O corpo do ex-capitão do Bope Adriano da Nóbrega ainda estava no Instituto Médico Legal de Alagoinhas, cidade a 135 quilômetros de Salvador, quando um homem identificado como “Coronel” cobrou por telefone de um de seus comparsas o paradeiro de 22 cavalos de raça comprados pelo miliciano.
Transcrito no relatório técnico da Subsecretaria de Inteligência da Secretaria de Polícia Civil do Rio, o episódio marca o início de uma disputa pelo milionário espólio do matador de aluguel que chefiava a milícia carioca Escritório do Crime, especializada em assassinatos. As escutas, às quais o Intercept teve acesso com exclusividade, revelam pela primeira vez a dimensão real do patrimônio do ex-caveira.
O coronel, mostram as ligações, havia procurado Eduardo Serafim, dono de um rancho em Itabaianinha, no interior do Sergipe, para onde o ex-capitão tinha levado os animais, comprados numa vaquejada na pequena cidade de 40 mil habitantes. Alguns dos cavalos valiam mais de R$ 100 mil. Serafim relatou o ocorrido a um homem não identificado numa conversa telefônica interceptada em 13 de fevereiro de 2020, quatro dias depois da morte de Adriano. Até então foragido, o ex-caveira estava escondido em um sítio em Esplanada (BA) e foi morto em uma controversa operação conjunta das polícias do Rio e da Bahia.
Adriano da Nóbrega, como revela o levantamento, transformou o Escritório do Crime numa espécie de holding, investindo os lucros da milícia em propriedades rurais, gado, cavalos de raça, posto de gasolina, restaurantes, revenda de veículos, depósitos de bebidas, academia de ginástica, clínica veterinária, empresa de crédito, casas de material de construção, construtoras de pequeno e médio porte, além de duas empresas voltadas ao aluguel de imóveis próprios. Uma delas com capital social de R$ 11 milhões e endereço na Avenida das Américas, na Barra da Tijuca, no Rio. O espólio amealhado pelo ex-caveira conta com bens até em Miami, nos Estados Unidos.
Essa fortuna toda foi erguida a partir de atividades ilegais como a cobrança de taxas de segurança, ágio na venda de botijões de gás e de água, exploração de caça-níqueis, agiotagem, assassinatos por encomenda, grilagem de terras e construções irregulares de prédios nas favelas de Rio das Pedras e na Muzema, redutos do Escritório na zona oeste do Rio.
As escutas descritas no relatório da polícia deixam claro que as brigas pelo espólio do matador de aluguel aumentavam à medida que os dias passavam, gerando insatisfação entre os aliados mais fiéis de Adriano. Um deles, identificado apenas como Ronaldo César, o Grande, reclamou com um interlocutor não identificado em uma ligação interceptada seis dias após a sua morte que não aguentava mais ir a reuniões e estar presente nas brigas da família por bens, referindo-se às irmãs (Daniela e Tatiana da Nóbrega) e às duas ex-mulheres (Danielle da Nóbrega, que foi assessora fantasma de Flávio Bolsonaro, na Alerj, e Júlia Lotufo). Grande é citado nas investigações como sucessor do ex-capitão na milícia.
Nas conversas interceptadas, as irmãs dizem a interlocutores que Adriano tinha muita coisa e que era seu desejo deixar tudo para a mãe, Raimunda Magalhães, que também foi assessora fantasma do primeiro-filho do presidente Jair Bolsonaro. Raimunda e Danielle figuram como elos entre o esquema de rachadinha no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio, com o então chefe do Escritório do Crime. O que foi comprovado nas quebras de sigilo bancário anuladas pelo STJ, em fevereiro.
Tamanha disputa em torno do espólio do matador de aluguel que alguns dos investigados deixam claro o temor pela segurança dos membros da família de Adriano. Como evidenciado numa conversa entre Tatiana com uma tia, que não tem o nome citado na transcrição. A mulher demonstra preocupação com o fato da sobrinha estar sozinha em um sítio e sugere que ela venda o gado e saia do local. Tatiana, então, diz estar segura em companhia de “amigos policiais”.
Enquanto aguardavam a liberação do corpo de Adriano para sepultamento, que só aconteceu 12 dias após a sua morte, integrantes da organização relataram a venda de 85 cabeças de gado por pouco mais de meio milhão de reais, como mostra uma conversa entre dois suspeitos interceptada dia 20 de fevereiro. Um dos envolvidos chega a orientar o interlocutor a não especificar a arroba na nota fiscal para evitar a cobrança de impostos.
Com o início da liquidação dos bens, o acirramento da disputa volta a ser tema de outras conversas captadas com autorização judicial. Numa delas, interceptada quatro dias depois da morte de Adriano, o soldado da Polícia Militar Rodrigo Bittencourt do Rego diz temer pela segurança da então esposa do miliciano, Júlia Emília Mello Lotufo. O policial diz ao interlocutor, não identificado nas investigações, que até os seguranças da viúva “já estão se dividindo, cada um querendo uma parada”. Rego, que tinha sido casado com Júlia antes dela se envolver com Adriano, é citado pelo MP como laranja do casal e um dos principais responsáveis pela administração de negócios legais da organização criminosa.
