O pai e a esposa de Rodrigo* estavam tomando café na sala quando ouviram um barulho estranho vindo do banheiro. Tentaram entrar no cômodo, mas estava trancado. Arrombaram a porta e encontraram o soldado da Polícia Militar de São Paulo desacordado. Ele só retomou a consciência horas depois, na maca de uma Unidade de Pronto Atendimento de Barretos, no interior de São Paulo. Em pleno sábado de agosto de 2020, foi a terceira vez que Rodrigo tentou se matar desde que passou a fazer parte do braço armado do estado paulista.
Em tratamento para depressão profunda e transtorno de ansiedade, o que o leva a ter ataques de pânico recorrentes, o soldado tenta o direito ao afastamento do trabalho por enfermidade repetidamente desde 2018, sempre com atestado médico do psiquiatra que o acompanha. Mas é obrigado, por decisão da Polícia Militar, a continuar trabalhando.
Mensalmente, Rodrigo tem de passar por uma avaliação com um médico psiquiatra da corporação. É ele o responsável por decidir afastar ou não o soldado do serviço. A decisão, quase sempre, é pela volta de Rodrigo ao trabalho, independentemente dos relatórios do psiquiatra particular afirmando que o soldado não está apto a trabalhar. Rodrigo relatou que, na maioria das consultas por que passou na Polícia Militar, os médicos ironizaram sua depressão e ignoraram seu tratamento. Uma dessas consultas foi gravada. No áudio, obtido pelo Intercept, Rodrigo suplica ao médico pelo afastamento, dizendo que “vai dar merda. Não tenho condição de trabalhar”. O médico, que não foi identificado, retruca, chamando-o de “imaturo”.
“Talvez eu nem devesse dar satisfação aqui. A gente não tem visto aqui um progresso, você está afastado há 90 dias, você vem falando que estava pior, e não vai melhorar mesmo nessa situação, enquanto essa situação estiver se mantendo. Porque você não tem depressão, você tem outra coisa. Seu problema, na realidade, diz respeito a sua personalidade. Na nossa visão, você, para a gente, é um sujeito imaturo, que não quer assumir suas responsabilidades, que estão lá para ser enfrentadas. Eu vejo que a sua questão é com seu serviço”, diz o médico da PMSP em um trecho da gravação.
Conforme apontam relatórios do psiquiatra particular de Rodrigo, o soldado sofre de “estresse, instabilidade grave de humor intercalados com períodos depressivos, com ideias suicidas e tentativas de suicídio”. Por isso, além de ser acompanhado por um psicólogo particular, ele toma cinco remédios diferentes (Reconter, Aripiprazol, Frisium, Mirtazapina e Rivotril) – três deles de tarja preta.
Em um dos pedidos de afastamento enviados à PMSP ano passado, o psiquiatra é enfático no diagnóstico do soldado. “Percebo que a personalidade do paciente já apresentava desde a adolescência características de explosividade e dificuldades na modulação de impulsos. Fato este, que piorou consideravelmente após sua inclusão na polícia militar. Portanto, o considero inapto para o retorno ao trabalho”, escreveu.
“Eu sou obrigado a trabalhar. Para o médico [da PMSP], só faltou chamar de vagabundo, falou que estou fazendo isso porque não quero trabalhar. Eu só quero justiça”, me disse o soldado, que pediu para não ser identificado temendo represálias.
Prisão, estresse e depressão
Soldado da PM desde 2015, quando passou pelo processo seletivo que inclui teste psicológico, Rodrigo viu sua saúde mental começar a ruir em 2018. Naquele ano, foi alvo de uma operação do Ministério Público em Campinas e chegou a ter sua prisão decretada.
Na operação batizada de “Tio Genésio”, o MP e a Corregedoria da Polícia Militar prenderam todos os 32 policiais militares da 5ª Cia. do 47º Batalhão da PM, acusados de fazer acordos com o tráfico de drogas e ajudar na lavagem de dinheiro dos criminosos.
Enquanto o caso tramitava na justiça, o PM conseguiu responder em liberdade, mas foi movido para um novo batalhão. Lá, segundo ele, começaram as represálias vindas dos próprios colegas de farda.
Rodrigo conta que começou a fazer tratamento psicológico e psiquiátrico para se recuperar do trauma e do estresse de ter sido acusado – e quase preso – por um crime que dizia não ter cometido. Com isso, diz ter sofrido ainda mais retaliações diretas de outros policiais, que, segundo ele, o olhavam e o tratavam com desconfiança tanto pelo fato de ele fazer tratamento psicológico quanto pelo episódio de suposto envolvimento com o tráfico.
Desde então, conta, ele só cumpre serviços administrativos dentro do batalhão, sem autorização para usar armamento.
Em novembro de 2020, o juiz José Alvaro Machado, do Tribunal de Justiça Militar, publicou a sentença de Rodrigo: inocente por ausência de provas.
Somado à rotina estressante de um policial militar nas ruas, o desânimo de Rodrigo com a corporação ficou insustentável. A profissão que um dia foi o “sonho de ajudar as pessoas”, como ele mesmo diz, passou a ser um dos seus piores pesadelos.
“Hoje eu não consigo ver um policial militar, uma farda na rua, que eu já me sinto mal, dá uma ansiedade”, contou.
‘PM ignora dolosamente’, dizem advogados
Sem condições de pedir demissão e perder sua única fonte de renda, Rodrigo, então, procurou advogados para pedir à justiça sua aposentadoria por invalidez. Para eles, manter o soldado no serviço ativo, mesmo desarmado, pode se tornar uma grave ameaça a ele mesmo e à sociedade.
