Menos de 24 horas depois de a enfermeira Mônica Calazans se tornar a primeira pessoa vacinada no Brasil, o complexo do Hospital das Clínicas, na capital paulista, divulgou internamente a primeira parte da sua lista para a vacinação de terça-feira, 19 de janeiro. Em dois dias, já eram mais de 20 mil nomes que receberam prioridade. Entre eles, alguns causam espanto: professores que não precisam deixar o home office, estudantes envolvidos em pesquisas que não têm nada a ver com a linha de frente médica e até mesmo uma costureira.
O maior complexo hospitalar da América Latina recebeu, nessa primeira leva, 30 mil doses da Coronavac da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. A quantidade é mais que o dobro do que foi destinado, por exemplo, para a segunda maior cidade do estado, Guarulhos, que recebeu 13.680 doses. De acordo com a direção do próprio HC, o montante é o suficiente para garantir a vacinação de cerca de 75% de todos os profissionais, estudantes, voluntários e terceirizados do complexo.
Com tantas doses, o HC colou o rótulo de “profissionais de saúde na assistência direta ao paciente” em quem bem entendeu.
Um dos convocados, um professor da Faculdade de Medicina da USP, que não quis se identificar, nos repassou um dos e-mails que circularam na véspera da vacinação. No texto, fica claro que a maioria dos trabalhadores do complexo foi autorizada a tomar a vacina: professores, funcionários, pesquisadores e alunos da pós-graduação acima de 31 anos. A lista inclui mesmo quem não atua na linha de frente – o que contraria a recomendação da Secretaria Estadual de Saúde.
O complexo é formado por oito institutos, como o Instituto de Psiquiatria, o do Câncer e o da Criança, além da Faculdade de Medicina da USP. Mas, desse total, apenas o Instituto Central, o Instituto do Coração e o Hospital de Suzano estão atendendo pacientes com covid-19.
Ao Intercept, a assessoria de imprensa do HC afirmou que os 30 mil convocados deveriam ser considerados prioritários. A Secretaria de Saúde do estado disse que as diretrizes para o uso das vacinas têm como referência os planos de vacinação para gripe e defendeu os critérios que vêm sendo adotados pelo Hospital das Clínicas. Em nota, disse que “a unidade sequer aderiu ao sistema home office durante a pandemia”.
De fato, os hospitais não entraram em home office. Mas a Faculdade de Medicina, sim. E, por ser parte do complexo, seu pessoal também está sendo vacinado. O professor que nos passou os e-mails sobre a imunização está trabalhando em esquema de home office, assim como vários de seus orientandos na pós-graduação, que também estão executando a maior parte das atividades de casa.
Vacinação largada à sorte
Uma das convocadas para a vacinação nesta semana foi Janaína*, uma costureira hipertensa, de 73 anos, que atua como voluntária do Hospital das Clínicas há mais de uma década. Ela estava na lista das quase 12 mil pessoas que foram vacinadas no dia 20 de janeiro. A possibilidade de receber a vacina mais cedo foi comemorada por sua filha, Carla*, que acompanhou a mãe até o Centro de Convenções Rebouças, onde a vacinação estava acontecendo.
“Acho que são 300 voluntárias, e eles selecionaram oito. Foi um sorteio aleatório. A gente não sabe exatamente qual foi o critério”, nos disse Carla sobre a mãe. “Ela é hipertensa, tem 73 anos… Ela seria do terceiro grupo. A gente estava esperando na ansiedade e, de repente, na primeira semana ela recebe uma ligação. Cara, foi muito emocionante! Eu me emocionei no domingo com a primeira pessoa sendo vacinada. Imagina com a minha mãe”.
A direção do HC nega que Janaína tenha sido escolhida por sorteio e diz que ela compareceu o ano inteiro ao hospital, inclusive assinando folha de ponto. Segundo a filha, no entanto, como Janaína é do grupo de risco, ela passou a pandemia em casa. Embora tenha continuado costurando bolsas para o bazar de voluntários do HC, o relato de Carla mostra que a mãe esteve bem longe da linha de frente.
A voluntária atende aos critérios que ajudam a definir as prioridades segundo os programas de vacinação no país. Mas ela avançou muitas posições na fila. Pelo cronograma divulgado pelo governo do estado, idosos acima de 75 anos começariam a ser vacinados a partir do dia 8 de fevereiro. Uma semana depois, no dia 15, entrariam as pessoas entre 70 e 74 anos, como Janaína. Isso quando ainda havia um cronograma: sem alternativas de vacinas no país, além da Coronavac, não existe mais previsão de quando os idosos vão ter direito à imunização.
Em duas horas em frente ao Centro de Convenções Rebouças, conseguimos localizar funcionários de áreas administrativas da faculdade, farmacêuticos que trabalham na logística de distribuição de medicamentos da ortopedia e alunos de cursos de especialização, vários sem contato com pacientes, que tomaram a vacina. É o caso da fisioterapeuta Andressa*, de 29 anos, que mora no Rio de Janeiro. Apesar de trabalhar em uma clínica particular, ela conseguiu a oportunidade de se imunizar antes mesmo de profissionais que estão atendendo pessoas com covid-19 nos hospitais públicos. “Nós somos profissionais da área da saúde e muda a forma como a gente vai encarar isso agora. Com mais segurança, sem pensar em ser um foco de transmissão para os pacientes”, disse a fisioterapeuta.
