Quando Bolsonaro e Haddad chegaram ao segundo turno, o Estadão publicou editorial afirmando que aquela seria “uma escolha muito díficil”. Sabe como é, escolher entre um professor com anos de serviços prestados à democracia e um ex-militar parasita com discurso golpista não é uma tarefa fácil para os barões do jornal, cujos antepassados conspiraram para o golpe militar de 64. Não era para ser uma escolha difícil. A função essencial do jornalismo é a defesa da democracia, até porque só ela garante a liberdade da profissão.
Ao se tornar elegível nesta semana, Lula fez com que a grande parte da imprensa voltasse a apostar na cantilena da polarização tão repetida nas últimas eleições. Pipocaram no noticiário artigos lamentando o primeiro discurso de Lula e lamentando a polarização entre dois “populistas”, como se ambos fossem dois lados de uma mesma moeda. Lula defendeu a educação pública, o SUS, o auxílio emergencial, a ciência e pregou o diálogo com todos os setores da sociedade. Polarizou com o autoritarismo e a política de morte de Bolsonaro. Mas os colunistões apareceram no dia seguinte lamentando a polarização trazida por Lula e criando uma falsa equivalência entre o discurso do ex-presidente e o discurso facínora responsável por um genocídio.
Quem equipara Lula a Bolsonaro não está dando uma opinião. Está contando uma mentira. É a falácia descendente da “escolha muito difícil” do Estadão. Lula governou por oito anos, deixou o cargo com quase 90% de aprovação e é reconhecido mundialmente como um democrata. Bolsonaro lidera um projeto autoritário, golpista, que atacou quase de maneira permanente as instituições democráticas nos últimos dois anos. Enquanto Lula tirou o Brasil do mapa da fome, Bolsonaro nos colocou no mapa da morte. Comparar um homem autoritário e golpista com um democrata que saiu do governo com aprovação quase unânime tem nome: desonestidade intelectual.
Você não gosta do Lula? OK. Então substitua seu nome pelo de FHC e perceba que a falsa simetria se mantém de pé. Não se trata de uma batalha entre esquerda e direita, mas entre democracia e autoritarismo.
No momento em que somos liderados por um negacionista durante uma pandemia, não é razoável que se ache ruim a volta à cena eleitoral de um democrata testado e aprovado pela população. O antipetismo alucinado de boa parte da imprensa, impulsionado pelas violações constitucionais da Lava Jato, foi um dos responsáveis pela normalização do candidato golpista que agora nos governa. Esse mesmo antipetismo alucinado hoje não é capaz de reconhecer o abismo existente entre um democrata e um genocida embriagado por ideologia fascista.
O termo “bolsopetismo” também se popularizou entre os articulistas da imprensa e ex-aliados do bolsonarismo, como o MBL. Além de ser uma aberração analítica, a tentativa de equiparar Bolsonaro e Lula representa nada mais do que a relativização do fascismo bolsonarista.
Os efeitos da volta de Lula ao jogo político foram imediatos. No mesmo dia, Bolsonaro passou a respeitar o distanciamento, a usar máscara, que antes dizia ser “coisa de maricas”, e defender as vacinas. Talvez seja o caso de agradecermos à polarização.
O presidente passou a ter um antagonista com forte apelo eleitoral. Lula aparece na última pesquisa Atlas apenas 5 pontos porcentuais atrás de Bolsonaro e 18 pontos à frente do terceiro colocado, o ex-bolsonarista Sergio Moro. Na simulação de segundo turno, Lula venceria com 8 pontos à frente de Bolsonaro.
‘O que falta ao Brasil é justamente uma intensa polarização contra um projeto de caráter fascista, negacionista que tem matado milhares de brasileiros’.
O cenário eleitoral mudou bastante de 2018 para cá. Lula aparece hoje como o candidato com maior potencial para barrar a reeleição de Bolsonaro. Como se vê, ao contrário do que afirmam muitos articulistas, é mentira que Lula no páreo seja o melhor cenário eleitoral para Bolsonaro. Tanto que Lula elegível se tornou hoje a grande pedra no sapato do bolsonarismo. Segundo uma jornalista da Globo News, a “reabilitação eleitoral de Lula pode ser pá de cal na versão ‘Bolsonaro liberal'”.
