O carioca Felipe de Almeida morava com o pai em Rio das Ostras, no litoral fluminense, quando a mãe ganhou a cidadania norte-americana. Como a sua avó já vivia em Nova York há anos e também era naturalizada, Felipe e seu irmão caçula teriam o mesmo direito. Desmotivado no Brasil, aos 17 anos, decidiu emigrar. “Eu era jovem, trabalhava demais e tinha perdido uma vaga na escola técnica. Sabia que ir para os EUA trazia benefícios mais altos”, conta.
Nascido no Rio de Janeiro, Felipe já havia morado brevemente no país, no fim dos anos 80, ainda criança. Na época, lembra-se que entrou no avião em pleno verão carioca para chegar em uma Nova York gelada. Estranhou o mar sem ondas que banha a cidade e as ruas com árvores que não dão fruta – espécies frutíferas são proibidas nas calçadas. Aprendeu inglês na escola até os 12 anos e depois voltou ao Brasil, em plena Era Collor, para passar a adolescência na fazenda do pai.
Por causa da experiência prévia, o choque de trocar em definitivo a paisagem brasileira pela metrópole nova-iorquina foi menor. Pelo contrário: estava empolgado com as oportunidades no novo país. Quis fazer um curso superior, mas a mensalidade das universidades privadas eram caras. “Então me alistei na Marinha porque eles garantem seguro de vida, de saúde, financiamento, salário e tudo”, lembra. Com isso, partiu para o treinamento no estado de Illinois.
O serviço militar de Felipe começou no início de 2001. Em setembro, enquanto fazia uma prova, um oficial interrompeu o teste e pediu que todos os recrutas nova-iorquinos saíssem da sala. Na rua, contou-lhes que dois aviões haviam atingido o World Trade Center, que implodiu em chamas. Na época, a mãe, o irmão e a ex-esposa de Felipe trabalhavam nos arredores do edifício. Por telefone, o carioca descobriu que os três, por sorte, não estavam em Lower Manhattan naquele 11 de setembro. Saíram ilesos. “Aí veio toda aquela merda… A Marinha avisou que em um mês já estaríamos no outro lado do mundo e nos mandaram assinar papéis, mesmo estando em treinamento ainda”, relembra Felipe, que foi enviado ao exterior antes de terminar a faculdade.
Estava iniciada a “Guerra ao Terror”, campanha militar lançada pelos EUA para atacar alvos ligados ao “terrorismo” ao redor do mundo, principalmente no Oriente Médio. O ex-combatente assumiu vários postos na Ásia e Europa até ir para o front no Afeganistão, entre 2004 e 2005, onde serviu na caça ao Talibã, milícia fundamentalista que controla territórios afegãos e paquistaneses, conhecida por executar mulheres e torturar civis com base em interpretações ultraconservadoras do Islã. Na época, o Talibã era apontado como um dos principais aliados da Al-Qaeda, a organização responsável pelo atentado ao World Trade Center.
Ao Intercept, o veterano contou detalhes de sua trajetória militar, do período no front às sequelas que permaneceram. O relato de Felipe de Almeida, hoje com 42 anos, faz parte do documentário ‘Soldado Estrangeiro’, que reúne as histórias de três brasileiros que saíram do país para servir nas forças armadas de outras nações. O filme está disponível via streaming nas plataformas Now, Looke, VivoPlay e OiPlay.
Como sargento da Marinha dos EUA, cheguei ao Afeganistão em 2004 para combater o Talibã por cerca de quatro meses. Fomos direto para uma das bases que estávamos montando, no interior do país.
A única proteção ao redor dessa base era uma cerca de arame enorme, muito grande, em volta do quartel inteiro. Na primeira noite, começamos a escutar os morteiros. Explosões. Antes havia servido apenas em zonas sem conflito e minha ficha caiu de que eu estava em uma zona de guerra. Pensei ‘ih, fudeu, do outro lado do arame literalmente tem um inimigo’, e pensava neles como ‘inimigos’ porque não tinha a mínima ideia de quem eram. Podia ser um homem só, ou um exército inteiro.
