O Conselho Federal de Farmácia, o CFF, pediu autorização ao Ministério da Saúde para comprar vacinas contra a covid-19. Para a entidade, mesmo que não estejam na linha de frente do combate à pandemia, os farmacêuticos precisam ser imunizados.
Usar o poder econômico para disputar a corrida pela vacina é para poucos. A proposta do CFF coloca uma categoria que tem um salário modesto – em São Paulo, que emprega o maior número de farmacêuticos do país, o piso salarial é de R$ 3.337 – lado a lado dos executivos de grandes empresas que também anunciaram a disposição de comprar vacinas para imunizar parte dos funcionários, em troca de doar a metade das aquisições para a saúde pública.
O fato é que não só de farmacêuticos assalariados ou profissionais autônomos vive o CFF, que pediu autorização de compra dos imunizantes ao Ministério da Saúde em 4 de fevereiro. A contribuição de grandes redes de farmácia e laboratórios farmacêuticos está expressa na lei que criou a autarquia federal, em 1960. É a contribuição desses sócios, segundo o próprio conselho, mais de 160 mil empresas, que ajuda a turbinar o orçamento da instituição, criada para regular e fiscalizar o exercício da profissão. Só quem tem registro seria vacinado com os imunizantes comprados, o que pode incluir executivos de empresas e redes de farmácias que também são farmacêuticos.
Para 2021, o CFF tem um orçamento que passa dos R$ 286 milhões. O valor é 150% maior do que o orçamento do Conselho Federal de Medicina, o CFM,uma das entidades profissionais com maior influência no país – uma diferença de R$ 100 milhões. Por serem autarquias, todos os conselhos têm autonomia em relação ao governo federal, e o mesmo vale para o orçamento que eles administram, mas o CFF não soube informar quanto desse orçamento vem da contribuição das empresas que prestam serviços farmacêuticos.
Pedimos uma estimativa à Federação Nacional dos Farmacêuticos, a Fenafar, que reúne os sindicatos da categoria de todo país. Tomando como referência a anuidade paga pelos farmacêuticos (de R$ 543,08 para profissionais de nível superior e R$ 271,53 para profissionais de nível médio), a estimativa da federação é de que os profissionais responderiam por algo entre 30% a 40% da arrecadação. As empresas seriam, portanto, responsáveis pela diferença: entre 60% e 70% do total.
A proximidade com as empresas farmacêuticas nunca foi escondida pelo presidente do conselho, Walter Jorge João. Ele está à frente do CFF desde 2012. Em 2016, quando começava seu terceiro mandato como presidente, disse em um evento da Associação Brasileira de Redes de Farmácias e Drogarias, a Abrafarma, que era preciso reduzir as distâncias entre o conselho e as empresas. “Assumimos com a disposição de construir pontes para fortalecer esse binômio, em favor da saúde da população”, afirmou à época. Atualmente, a Abrafarma representa as 26 grandes redes de farmácia do país.
Essas pontes garantem ao CFF proximidade com um setor forte da economia. Em 2019, as vendas do mercado farmacêutico no Brasil somaram R$ 215,6 bilhões. Cinco grandes redes responderam por um terço de todo o faturamento do varejo: Raia/Drogasil, Pacheco (Grupo DPSP), Pague Menos, São João e Panvel. Todas ligadas à Abrafarma.
Construída ao longo de anos, a parceria continuou durante a pandemia de covid-19. De mãos dadas com a Abrafarma, o conselho ofereceu transformar drogarias e farmácias de São Paulo em pontos de vacinação na campanha contra a gripe em abril de 2020. Dois meses depois, lá estavam o CFF e a Abrafarma abrindo espaço nas farmácias para denúncias de violência contra a mulher. Finalmente, nos primeiros dias de janeiro de 2021, veio a oferta, também conjunta, de usar as redes de drogarias como postos de vacinação contra a covid-19.
Diferente dos projetos anteriores, dessa vez, a proposta do CFF de comprar as vacinas contra o novo coronavírus não traz o carimbo da Abrafarma. Mas a ausência da assinatura não apaga o fato de que os empresários vão ser beneficiados com a medida. Em nota, o CEO da Abrafarma, Sérgio Mena Barreto, elogiou a iniciativa: “Acreditamos que a imunização deve se estender à iniciativa privada e considerar também profissionais que atuam em farmácias, como atendentes, caixas e até equipes de limpeza e segurança do estabelecimento”.
Cada um por si
Assim como os empresários, que queriam comprar 33 milhões de doses de vacina, o Conselho Federal de Farmácia também tentou mostrar o lado positivo da sua proposta para a saúde pública. Eles afirmam que essa comercialização, criticada por especialistas, “seria uma forma de contribuir com o aumento da cobertura vacinal e, ao mesmo tempo, garantir a proteção aos farmacêuticos”. As aspas estão na nota divulgada pelo CFF no Instagram em 29 de janeiro e são atribuídas ao presidente do órgão, Walter Jorge João.