“A atual situação do Rodrigo inspira cuidados médicos e jurídicos. Há elementos que indicam a necessidade de sua reforma por invalidez. Acreditamos que os cuidados têm sido insuficientes e ineficazes, especialmente ante a insistente negativa de acolhimento dos pareceres médicos e pedidos de licença para tratamento de saúde veiculados pelos profissionais de saúde que o assistem”, me disse o advogado, cuja identidade será omitida para preservar o anonimato do PM.
“Licença, apenas, a esse ponto, não mais resolve. Trata-se de condição irreversível”, concluiu.
Uma nova ação pela aposentadoria foi apresentada à justiça em setembro do ano passado pelos advogados. O juiz do caso ainda não se manifestou.
No pedido, a defesa do soldado ressalta, mais de uma vez, que o agravamento psicológico dele ocorreu dentro da corporação. “Há de salientar que o gatilho de tudo isso foi exatamente a vivência longa e próxima de casos trágicos em que o autor atuou como policial, como troca de tiros, mortes, violência, medo, e todo o desgaste emocional que a atividade policial por si só é capaz de gerar, dada sua peculiaridade”, escreveu outra advogada que representa Rodrigo na ação.
“A cada mês ele é submetido a consultas médicas no hospital militar, sendo exposto a todo o ambiente que já não possui mais saúde mental para frequentar, sendo tal prática um verdadeiro lançamento do autor para a própria cova”, finalizou.
Saúde mental é problema crônico
Histórias semelhantes à de Rodrigo se repetem cotidianamente nas forças de segurança brasileiras, me disse Juliana Martins, psicóloga e coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança.
“É uma situação que demonstra como as instituições [policiais] não estão preparadas para lidar com o adoecimento dos seus profissionais em decorrência do trabalho. Já escutei muito de policiais que são de posições de comando [que estão] bastante preocupados com a questão da saúde mental, mas sempre que trazem a questão relatam achar que estão sendo enganados pelo policial”, disse Martins, que há mais de cinco anos estuda a saúde mental de agentes da segurança pública.
Ela afirma que a história do soldado ilustra um problema crônico das PMs brasileiras. “Quando o policial é afastado por questões psicológicas e volta, a corporação não sabe o que fazer com ele. E aí vai para os serviços administrativos, o que pode piorar a situação, agravar a doença, porque a pessoa fica estigmatizada perante os colegas. Acho que esse universo policial que valoriza muito, desde o ingresso à corporação, a força, a masculinidade, a virilidade, tudo ligado a isso, não sabe lidar com o outro lado, que faz parte da humanidade de todos nós”, relata.
Não à toa, o suicídio é uma das principais causas de mortes de policiais em São Paulo – e também no Brasil. Dados apontam que a PMSP tem altos índices de suicídio. O levantamento mais recente da Ouvidoria das Polícias, divulgado em 2019, apontou que, em 2018, 35 policiais militares tiraram a própria vida só no estado de São Paulo. Foram 84% a mais do que em 2017, quando 19 se suicidaram.
Já os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que, no Brasil, em 2019, mais policiais (civis e militares) foram vítimas de suicídio do que de assassinato em horário de trabalho. Ao todo, pelo menos 91 policiais (26 policiais civis e 65 policiais militares) tiraram a própria vida – foram 18 só em São Paulo.
Os números do órgão ainda revelam que a taxa de suicídios entre policiais militares e civis da ativa, no Brasil em 2019, de 17,4 por 100 mil habitantes, foi quase o triplo da taxa verificada entre a população em geral, que ficou em 6 por 100 mil habitantes. A maioria dos suicídios, ainda segundo o Fórum, foi consumado com uma arma de fogo.
A ausência de mais psicólogos sem ligação com o ramo militar, no caso da PMSP, também é algo que incomoda especialistas e oficiais reformados que conversaram com o Intercept. Isso porque a maioria dos psicólogos e psiquiatras que trabalha na corporação, segundo as fontes consultadas pela reportagem, tem formação militar e graduação ou especialização em psicologia ou medicina.
Procurada pela reportagem, a Polícia Militar de São Paulo não quis comentar o caso de Rodrigo. “A Polícia Militar esclarece que não comenta sobre a relação entre médicos e pacientes em respeito ao Código de Ética Médica”, escreveu em nota.
A PM também não respondeu se a maioria dos psicólogos e psiquiatras da instituição tem formação militar. Por outro lado, a corporação afirmou que trata a saúde mental dos agentes por meio de diferentes programas, como o Programa de Acompanhamento e Apoio ao Policial Militar e o Programa de Acompanhamento Psicológico.
“Atualmente, a instituição possui estrutura com um Centro de Atenção Psicológica e outros 40 Núcleos de Atenção Psicossocial. Todos os procedimentos seguem rígidos protocolos médicos, bem como as práticas e normas exigidas aos profissionais de psicologia”, afirmou a assessoria.
Juliana Martins questiona o fato de as organizações policiais “individualizarem” a questão de saúde mental. “Para a PM, o problema é ‘deste policial específico’. Ou ele está tentando enganar a corporação ou adoeceu porque não tem condições de ser policial. É uma série de questões que levam a uma postura de individualizar e se isentar de olhar para um tipo de trabalho que, sim, produz doença e violência em seus agentes”, diz.
*Nome alterado para preservar o anonimato da fonte.
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