Perceba que Lula é sempre grande culpado por tudo nas análises políticas. Culpado pela polarização, pela queda da Bolsa, pela intensificação do populismo de Bolsonaro. Lula é culpado até pelo fim de um suposto liberalismo de Bolsonaro. Esse tipo de análise esdrúxula pode ser encontrada na grande maioria do colunismo brasileiro. Assistir aos viúvos da Lava Jato pregando moderação depois de passarem anos defendendo o extremismo jurídico da Lava Jato é mesmo fascinante.
A chegada de um candidato anti-Bolsonaro com grande potencial para derrotá-lo não deveria ser uma preocupação para os que prezam pela democracia e se opõem ao genocídio bolsonarista, mas é para os super ricos que ainda hoje seguram Bolsonaro no poder.
Integrantes das elites já falam abertamente em apoiar a reeleição caso Lula volte para a disputa eleitoral. O maior acionista da Via Varejo, grupo que engloba as Casas Bahia e o Ponto Frio, falou ao Estadão um dia depois de Fachin tornar Lula elegível: “Acho que o presidente está fazendo um bom trabalho. Está sendo bem autoritário, bem decisivo. Se alguém perguntar em termos de avaliação, eu manteria ele. Vamos dizer, renovaria por mais quatro anos”.
A possível candidatura de Lula também fez os bancos sinalizarem apoio à reeleição de Bolsonaro. Milhares de brasileiros estão morrendo pela omissão de um negacionista desvairado, mas os ricaços pretendem reelegê-lo. Não que isso seja uma novidade. A recente cruzada da Faria Lima contra o auxílio emergencial mostrou que poupar o maior número de vidas possível na pandemia não é uma prioridade para as elites.
Sabe quem também está reclamando da polarização? Os militares, que engrossaram o coro da falsa equivalência. O general Santos escreveu no Twitter:
REJEIÇÃO AOS EXTREMISTAS – A decisão de Min STF polariza a política nacional. Brasil cansado de corrupção, demagogia, populismo, estelionato eleitoral. Precisamos de equilíbrio, paz, auxiliar os necessitados e vencer a pandemia. Rejeição a extremistas, fanatismo e desinformação.
— Santos Cruz (@GenSantosCruz) March 9, 2021
Um outro general ouvido pelo o UOL ironizou: “O Brasil vai ficar uma maravilha, dividido entre Lula e Bolsonaro”. Portanto, deixemos claro quem teme a polarização ao fascismo: os muito ricos, boa parte da imprensa e os militares — os mesmo atores que contribuíram para a eleição de Bolsonaro.
“Ah, mas o Lula cometeu crimes”. Bom, essa é a convicção de muita gente, mas isso ainda precisa ser provado na justiça. A perseguição jurídica contra ele ficou escancarada depois da Vaza Jato e hoje é reconhecida até pelo STF. A caçada tinha o objetivo claro de lhe tirar do pleito. Lula foi vítima do lavajatismo, o mesmo processo que trabalhou pela eleição do Bolsonaro.
O fato é que, mesmo se Lula fosse esse gângster que pintam, ele ainda seria melhor e mais democrático que o facínora que jogou o país em um negacionismo populista e assassino. Você pode odiar Lula e o PT, mas não pode negar que eles estão anos luz à frente do bolsonarismo sob qualquer ponto de vista, mas ainda mais sob o ponto de vista da preservação da democracia. Enquanto Lula fez um governo de conciliação, Bolsonaro buscou a ruptura democrática e incitou o povo contra o Congresso e o STF.
Em 2018 dificilmente Lula venceria Bolsonaro. Vivíamos um cenário em que o antipetismo se mostrava como a grande força política. O jogo mudou. Em 2022, estaremos em um momento similar a um pós-guerra. Um democrata popular, que já foi testado e aprovado, pode representar a salvação aos olhos de muita gente, inclusive em parte dos eleitores de Bolsonaro.
O que falta ao Brasil é justamente uma intensa polarização contra um projeto de caráter fascista, negacionista que tem matado milhares de brasileiros, pobres em sua grande maioria. Impedir a reeleição deveria ser a principal urgência de todos os democratas, sejam eles de direita ou de esquerda. Uma obrigação que pouca gente cumpriu em 2018 por achar que estava diante de uma “escolha difícil”.
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