Em pouco tempo, vi uma pessoa eviscerada, com a barriga aberta. Vi pela primeira vez os horrores da guerra. Na fazenda do meu pai em Rio das Ostras, cresci acostumado a ver gente matar porco e galinha, mas um ser humano com o intestino do lado de fora é outro nível. Você pensa “por que é necessário isso?”. O homem parecia ser um combatente, mas não tinha como saber se era um civil: talibãs não usam uniforme.
Na Marinha, eu era enfermeiro. Meu propósito era salvar vidas, e não tirar. Inclusive, salvei muitas, não só de militares nossos, mas também de civis afegãos. Uma vez consegui salvar uma criança que teve metade do corpo queimado. Mas são situações muito complicadas que traumatizam a gente. É difícil botar em palavras e lembrar de tudo, porque parece que, quando penso, surge um bloqueio. Como eu era do Exército, também era difícil ajudar a todos porque civis afegãos me viam como um inimigo. Tentei uma vez ajudar um idoso, chefe de vila, e não me deixaram.
Muitos achavam que nós estávamos invadindo. É complicado dizer, não cabe a mim falar se foi uma invasão ou não. Isso é questão de perspectiva, mas para mim o que fazíamos era uma caçada à milícia talibã. Muitas das nossas missões eram encontrar os armamentos deixados para trás pelo exército soviético no Afeganistão durante a guerra fria – e era muita arma. É um lugar que é muito comum o povo ter arma em casa para se defender, espingardas. Alguns escondiam morteiros, lança-granadas e artilharia pesada para uso do Talibã.
Fizemos uma busca dessas que me chocou bastante, em uma vila na qual um soldado dessa milícia estaria escondido. Suspeitamos da casa de uma família, onde estavam um homem adulto, três crianças e dois adolescentes. Entramos. Estávamos investigando a casa com calma, já que eles pensam que a gente invade tudo, desde o país até as casas – eu também não gostaria de uma porrada de militar entrando na minha casa procurando outro soldado. Fiquei lá vigiando. Havia essa criançada na minha frente, todos cerca de seis ou sete anos, quando meu sargento me chamou.
No que eu me virei para o sargento, uma das crianças correu na minha direção. Eu tinha uma multiferramenta no colete que abria uma faca, e o moleque, pum, avançou, pegou a porra da faca e meteu na minha perna. Levantei com raiva, quase dei uma porrada no moleque, mas meu sargento me afastou. Nisso o pai dele foi detido e levado para identificação. Eu era enfermeiro, me enfaixei, fiquei bem e deixamos o pai em casa depois, mas isso me marcou pelo tanto que a criança se sentiu ameaçada, com coragem para “proteger a família”.
Não me alistei na Marinha por ter um ‘espírito de guerra’, mas porque queria sustentar a mim e a minha família. Também há pessoas que se alistam e querem ir para a Infantaria porque gostam de matar; existe essa gente, sim. Mas eu não gostava de quem agia desse jeito, meus amigos eram pessoas de honra. Isso era o mais importante para mim: minha honra, disciplina e mente. Como enfermeiro, participei de equipes de Sniper, e nesses grupos de até quatro pessoas é comum ter alguém da equipe de saúde que auxilia e visualiza o que o franco-atirador tem que ver. Achar o alvo para ele dar o tiro. Não posso dizer que sou completamente inocente, mas posso dizer que não sou tão culpado quanto outros.
No momento que você solta uma bala da tua arma, você é culpado pelo que fez. Então eu não sei se matei inocente. E por esse motivo guerra nenhuma é gloriosa. Eu sabia que estava sacrificando muita coisa ao me alistar, mas servi porque minhas opções eram limitadas.
“Fui dispensado da Marinha por ‘desobediência’”
Eu acho que já tinha escoliose antes da Marinha, mas não a acharam no exame médico de admissão. Ao longo do serviço, o problema se agravou. No Afeganistão, caí várias vezes. É tudo montanha de pedra e areia, então você cai e desliza. E o médico carrega mais peso que o soldado comum. Além do material de combate, tem a mochila de enfermagem, que pesa 40 kg extras. Um dia, a minha coluna faliu quase completamente. Estava em marcha e quase caí no chão, mas, pelo orgulho militar, continuei. Até que fudeu, falhou mesmo.