Em nome do PM Rodrigo Rego aparecem uma empresa de crédito, a Cred Tech Negócios Financeiros Ltda, um depósito de bebidas e um galpão, que vinha sendo reformado para funcionar como um “restaurante gourmet”. Numa das escutas, o soldado diz ter movimentado num mês mais de meio milhão de reais. Lotado no batalhão de Mesquita, na Baixada Fluminense, o soldado-laranja chegou a viajar para Miami, nos Estados Unidos, onde passou “algumas coisas” para o seu nome. A investigação não detalha o patrimônio de Adriano nos EUA. A viagem aconteceu em 18 de julho de 2019. Para o MP, os valores movimentados eram incompatíveis com o salário do soldado. O PM também pagou o aluguel da casa onde Adriano se refugiou na Costa do Sauípe, antes de seguir para Esplanada.
Apesar das evidências levantadas contra o policial, ele não foi denunciado pelo MP à justiça e segue na ativa. A assessoria de imprensa da PM informou que “a corregedoria da corporação aguarda os referidos dados processuais para possível abertura de investigação interna”.
Antes de ser morto, Adriano já andava insatisfeito com as altas despesas de Júlia. Os gastos da primeira-dama do matador de aluguel descritos na investigação giram em torno de R$ 20 mil mensais, com o aluguel da cobertura à beira mar no Recreio dos Bandeirantes (R$ 7 mil), a prestação de um Honda HRV (R$ 1,2 mil), a fatura do cartão de crédito (R$ 8 mil) e os planos de saúde (R$ 3 mil). Em um trecho da interceptação, feita em agosto de 2019, Júlia comenta que Adriano fala com raiva que ela “tá morando numa cobertura, está com carro zero e que está com dinheiro”. Ela diz a uma interlocutora não identificada que “a cobertura não faz nem cosquinhas no bolso de Adriano”.
Em outra conversa interceptada dez dias depois da morte do ex-capitão, o soldado e ex-marido da viúva confere seus gastos mensais e diz que Júlia não sabia se tinha R$ 400 mil ou R$ 2 milhões em dinheiro vivo. No diálogo, o PM deixa claro a insatisfação com o interlocutor, que alertou à viúva sobre valores em caixa, impedindo o soldado de pegar R$ 200 mil.
Disposto a fazer seu próprio pé de meia, Rego sinaliza na conversa interceptada que pretendia ficar com parte de uma quantia que mantinha guardada a pedido do chefe morto. O soldado orienta o interlocutor a não avisar um dos comparsas do miliciano sobre os R$ 598 mil que tem guardado: “Orelha pensa que são R$ 518 mil”, diz. Orelha é Luiz Carlos Felipe Martins, apontado nas investigações como sendo um dos homens de confiança de Adriano. Como mostra trecho de interceptação onde ele trata da venda de alguns animais do espólio do ex-capitão.
A análise dos documentos sigilosos revela também que a disputa não se limita aos bens amealhados pelo ex-capitão. O vácuo gerado por sua morte teria motivado ao menos dois assassinatos de integrantes da organização criminosa envolvidos numa briga pelo comando do bando. É o que evidencia um dos investigados numa das conversas gravadas. Apesar das suspeitas de que os crimes têm relação direta com a disputa por poder, tanto a polícia quanto o MP não avançaram nas investigações das duas execuções.
Um ano após a morte do ex-capitão do Bope, as investigações se arrastam no Ministério Público. Os treze smartphones e sete chips apreendidos com o miliciano no sítio de Esplanada seguem no depósito do instituto de criminalística. Adriano mudava frequentemente os seus aparelhos, alternando chips de Tocantins, Bahia e outros estados. Para driblar o monitoramento, o ex-caveira também costumava se comunicar por meio de telefones de pessoas cooptadas (amigos de familiares e de aliados), usando apenas o WhatsApp. A estratégia descrita no relatório como ponto-a-ponto inviabiliza o monitoramento das conversas já que elas acontecem por meio de aparelhos de pessoas desconhecidas à investigação.
Assim como não remeteu à Procuradoria-Geral da República (PGR) as interceptações onde integrantes da organização criminosa citam a suposta amizade entre Adriano e Jair Bolsonaro, a instituição não enviou à corregedoria da Polícia Militar as provas levantadas contra o soldado PM Rodrigo Rego, apontado como laranja do bando. Ao ignorar sua atribuição constitucional de zelar pelo cumprimento das leis, o MP do Rio flerta com o crime de prevaricação: “retardar, deixar de praticar ou praticar indevidamente ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”.
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