Três camaroneses requerentes de asilo, detidos no Centro de Processamento do ICE [Immigration and Customs Enforcement, o Serviço de Imigração e Controle Aduaneiro dos EUA] na Louisiana, declararam que um dos guardas da instituição os ameaçou com exposição à covid-19 caso se recusassem a cumprir suas ordens e aceitar uma transferência. Segundo contou ao Intercept um dos detidos, Clovis Fozao, o guarda foi claro na ameaça: caso os imigrantes detidos não se submetessem, seriam transferidos para a unidade Bravo-Alpha, onde ficam em quarentena os detentos que testam positivo para o coronavírus.
“Eles disseram que iam colocar todos nós na Bravo-Alpha, que é para quarentena, onde deixam todo mundo com coronavírus.”
“Eles estavam nos tirando à força do dormitório, nos empurrando e arrastando”, explicou Fozao sobre o conflito quando os guardas tentaram forçá-los a se sujeitarem à deportação. “Eles ameaçaram chamar a equipe da SWAT. Eles disseram que iam colocar todos nós na Bravo-Alpha, que é para quarentena, onde deixam todo mundo com coronavírus.”
Atualmente ,existem nas instalações de Pine Prairie, operadas pelo Grupo GEO, gestor de prisões privadas, 21 casos confirmados de coronavírus, segundo o rastreio do próprio ICE.
Depois da ameaça de contaminação, os guardas arrastaram e empurraram violentamente o grupo de requerentes de asilo camaroneses, cinco no total, aos gritos, repetindo as ameaças na tentativa de iniciar o processo de deportação, como relataram ao Intercept três dos detentos envolvidos.
O ICE emitiu uma declaração dizendo que encara com seriedade as acusações de conduta indevida e, quando acionado, irá conduzir investigações. “Alegações de conduta indevida por funcionários ou contratados do ICE devem ser reportadas ao Gabinete de Responsabilidade Profissional (OPR, na sigla original) do ICE, e são avaliadas pelo Gabinete do Inspetor Geral (OIG) do Departamento de Segurança Nacional (DHS)”, informou uma autoridade do ICE. “O ICE está profundamente comprometido com a segurança e o bem-estar de todos sob sua custódia.”
Os cinco homens já estavam detidos havia mais de um ano, informaram os solicitantes de asilo, depois de terem fugido de um regime violento e homicida em Camarões, que vem perseguindo aqueles que manifestem apoio ou mesmo estejam nas proximidades do movimento separatista anglófono. Nos últimos anos, ocorreram massacres e atrocidades em massa em Camarões, a que alguns observadores já se referem como genocídio – e que incitam cada vez mais pessoas a fugir em busca de segurança. A despeito disso, a taxa de concessão de asilo pelos EUA a camaroneses despencou no ano passado, e até pelo menos novembro eles ainda estavam sendo deportados em massa. Alguns dos deportados foram detidos e torturados ao retornar para o país de origem, de acordo com os solicitantes de asilo com quem conversei.
Na sequência das ameaças e agressões, Fozao e os demais se renderam e se sujeitaram à transferência. “O que mais poderíamos fazer?”, conta ele. “Eles eram muitos mais do que nós.”
Os homens contam que foram amontoados em uma van com outros detentos e levados a um centro de preparação em Alexandria, Louisiana, onde os imigrantes costumam ser reunidos em grupos antes de cada voo de deportação. Lá, foram novamente forçados a condições de superlotação, onde era impossível manter distanciamento social. Um dos detidos, que falou com o Intercept sob condição de anonimato por receio de retaliação, estima que havia aproximadamente 100 pessoas em uma sala.
Depois que um depoimento por escrito foi apresentado por uma aliança de grupos de defesa de imigrantes ao Gabinete do Inspetor Geral do Departamento de Segurança Nacional, o voo de deportação foi cancelado, como noticiado em primeira mão pelo jornal The Guardian. A carta elenca uma série de táticas violentas dos agentes do ICE, usadas para pressionar os detentos a se sujeitar à deportação, alegando que estariam envolvidos em tortura. As ameaças de exposição dos detentos à covid-19 estão sendo relatadas aqui pela primeira vez.