Desde que a lista foi divulgada, críticas começaram a surgir entre os integrantes do complexo. Alguns estudantes da pós-graduação, que estavam entre os beneficiados, chegaram a questionar os critérios adotados. Consultada, a Associação de Pós-Graduandos da Universidade de São Paulo, a APG, respondeu: “não verificamos polêmica em torno da lista. O critério utilizado para vacinação da COVID-19 de acordo com as orientações recebidas foi: profissionais ativos na assistência direta a pacientes. Ou seja, alunos que atuam ou possuem contato direto com pacientes”.
A nota veio acompanhada de uma mensagem do próprio HC mostrando que o critério de priorização, inclusive dos estudantes, era mais amplo do que a APG afirma. Na imagem, está claro que entre os eleitos estão todos “os profissionais ativos das demais categorias com idade maior ou igual a 31 anos”. Em “demais categorias” pode entrar muita gente que não faz “assistência direta a pacientes”: professores de história social da medicina, alunos de mestrado ou doutorado com formação em geografia ou estatística ou técnicos de informática que fazem a manutenção do site da faculdade, por exemplo.
Conversamos com o professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, Gonzalo Vecina, sobre os critérios que levam os profissionais de saúde a serem considerados prioritários. O principal objetivo das regras é garantir que as pessoas que sabem como cuidar dos doentes estejam aptas para fazê-lo. Por isso, ele defende um olhar mais amplo de quem deve ser enquadrado como profissional de saúde: “o serviço de saúde não funciona se a lavanderia não funcionar, se a cozinha não funcionar, se não tiver alguém para preencher a ficha, para registrar que o atendimento foi feito. Eu preciso da enfermeira, do auxiliar de enfermagem, do médico e do burocrata também”.
Mesmo assim, em um cenário de escassez, o professor de 68 anos não se incluiria entre os profissionais de saúde que deveriam estar na dianteira da vacinação. “Minhas aulas na Faculdade de Saúde Pública na USP estão praticamente sendo todas feitas à distância. Tenho que ir a hospitais? Tenho. Para dar um palpite, para conversar, falar, discutir, mas é muito pouco… Então é discutível eu estar no grupo prioritário”.
A abundância em meio à escassez
Enquanto os funcionários do HC festejavam a imunização irrestrita, médicos que atendem pacientes com covid-19 no Hospital Emílio Ribas enviavam um ofício para o secretário de Saúde do estado, Jean Gorinchteyn, questionando o fato de as vacinas ainda não terem chegado para eles. O Emílio Ribas, também ligado ao governo do estado, é vizinho do HC – os dois dividem o mesmo quarteirão na avenida Doutor Arnaldo, região central de São Paulo – e uma das principais referências no atendimento a doenças infectocontagiosas do país.
“Não vai ter vacina para todos os profissionais de saúde. A gente já sabe que não vai ter. E aí, a gente vê o Hospital das Clínicas recebendo vacinas de forma irrestrita. Tem gente que precisa ser vacinada? Tem. Só que esse consumo de vacinas acontece em detrimento de quem está recebendo poucas doses”, nos disse um médico do Emílio Ribas, que não quis se identificar. “E olha que somos a menina dos olhos da campanha de combate à pandemia. Agora, imagina como vai ficar o cara que tá na UPA [Unidade de Pronto Atendimento] de Osasco, que também atende pacientes com covid?”
Horas depois de enviado o ofício, as vacinas chegaram ao Emílio Ribas. Já os serviços de saúde dos municípios vão continuar tendo que administrar o pouco que têm. Franco da Rocha, cidade na periferia da Grande São Paulo, por exemplo, recebeu 2.160 doses. Se usar os mesmos critérios adotados no HC, precisaria de pelo menos cinco vezes mais.
A ameaça da falta de vacina já vem sendo anunciada pelo governo de São Paulo. No dia em que começava a vacinação no HC, o coordenador do Centro de Contigência para o Coronavírus, João Gabbardo, ia à CNN avisar que o brasileiro precisa já ir se acostumando com a provável escassez do imunizante. O Instituto Butantan, que produz a Coronavac no Brasil, já avisou que o princípio ativo usado para envasar os primeiros 4 milhões e meio de doses já está no final e, por isso, a produção vai ser interrompida.
O cenário se agrava com as crises diplomáticas abertas pela família Bolsonaro e a atrapalhada política internacional do ministro Ernesto Araújo, que dificultam a remessa de novos lotes do Insumo Farmacêutico Ativo, o IFA, para o Brasil.
Em compensação, a enxurrada de vacinas no HC facilita ações midiáticas como o Vacinômetro do governador João Doria. A ferramenta, que contabiliza as vacinas já aplicadas no estado, foi lançada no mesmo dia em que as doses começavam a ser aplicadas no Hospital das Clínicas. Às 16h do dia 20 de janeiro, a ferramenta registrava pouco mais de 20 mil vacinados em todo o estado. Só as duas primeiras listas de vacinação do HC, dos dias 19 e 20, respondiam pela quase totalidade do número.
Na quinta-feira, dia 21, o Ministério Público do Estado de São Paulo enviou um ofício ao secretário estadual de Saúde cobrando explicações sobre a vacinação no HC. O documento reforça que a imunização “não está obedecendo os critérios de prioridade estabelecidos pelo Governo do Estado de São Paulo para a campanha de vacinação, critérios esses segundo os quais devem ser priorizados os profissionais de saúde que atuam na linha de frente do combate à COVID-19”.
*Nomes alterados para preservar a privacidade dos entrevistados e evitar retaliações.
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