Voltei para os EUA com uma contusão grave na coluna, mais lesões na musculatura, sinusite, joelho ruim e problemas no sangue. Fui avaliado e me disseram que minhas únicas opções eram cirurgia na coluna ou pílula para dor. Só que eu não quis a cirurgia porque anos antes fiz uma no nariz para tratar a sinusite, pela própria Marinha, e fizeram mal. Eu queria fazer acupuntura ou quiropraxia para tratar das costas, mas me mandaram fazer um plano de saúde privado se quisesse isso. Eu não tinha como pagar, então optei pelas pílulas, já que não confiava na cirurgia.
Aos poucos, o remédio perde o efeito, e você tem que aumentar a dose. Abusei e comecei a tomar mais do que deveria tomar. Fiquei viciado em pílulas para dor. Na Marinha, é tudo super controlado e eles não gostaram porque quebrei a lei militar ao abusar dos remédios. Por isso, não me deram escolha nem outra opção de tratamento. Só me disseram que precisaria sair da Marinha. Fui dispensado em 2007. Como veterano, ainda tenho direito a vários seguros oferecidos pelo governo, mas na dispensa me negaram o acesso a financiamento universitário, que era uma dedução que tiravam todo mês do meu salário.
Precisei contratar um advogado, que foi caro, para tentar entrar no Navy Review Board, o consulado que resolve esse tipo de coisa para garantir meu benefício. A resposta demorou, e veio que eu precisaria mudar o status da minha dispensa, porque recebi baixa da Marinha por ‘desobediência’, pelo abuso de pílulas. Nesse tempo, me curei da dependência e me formei em 2014 em Serviço Social, porém contraí essa dívida estudantil que não consigo pagar, e meu crédito está congelado. Até posso pedir um empréstimo, mas os juros são altos demais. Meu processo para acessar esse financiamento universitário corre na justiça.
Esse ‘status’ de veterano traz benefícios para outros negócios, como montar um empreendimento ou alugar casas. Em Nova York, por exemplo, há uma fila na hora de alugar apartamentos que nos dão preferência e vários serviços privados priorizam veteranos na hora do atendimento. Muitas vezes, vou a um restaurante e, quando descobrem que sou veterano, ganho comida de graça! Em novembro, nos EUA, existe o Dia do Veterano, que é perto do meu aniversário e é o melhor dia para a gente sair na rua, porque ganha uma porrada de coisa. Temos esse apoio da comunidade, pelo menos.
Já o ex-presidente Trump é um cara que ameaçou os veteranos e quis cortar benefícios. No início de 2020, propôs cortar U$ 1,6 trilhão ao longo de 10 anos em nosso seguro saúde e outras assistências, algo que afetaria mais de 9 milhões de veteranos das Forças Armadas dos EUA, mas a proposta não prosperou no Congresso.
É importante ter algum ‘status’ por isso. Não é questão de ego. Faço parte do Veterans Affairs, que é subsidiado pelo governo e me garante várias assistências em pensão, saúde e moradia, apesar do financiamento universitário bloqueado. Coisas que uma pessoa comum não tem acesso. Aqui tem muita coisa com raça e todo mundo é misturado. A depender do estado norte-americano, se é um lugar de maioria branca e não estou de uniforme militar, é bem capaz de eu ser julgado e acharem que sou criminoso. Na Marinha, não existia esse preconceito, mas cheguei nos EUA em uma época que, nos censos, só havia a opção para se autodeclarar “hispano”. Eu batia o pé, dizendo que era latino. Achavam que português e espanhol era a mesma coisa.
Hoje, estou bem estabelecido em Nova York, com minha família, namorada e amigos. Aqui o freelancer é fácil, então tenho capacidade de fazer dinheiro. Trabalho em um estúdio de perfuração, com piercings, e estou montando uma linha de produtos de ervas medicinais. Mas algumas cicatrizes da guerra perduram. É contraditório isso, mas eu não acredito na guerra.
Penso que há tantas guerras porque não são os líderes que lutam, eles enviam soldados no lugar. Não há essa honra no mundo. Se fosse assim, muita besteira não sairia da boca de gente como o Trump, que tem outras pessoas para lutar por ele. É muito fácil querer brigar quando você tem o luxo de se esconder atrás de um exército. Guerra é perda de tempo e covardia.
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