“O ICE tem a mais alta confiança no profissionalismo da nossa força de trabalho e na sua adesão às políticas da agência”, disse o agente do ICE na declaração apresentada ao Intercept. “No entanto, o ICE decidiu cancelar o voo de 3 de fevereiro para dar a quaisquer potenciais vítimas ou testemunhas a oportunidade de serem ouvidas, e será realizada uma avaliação da agência sobre as recentes notícias de uso da força relacionadas a indivíduos deste voo, além de oferecer qualquer orientação adicional ou treinamento que repute necessário.”
Dois dias depois de assumir o cargo, o presidente Joe Biden decretou uma moratória de 100 dias sobre as deportações, uma das suas principais promessas de campanha sobre políticas de imigração. O governo se comprometeu a “avaliar e redefinir as políticas de execução” enquanto as deportações estiverem temporariamente suspensas. Quatro dias depois da assinatura da moratória, um juiz do Texas concedeu uma liminar para suspendê-la, em resposta a uma ação movida pelo estado do Texas. Embora a revogação da liminar seja esperada, o ICE não perdeu tempo e já colocou novamente em curso seu mecanismo de deportação.
Dentro dessa corrida para continuar as deportações, Jusiel Mendez, um cubano requerente de asilo atualmente sob custódia do Centro de Detenção de Etowah County em Gadsden, Alabama, relatou essa semana que ele e um grupo de cubanos na mesma situação também foram ameaçados de exposição à covid-19 caso não assinassem os termos de deportação. Mendez contou ao Intercept que um agente de alta patente de Etowah, a quem se referiu como “capitão”, ameaçou expor o grupo ao vírus.
“Eles estavam ameaçando nos levar ao lugar para onde vão as pessoas que têm covid.”
“Eles estavam ameaçando nos levar ao lugar para onde vão as pessoas que têm covid”, disse Mendez, fazendo referência à unidade de quarentena. O próprio Mendez já havia contraído covid-19 em Etowah, tendo relatado sintomas que incluíam falta de ar persistente, mas diz que foi um caso relativamente leve. Ele e os demais estancaram diante da ameaça. “Não consigo respirar, e eles ainda não me escutam”, contou ele.
Mendez descreveu como lamentáveis as condições médicas e a resposta à pandemia nas instalações. Ele contou que, nessa semana, solicitou uma nova máscara, pois tinha perdido a sua, e recebeu a resposta de que não havia nenhuma: “o guarda apontou para a caixa vazia e disse ‘sem máscaras'”. Mendez diz que ainda estava com dificuldade para respirar em alguns momentos, e ficou chocado com o tratamento que ele e os demais receberam.
Dois dos homens ameaçados com contaminação por covid-19 em Pine Prairie eram especialmente vulneráveis: Fozao é hipertenso, e um dos outros detentos, que preferiu o anonimato por medo de retaliação, contou que é asmático. O detento asmático informou ao guarda que estaria em alto risco se contraísse covid-19. “Eles não se importam”, ele disse ao Intercept.
Fozao, que está detido há 18 meses, disse que alguns dos guardas teriam alegado que o “coronavírus é mentira. Não é real.” Ele acrescentou, ainda: “a forma como eles lidam com a covid é ruim. É muito, muito ruim.”
Ambas as instalações, Pine Prairie e Etowah, estão sob ataque por sua perigosa má administração de covid-19, sendo que detentos em Etowah foram inclusive punidos por solicitarem testes de covid-19.
“Vão me colocar na solitária por isso, por falar”, explicou Mendez ao Intercept. “Mas quero que as pessoas saibam. O que vão fazer, me matar? Talvez.”
Tradução: Deborah Leão
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