Para o CFF, todos os farmacêuticos se encaixam na definição de população prioritária para a vacinação. A posição tem como base dois documentos: o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a Covid-19, do Ministério da Saúde, e a lei 13.021 de 2014, que dispõe sobre o exercício das atividades farmacêuticas.
Enquanto a lei garante a todas as drogarias e farmácias o status de unidades de saúde, o plano inclui os farmacêuticos como população prioritária. Só que a mesma tabela, na página 93 do plano, que inclui a categoria, também recomenda que, para a definição de prioridades, sejam identificados os trabalhadores de saúde envolvidos no combate à pandemia.
Ignorando essa recomendação, o CFF quer ver na frente da fila da vacina mais de 230 mil farmacêuticos e cerca de 30 mil técnicos de laboratórios de análises clínicas. Questionada pelo Intercept, a entidade disse que não ainda não sabe dizer quantas doses de vacinas pretende comprar. Também não disse de quais laboratórios que entraram com pedido de registro de imunizantes na Anvisa as doses serão adquiridas.
Mas a prioridade só valerá para quem for inscrito no CFF. Ficarão de fora, por exemplo, os trabalhadores que têm mais contato com o público nas farmácias, como os balconistas. Eles não têm a profissão regulamentada, nem têm direito à inscrição no conselho.
O que essa leitura também não mostra é que profissionais que atuam nos serviços que atendem pacientes com covid-19, ou seja, os que realmente compõem a linha de frente de combate ao vírus, já estão sendo vacinados. É o caso da farmacêutica Carla, que trabalha na farmácia do Hospital das Clínicas, em São Paulo. Mesmo tendo uma exposição menor do que a de outras categorias, ela recebeu a primeira dose da vacina no dia 20 de janeiro. “A gente tem contato com pacientes sim. Não como os enfermeiros, os médicos ou os fisioterapeutas, mas a gente está ali dentro também”, lembrou.
‘Essa é uma proposta que desonra a profissão farmacêutica’.
A ex-conselheira federal do CFF e professora aposentada da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a UFRGS, Célia Chaves, fica incomodada ao ver a categoria entrando na guerra das vacinas pelas vias do corporativismo e recomenda rigor na definição de prioridades: “claro que entre os profissionais de saúde prioritários existem alguns muito mais prioritários do que nós. Aqueles que estão realmente em contato 24 horas com os pacientes devem ser os primeiros”, afirmou. “Se nós estamos na retaguarda, se estamos em alguns locais onde esse contato é muito menor, não somos os primeiros. Nós temos que ter essa consciência”, disse.
A proposta de pagar para ter vacinas também gerou críticas entre os representantes sindicais. A Fenafar defende a inclusão de todos os profissionais da categoria que atuam em drogarias, laboratórios e hospitais entre os grupos prioritários, mas critica a compra de imunizantes por fora do SUS: “Qualquer que seja o método usado para furar a fila de prioridades, reforça a noção do ‘cada um por si’”, criticou o presidente da Fenafar, Ronald Ferreira dos Santos. “A saúde e a vida não são mercadorias. Essa é uma proposta que desonra a profissão farmacêutica”, completou.
O Intercept perguntou ao CFF se a proposta de comprar vacinas não seria semelhante a de outras empresas que também se dispuseram a adquirir os imunizantes. Em resposta, o conselho nega qualquer semelhança com a aquisição de imunizantes por parte do setor privado e destaca o que marca a diferença: é que, sob o guarda-chuva do CFF, todos os beneficiários podem receber o selo de população prioritária, ainda que não sejam profissionais de saúde na linha de frente de combate à pandemia.
O CFF informou que “esses profissionais estão incluídos no grupo prioritário dos trabalhadores da saúde, conforme o Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19. Portanto, a iniciativa do conselho não pode e não deve ser comparada à de empresas, e visa estritamente garantir a proteção para os farmacêuticos, que, diante da escassez de doses disponíveis, estão sendo preteridos no processo de imunização, em alguns municípios”. Em seguida, acrescentou que era importante ressaltar que “se a proposta do conselho se concretizar, a autarquia estará contribuindo para garantir as condições para que os trabalhadores em questão continuem prestando seus serviços no cuidado à saúde da população, tão necessários nesta pandemia”, completou.
O Intercept perguntou ainda à entidade quanto pretende gastar na aquisição de imunizantes, se já fez contato com os laboratórios produtores de vacinas e quais profissionais seriam priorizados. O CFF respondeu que não comentará as questões até se reunir com o Ministério da Saúde.
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