobre o uso de suas informações, e elas devem respeitar princípios como finalidade (dados devem ser usados para os fins para os quais foram coletados) e necessidade (devem ter tratamento mínimo necessário para sua finalidade).
Por isso, para algumas organizações de direito do consumidor e de direitos humanos, a mudança é abusiva. A Comissão de Proteção de Dados e Privacidade, da seccional do Rio de Janeiro da OAB, e a Coalizão Direitos na Rede são algumas das entidades que se manifestaram contra. O Idec, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, também anunciou que estuda medidas judiciais e administrativas contra o WhatsApp. Resta saber se a ANPD, que é a autoridade brasileira responsável por fiscalizar eventuais abusos, seguirá a mesma linha – ou vai continuar com a postura permissiva das entidades regulatórias que permitiam que o Facebook chegasse onde está.
Em 2014, quando o Facebook anunciou a compra do WhatsApp, a transação foi concluída sem muita dor de cabeça. O Facebook abocanhou mais centenas de milhões de usuários e, com eles, uma quantidade potencial de dados e informações pessoais inimaginável. A empresa foi tão livre para fazer o que quis que enrolou a imprensa com seu comunicado, que garantia a independência das plataformas, enquanto nos anos seguintes estendia seus tentáculos – de forma nem sempre sorrateira – para os usuários do zap.
Hoje sabemos que, enquanto falava em “conectar” as pessoas nos comunicados de imprensa, no privado Zuckerberg se preocupava com os concorrentes que cresciam e escrevia que era melhor “comprar do que competir”. Mas, se na época ele foi livre para fazer o que quis, hoje a própria aquisição do WhatsApp pelo Facebook – assim como a do Instagram – está em xeque. Nos EUA, no fim do ano passado, a Federal Trade Commission, órgão responsável por fiscalizar práticas anticompetitivas, se reuniu com 40 procuradores para entrar com uma ação antitruste que pede que as empresas sejam separadas – e que novas compras tenham restrições. “Por quase uma década, o Facebook tem usado seu domínio e monopólio para esmagar rivais menores e extinguir a competição, tudo às custas dos usuários”, disse Letitia James, procuradora-geral de Nova York.
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